Caos no Judiciário

Justiça americana vive dilema sobre aplicação de efeito vinculante

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3 de agosto de 2004, 16h39

A Suprema Corte americana, há um mês, julgou inconstitucionais as diretrizes usadas no estado de Washington para condenar um tal de Ralph Blakely que confessou, em acordo com o promotor, o rapto da esposa.

Recebeu a pena máxima (quatro anos e cinco meses) mas o juiz deu outros três anos e um mês pela “crueldade deliberada”. Foi violada a Emenda 6, do direito ao júri – decidiu a corte — pois todo fator que aumenta a pena deve ser parte do acordo ou deliberado por jurados. A ministra Sandra O’Connor, vencida por 6 a 5, previu o colapso do sistema: “é terremoto magnitude 10”.

A vinculação judicial extrapola mero caso de lei estadual, como este, para toda federação? São 250 processos federais a ser julgados por dia sob essa confusa interrogação: aplica-se-lhes, ou não, o precedente Blakely, que é omisso sobre esse desdobramento ? E aos “dezenas de milhares” de outros já condenados, no dominó retroativo, o mesmo trágico efeito que abalará o Brasil se o STF retirar o dever investigatório do Ministério Público: a chave escancará até a cela do trânsito em julgado e a trancará aos corruptos, soltos ao léu?

Tudo começou há 20 anos, quando o Congresso criou uma comissão de diretrizes para banir disparidades entre condenações. Depois, Bush sancionou lei contra juízes de mão leve para sentenciar. E agora eles julgam que o caso Blakey anula parte daquelas diretrizes.

O procurador-geral da República imediatamente rejeitou a idéia da aplicação da decisão aos processos federais, mas agora ordenou que todo promotor Federal denuncie e faça acordo conforme Blakely. E mais: pediu para a Suprema Corte, em férias, decidir isso extraordinariamente, selecionando dois casos de condenados com nomes engraçados como futuros precedentes: Bijou e Fanfan.

O presidente do Senado declarou a justiça criminal sob implosão, arruinada pela “frustração fervente” de juízes e promotores da qual renasce o eterno conflito entre os limites do Legislativo e Judiciário no maior poder sobre o cidadão: condenar.

A rebelião de mega-condenações, em revide, para compensar a possível inconstitucionalidade, fere o réu indefeso por falta das diretrizes para o acordo. O Ministério da Justiça pediu, de início, para o Congresso não se intrometer na balbúrdia, mas depois o Executivo mudou também de opinião: uma legislação temporária, até que a Suprema Corte se manifeste, é uma boa idéia, pois sem diretrizes os promotores deixarão de proteger melhor a sociedade e voltarão a denunciar mais perante os juízes duros.

Estado de emergência judicial máxima: a Corte Federal de Apelos de Nova York, há três semanas e por 13 a 0, pediu – uma raridade — urgência à Suprema Corte para deslindar ante 220 mil julgamentos desde 2002 e “muitos milhares” de futuros casos.

A comissão de 1984 era de sete membros, a maioria juízes. As diretrizes não são leis, tampouco meros palpites; se violadas, a reforma é quase certa. Leis para drogas impuseram penas compulsórias — ótimas em tempos eleitorais — acima das diretrizes, esvaziando o poder dos juízes.

Diferenças entre crack e pó, beneficiando os brancos às minorias, ou à mulher que traz a droga ao viciado, foram outras fontes de atritos entre políticos e magistrados, em especial quando as diretrizes não eram seguidas por estes. Resultado: em 2002, deixaram só três juízes na comissão. O próprio presidente e decano da Suprema Corte Rehnquist rebelou-se contra a invasão que poderia “intimidar os juízes”.

O palco dessa guerra está armado no Congresso da OAB daqui, a American Bar Association, que começa esta semana, em Atlanta, onde o Professor Marc Millen já anunciou aberta a beligerância “entre os atores principais do sistema sentencial”. Epa, guerra entre o Judiciário e outros Poderes? Soa familiar… E Bush participará, contra Edwards, candidato a vice da oposição e advogado de indenizações às vítimas.

Como em toda guerra os terroristas são imaginativos. A juíza Nancy Gertner, de Boston, inverte as condições do acordo de modo que o réu se defenda das diretrizes; ela alega que o Executivo se encarrega da denúncia, mas ela, da justiça. Já o juiz Weinstein, do Brooklyn, está gravando em vídeo todo o processo sentencial para que a Corte de Apelo sinta o caráter do réu que lhe fundamenta o afastamento das diretrizes.

Batalha devastadora: 95% dos réus fazem acordo – a mesma proporção da época em que, talvez pela primeira vez, foi proposto no Brasil o “plea-bargaing”, tese assinada pelo hoje juiz Raimundo Cantuária, Paulo Guimarães Leite, José Carlos Vieira e por mim, no Seminário dos Grupos de Estudos do Ministério Público, em Águas de São Pedro se não me falha, há quase três décadas.

Acordo, nos USA, é sobre o contraditório. Nada garante a quantidade da pena e o juiz a fixa com base nas investigações sobre o réu que incluem eventuais absolvições. Assim, para a fixação da própria sentença, mero oficial do juiz nos USA investiga, mas para mera denúncia o promotor não pode investigar… No Brasil, segundo dois votos já no STF em nossa guerra de injustas mortes — não de nortes justos.

Outro remédio provisório contra a anarquia judicial é a comissão e o Comitê do Senado para o Judiciário substituir as diretrizes por lei de sentenças máximas compulsórias, o que fortaleceria o promotor, voltando-se à situação de 20 anos atrás, com a iniqüidade de condenações díspares.

Outros juízes, antes de sentenciar, têm dado prazo para que o promotor e o defensor falem sobre se Blakey governa, ou não, casos federais. A Suprema Corte deverá dar o mesmo prazo também, mas antes terá de conceder a “relevância”, e logo — o que a todos parece inevitável — e, lá por outubro, ouvir as sustentações orais, com a decisão só para 2005. Até lá, sentenciar no crime é condenar o processo a território sem lei.

Encontrar a fórmula ideal é o desafio americano a estourar em Atlanta e na Suprema Corte nos mesmos dias das Olimpíadas, mas com segurança, sem nada estourar por lá.

Nesses dramáticos dilemas estão, num micro-extremo o acusado e, noutro, macro, o perene confronto Judiciário x Legislativo. A Constituição deu ao juiz a vitaliciedade mas, para o Congresso, o legislativo tem a responsabilidade de vigiar o Judiciário.

O herói do desastre é o Professor Douglas Berman, de 35 anos, de Ohio, cujo site, acessado 2 mil vezes por dia, é citado pelas Cortes e réus. Mas essa fonte, sobre o que ferve, também está entrando de férias de verão, e a esposa já avisou que não a internet não funciona na praia.

Quiçá o Brasil pudesse socorrer, exportando consultoria, com nosso hnowhow em reformas judiciárias, eficácia das leis e tranqüilidade também aos americanos.

Não sei se virá à Atlanta algum dos dignos ministros de nosso Excelso. Talvez estejam se preparando para proclamar — não à América, mas ao mundo — a grande decisão do Brasil, um campeão de escândalos mergulhados na lama da impunidade zero, e nem o diabo nos ouça: os brasileiros não podem ter o Ministério Público investigando.

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