Boca no trombone

Advogados reclamam à OEA de tratamento dado a presos no Brasil

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3 de agosto de 2004, 16h47

Estrelas do Direito brasileiro divulgaram, nesta terça-feira (3/7), um documento encaminhado para a Organização dos Estados Americanos contra as recentes práticas de enclausuramento de presos e contra o regime disciplinar diferenciado. Os advogados se insurgem contra o tratamento dado pela Polícia Federal aos custodiados.

“A instalação do Estado Policial parece estar, perigosamente, em marcha, e cumpre deter o autoritarismo, que não se compadece com o regime de liberdades que, a duras penas, logramos conquistar. Mostra a história que aqueles que ignoram as suas lições se arriscam a repetir suas tragédias”, afirmam os advogados.

O documento é resultado das conclusões do encontro em defesa dos direitos fundamentais da pessoa humana e das prerrogativas dos advogados de defesa. O encontro aconteceu no mês de junho, em Curitiba (PR).

Participaram do evento Renê Ariel Dotti, professor titular de Direito Penal da Universidade Federal do Paraná; Miguel Reale Júnior, professor titular de Direito Penal da USP; Técio Lins e Silva (UERJ); Luiz Guilherme Vieira (UERJ); Luiz Roberto Barroso (UNB); José Roberto Batochio, ex-presidente nacional da OAB; Luiz Flávio Borges D’urso, presidente da OAB-SP; Alberto Zacharias Toron (PUC-SP); Manoel Antonio de Oliveira Franco, presidente da OAB-PR; Paulo Sérgio Leite Fernandes, ex-presidente nacional da Comissão de Prerrogativas da OAB; Mário de Oliveira Filho (Prerrogativas da OAB-SP); Mauro Viotto, ex-diretor do Conselho Federal da OAB e presidente da Associação dos Advogados Criminais de Londrina e norte do Paraná; Elias Mattar Assad, ex-presidente da Associação dos Advogados Criminais do Paraná.

Leia o documento:

VIOLAÇÕES AOS DIREITOS HUMANOS E O PROCESSO PENAL NO BRASIL

(Denúncia à OEA e à Anistia Internacional)

A persecução criminal e a execução das penas vêm exibindo, no Brasil, aspectos extremamente preocupantes, especialmente no que concerne aos direitos e garantias fundamentais do indivíduo. De um lado, a banalização da prisão provisória (que encarcera antes para investigar depois) tem constituído, com o beneplácito de parcela do Judiciário (o STF ainda não se pronunciou sobre o tema), aplauso da mídia e omissão de muitas instituições, regra geral.

Além disso, tal vulgarização constitui importante fator de esmaecimento do caráter de excepcionalidade que deve marcar a prisão processual – o passo coercitivo subseqüente à prisão temporária é sempre a decretação da prisão preventiva –, constrição esta que suprime a liberdade do imputado durante o curso do processo, e que colide com o princípio universal da não-culpabilidade ou presunção de inocência.

De outra parte, potencializa-se sensivelmente a investigação secreta, realizada, como método de ação, pela Polícia Federal e, não raro, pelo Ministério Público, entregando-se os dois segmentos a perquirições que alcançam, seguidamente, parâmetros constitucionalmente inaceitáveis (chegam informações da existência de células oficiosas de escuta telefônica, devassamento e captação de dados, como estratégia de prospecção geral de delitos, tudo ao largo do controle jurisdicional). Tais procedimentos ofendem o ordenamento jurídico brasileiro, violentando o direito constitucional de intimidade e privacidade. Em suma, constituem hipóteses concretas de infrações penais.

No desenvolvimento de atividades investigatórias, alguns setores das referidas instituições, munidos de autorizações judiciais, concedidas sem maior critério, cuidado e prudência, têm invadido escritórios de advogados, violando-lhes os arquivos e o sigilo profissional, e realizado interceptações epistolares, telefônicas, de dados e telemáticas, na busca de possíveis indícios ou provas de atos de terceiros, transformando o exercício da defesa técnica da liberdade humana em atividade de alto risco. Desnecessário pontuar que tais ações, anômalas, sempre cercadas de grande estrépito junto à opinião pública, levam ao desmerecimento os profissionais visados, aviltando-os perante a comunidade profissional e o meio social.

Por último, a maior parte dos meios de comunicação social vem fazendo desmedido alarde desses reprováveis métodos de investigação subterrânea e autoritária, apresentando-os como valor social que se sobrepõe, pelo utilitarismo, à própria garantia das liberdades pessoais, da privacidade, do contraditório e do devido processo legal. Transmite-se ao público a sensação de que vale a pena se trocarem liberdades e garantias individuais por falsa promessa de segurança e de punição. Também por isso muitos juízes se inclinam a proferir decisões que, autorizando tais diligências domiciliares (e residenciais), contornam direitos fundamentais, de índole constitucional. Há notícias de que emissora de televisão aberta contaria com o privilégio da exclusividade na divulgação desses espetáculos policiais em primeira mão, como contrapartida da subliminar mensagem suasória, ao público, de que “punição, a qualquer preço, é preciso, respeito aos direitos do suspeito não é preciso”.

Nesse diapasão, prosseguem as violações com a realização de encarceramentos processuais segundo o alvedrio dos que investigam, com aberta afronta a princípios fundamentais, de que são exemplos o respeito à integridade moral do custodiado, a permanência do preso no distrito da culpa, à disposição da autoridade judiciária que ordenou a prisão, a assistência de advogado e de familiares, como ordenam os incisos XLIX, LXII e LXIII do artigo 5º da Constituição da República, e legislação infra-constitucional de incidência.

Retomaram-se, nesta quadra histórica da nossa democracia consolidada, métodos utilizados pelo autoritarismo dos anos 70 contra os que eram reputados inimigos do regime militar, de que é modelo vítreo a transferência do preso processual para outra unidade da Federação (longe do juiz natural, do distrito da culpa e da assistência jurídica e familiar) com o propósito de lhe “quebrar o moral”. Pelo isolamento absoluto em local desconhecido, leva-se o recluso à fragilidade psíquica, logrando-se fazê-lo praticar ou confessar atos que não praticaria ou confessaria em condições de plena integridade psicológica. A final, o que justificaria a remoção de quem está preso provisoriamente por decisão proferida no Rio Grande do Sul (onde tramita determinado processo) para o Distrito Federal ou para Roraima? Trata-se de inflição de forma de maus-tratos psicológicos, para se dizer o mínimo, própria dos regimes de força, ainda quando disfarçados de democracia popular.

O acesso dos advogados dos imputados aos respectivos processos tem sido sistematicamente dificultado – sob a permanente alegação de segredo do apuratório –, restrição esta que, ilegal, resulta na impossibilidade de se combaterem, judicialmente, os abusos e ilegalidades perante outras instâncias ou esferas. A comunicação reservada do defensor com o cliente é burlada por escutas, oficiais e clandestinas, até nos parlatórios das casas de custódia, onde ela tem lugar em gaiolas envidraçadas equipadas com interfones, “grampeados”…

Todas essas ilicitudes se perpetram em nome de um simbólico combate ao crime, que, na verdade, se origina na injustiça social, na concentração de rendas, na política econômica que não leva ao desenvolvimento, à assistência social, à saúde, à educação e à criação de postos de trabalho para absorver as novas forças laborais. Em uma palavra: à falta de políticas públicas concretas e de resultados efetivos, oferecem-se, em claro diversionismo e à custa do sacrifício de direitos inalienáveis da personalidade humana, espetáculos policiais à opinião pública, para a esta se transmitir a sensação de que algo está sendo feito… Panes et circenses e, mesmo na falta de pão, apenas circo!

A instalação do Estado Policial parece estar, perigosamente, em marcha, e cumpre deter o autoritarismo, que não se compadece com o regime de liberdades que, a duras penas, logramos conquistar.

Mostra a história que aqueles que ignoram as suas lições se arriscam a repetir suas tragédias.

Há, no Brasil, tocante à realização do direito penal material, deformada visão do contraste entre os direitos e garantias dos investigados e a denominada constrição abstrata, encarnada por hipotética vontade popular, tudo em detrimento das franquias constitucionais e dos princípios humanitários agasalhados no nosso direito positivo e nos tratados de que o Brasil é signatário (especialmente no Pacto de San José da Costa Rica) e mesmo nas Normas Mínimas para os Sistemas Prisionais da ONU. Paradigma de clara violação a esses elementares direitos da pessoa aprisionada é o entre nós denominado Regime Disciplinar Diferenciado (RDD), monstruoso instituto carcerário que suprime qualquer espécie de relação do recluso com a vida que palpita fora da sua cela, lançando-o ao mundo silencioso do isolamento completo, fator de degeneração mental, conforme os primeiros resultados já verificados (após longos períodos de imersão no nada). Ausência de sons, de diálogos, de estímulos visuais, de informação, de reeducação, de luz solar, de trabalho, de leitura, enfim, completo mergulho da mente humana no vácuo absoluto. Nenhum trabalho para preparar a reinserção social, nenhuma oportunidade de redenção; em síntese, sistema de patogênese mental senão clara e declarada tortura psíquica. É um produto da ideologia do medo, da guerra e da ordem, que vem se estratificando, inclusive na opinião popular, mercê da campanha diariamente martelada por setores da comunicação descomprometidos com valores humanitários.

Urgente e necessário, pois, que se denuncie à Nação e à comunidade internacional a sistemática e recorrente violação aos direitos do Homem na execução da tarefa estatal da persecução e da execução penal no Brasil, sob o impávido disfarce de que esses direitos são respeitados e se observa o devido processo legal.

São Paulo, em agosto de 2004.

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