Violência no Rio

OAB afirma que omissão do governo deu espaço ao crime organizado

Autor

29 de abril de 2004, 16h15

O presidente nacional da Ordem dos Advogados do Brasil, Roberto Busato, criticou a influência do tráfico no Rio de Janeiro sobre os moradores dos morros da Rocinha e Vidigal e responsabilizou o governo federal pela falta de pulso firme e de ter permitido abertura de espaço ao crime organizado.

Busato afirmou que a omissão do governo e a inexistência de ações sociais concretas na periferia carioca facilitaram a dominação da área por bandidos que, espertamente, oferecem segurança e prestam benfeitorias em troca da adesão dos moradores.

“Nossas elites dirigentes acostumaram-se a administrar por espasmos, a varrer o lixo para debaixo do tapete, a maquiar a miséria. Só que isso tem limite – e claro está que chegamos a ele”, afirmou.

A afirmação foi feita em Itaici, município de Indaiatuba (SP), onde é realizada a 42ª Assembléia Geral dos Bispos do Brasil. Busato discute com o presidente da CNBB, dom Geraldo Majella Agnelo, uma estratégia de ação conjunta para combate à violência no Rio de Janeiro. Os presidentes das duas entidades pretendem visitar os morros da Rocinha e do Vidigal nos próximos dias.

Preocupado com as permanentes guerras de traficantes nas favelas do Rio, o presidente da OAB disse aos mais de 350 bispos presentes à assembléia que recentemente conversou com uma autoridade carioca para propor uma ação conjugada na tentativa de sanar o drama social na capital.

“Para minha surpresa, ouvi dessa autoridade o seguinte: que a crise da Rocinha já estava sob controle e que o foco da mídia agora estava nos índios cintas-largas e no massacre dos garimpeiros. Algo assim como a bola da vez não está mais com a gente, ou ainda: tchau e até a próxima crise”.

Roberto Busato cobrou ações mais eficazes do governo contra o altíssimo desemprego, que faz com que adolescentes e jovens se aproximem do tráfico muito cedo. Ele lembrou que, na campanha eleitoral, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva prometeu gerar dez milhões de empregos nos quatro anos de mandato e criticou a estratégia econômica do governo. (OAB)

Leia o discurso de Roberto Busato

Exmos. Srs. Dirigentes da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil

Quero inicialmente congratular-me com a CNBB pela lucidez e coerência de seu desempenho institucional perante a sociedade brasileira, na defesa dos direitos humanos e da justiça social. Ao longo das três últimas décadas, OAB e CNBB têm sido parceiras constantes na luta em defesa dos interesses da sociedade civil brasileira.

É uma parceria que tem se mostrado eficaz e necessária, merecendo o justo reconhecimento por parte da população brasileira. Mais que nunca, precisa ser mantida e fortalecida.

Juntas, as duas instituições deram mostras de bravura e determinação em momentos decisivos para a cidadania deste país, na luta contra o arbítrio e a violência institucional, tendo sido fundamentais na reconquista das liberdades e no restabelecimento do Estado democrático de Direito, a partir de 1985.

Ontem, era a luta contra a censura, contra a violação sistemática dos direitos humanos, pelo restabelecimento de eleições diretas e liberdade de organização político-partidária e ideológica. Hoje, é a luta pela justiça social. Se a luta de ontem envolvia riscos pessoais, em que tantos tombaram, a de hoje mostra-se mais complexa, mais desafiante.

Ao tempo do arbítrio, era mais fácil identificar o inimigo comum e, em conseqüência, somar forças para derrotá-lo. Hoje, a luta é mais sofisticada. Não basta diagnosticar a enfermidade. É preciso consensualizar os procedimentos terapêuticos para extirpá-la. Mais: é preciso conhecer nossos limites e lutar para expandi-los.

Nosso desafio é dar conteúdo social e moral ao Estado democrático de Direito. Que é a democracia num quadro social em que os excluídos são a maioria? Simplesmente inexiste. É abstração jurídica. Se a democracia é o regime da maioria e a maioria está fora do processo civilizatório, então não há democracia. Temos hoje quase tudo o que reivindicávamos na luta contra o arbítrio: liberdade de expressão, de organização partidária, eleições diretas em todos os níveis.

Mas não temos justiça social e sem ela, o que temos é muito pouco. Quase nada.

O artigo 3º da Constituição Federal, de 1988, estabelece que “constituem objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil:

I – construir uma sociedade livre, justa e solidária;

II – garantir o desenvolvimento nacional;

III erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais;

IV – promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade os quaisquer outras formas de discriminação.”

Como se vê, srs. Bispos, continuamos inconstitucionais.

Se outra razão não tivéssemos para protestar contra a política econômica em curso, teríamos esta: é inconstitucional. Flagrantemente inconstitucional. Em vez de contribuir para a redução das desigualdades, para a erradicação da pobreza e a garantia do desenvolvimento nacional, como determina a Carta Magna a lei suprema do país -, promove exatamente o oposto:o agravamento da pobreza, a recessão e a exacerbação das desigualdades.


E o que fazer diante disso? Eis aí a complexidade que mencionei, que torna mais difícil a luta do Brasil redemocratizado que a luta anterior, contra a ditadura.

Grande parte das decisões fundamentais para a economia brasileira não são tomadas em nosso país e nem por nossos governantes. Constatamos diariamente, pela mídia, a impotência de nossos dirigentes econômicos diante de exigências impostas por organismos financeiros internacionais, que frustram sistematicamente o desenvolvimento do país, impedindo que o resgate da dívida social sequer se esboce. Impedindo que os objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil, conforme estabelecido na Constituição, se cumpram. O projeto nacional, definitivamente, não pode depender da taxa de juros que o Federal Reserve estabeleça para os Estados Unidos.

O Presidente Lula sabe que se elegeu sob a égide da mudança. Sabe o tamanho da responsabilidade que lhe pesa nos ombros. O recado embutido na sua vitória foi um só: o de redirecionar o país no rumo das transformações sociais. Mas, transcorrido um terço de seu mandato, ainda não conseguiu dar um único passo concreto nessa direção.

Seu governo mantém na economia a mesma lógica perversa que aprofundou o abismo social que piora a olhos vistos.

É nítida a angústia do Brasil diante desse quadro. Constata-se que está manietado, refém do modelo econômico ortodoxo, que privilegia o sistema financeiro em detrimento da produção, estimulando a especulação e punindo o emprego. O resultado aí está: sucessivos recordes de desemprego em apenas um ano e meio de mandato.

Na campanha eleitoral, o Presidente prometeu gerar dez milhões de empregos nos seus quatro anos de mandato (ou seja, 2,5 milhões por ano).

Já se sabe que, a persistir o modelo que aí está, isso não será possível. Basta ver que, findo o primeiro ano de mandato, em vez dos 2,5 milhões de novos postos de trabalho, o que tivemos foi um decréscimo: nada menos que a supressão de 700 mil postos de trabalho. Mais desemprego, mais exclusão.

E a tendência, mantido o atual modelo econômico, não é de melhora é de piora. E quem diz isso não sou eu, mas organismos insuspeitos para dizê-lo, como o Banco Mundial e o próprio FMI. Esta semana, o Banco Mundial afirmou e a mídia nacional deu ampla cobertura a essas afirmações que “a situação de miséria no Brasil deve persistir por muito mais tempo na comparação com o resto do mundo, mesmo que o país volte a crescer a taxas muito mais elevadas que as atuais”. Vejam bem: mesmo que o país volte a crescer a taxas muito mais elevadas que as atuais o que não está previsto nem pelo analista mais otimista do governo federal.

Segundo o Bird, a disparidade de distribuição de renda no país é fator-chave que continuará travando o processo de diminuição do número de miseráveis. Até a Índia diz o Banco Mundial tem programas mais efetivos de integração de miseráveis que o Brasil.

Para o Banco Mundial, o Brasil teria de aumentar em dez ou quinze vezes o volume de dinheiro em programas como o Bolsa-Escola para compensar as disparidades de renda e integrar os mais pobres ao mercado. Não há, porém, verbas para fazê-lo. A equipe econômica aumentou espontaneamente a margem de superávit fiscal a verba destinada a pagar bancos de 3,5% para 4,25, reduzindo ainda mais a capacidade do país para investimentos.

O Brasil e a análise é ainda do Banco Mundial tem um dos piores índices de distribuição de renda da América Latina. Cerca de 20% da população mais pobre recebe apenas 2% da renda nacional. Na Argentina, que não é nenhum exemplo de grandeza na matéria, esse percentual é de 3,1%, e na Bolívia (pasmem!), de 4%.

Na Índia sempre invocada como paradigma de precariedade social, esse percentual de participação dos pobres na renda nacional subiu para 8,9%. E nós exibimos ainda indecentes e imorais 2%!

O relatório do Banco Mundial de onde extraio esses dados afirma que o percentual de pessoas na América Latina vivendo com menos de 2 dólares por dia é de um quarto da população e o Brasil, maior e mais rico país da região, “vem contribuindo para a estagnação da diminuição do número de miseráveis na região”.

E cito aqui outro dado do relatório que nos constrange constatar:

“A América Latina e o Brasil estão na contramão do resto do mundo, que diminuiu pela metade o número de miseráveis nos últimos 20 anos: de 39,5% para cerca de 21%”.

Vejam bem: não se trata de uma utopia. É possível reduzir drasticamente e em relativo curto prazo a exclusão social. O Bird menciona programas regionais diferenciados aplicados pela China nesse sentido. Cita a Índia e outros países. Por que não ousamos mais?

Há pouco, o governo brasileiro teve uma única e escassa ousadia, ao propor ao FMI desconsiderar, para efeito de cálculo do índice de superávit fiscal, os investimentos em infra-estrutura. Uma proposta tímida, mas importante, considerada pertinente e aplaudida pelos países em desenvolvimento. Está em exame e é, até aqui, o único gesto propositivo concreto para atenuar a camisa-de-força do modelo ortodoxo em vigor.


Precisamos ousar, discordar, propor, fazer valer o peso político e econômico do Brasil, que não é pequeno. Senhores, não podemos continuar passivos.

A persistir o atual quadro, estaremos abdicando, num primeiro momento, da paz pública – e, num segundo momento, de nossa própria soberania.

Neste mês de abril, tivemos uma pequena amostra do grau de exacerbação social em que vive o país.

Vários conflitos eclodiram simultaneamente. Tivemos a guerra do tráfico, no Rio de Janeiro; o massacre dos garimpeiros, em Rondônia; as invasões do MST em diversos estados; a rebelião penitenciária em Rondônia.

São as diversas faces da tragédia social brasileira, de nossa guerra civil não declarada mas escancarada.

Ou se faz alguma coisa de concreto e com rapidez ou a tendência é a piora, o agravamento desse quadro. Quero aqui evocar, a propósito dessas reflexões, recentes palavras de dom Geraldo Majella Agnelo, a respeito do drama social brasileiro, que tenho citado em minhas manifestações, país afora.

Disse ele e eu endosso, sem retoques: “A fome e a miséria sempre existiram no Brasil. Porém, nunca foram tão visíveis como agora. Antigamente, a gente via pelas ruas a pobreza. Hoje, o que enxergamos é a miséria.”

E ainda:

“A política econômica precisa atender, prioritariamente, aos problemas sociais do Brasil (…), mas o que estão fazendo com os brasileiros é uma violência contra o homem, é um desrespeito à dignidade. O governo não deveria colocar a parte econômica em primeiro lugar. O que deve estar em primeiro lugar são as necessidades do nosso povo”.

Como disse, são palavras que expressam com fidelidade o sentimento da sociedade brasileira. Nossos elites dirigentes e isso vem desde as origens de nossa formação habituou-se a agir apenas sob a pressão dos acontecimentos. Não se vai à origem dos problemas, não se concebe uma estratégia consistente para erradicá-los. Quando determinado problema está sob o foco da mídia, busca-se um paliativo para tirá-lo de foco não para resolvê-lo.

Há dias, a propósito da guerra de traficantes na Favela da Rocinha, no Rio de Janeiro, dirigi-me, em nome da OAB, a uma autoridade estadual para propor uma ação conjugada com vistas àquele drama social. Disse-lhe que o poder e influência do tráfico no Rio decorriam fundamentalmente da ausência do Estado perante a comunidade que habita morros e periferia.

Essa omissão foi suprida espertamente pelo crime organizado, que presta algumas benfeitorias em troca da adesão ingênua dos moradores, dos quais se vale, mesmo quando não há essa adesão, como escudo humano contra a ação policial. Cabe então à sociedade civil dizia eu a essa autoridade estadual fluminense estabelecer uma presença mais visível e ativa junto a essas comunidades, compensando a ausência do Estado e oferecendo alternativa digna aos serviços prestados pelo crime organizado.

Para minha surpresa, ouvi dessa autoridade o seguinte: que a crise da Rocinha já estava sob controle e que o foco da mídia agora estava nos índios cintas-largas e no massacre dos garimpeiros. Algo assim como “a bola da vez não está mais com a gente”. Ou ainda: “tchau e até a próxima crise”.

Nossas elites dirigentes acostumaram-se a administrar por espasmos, a varrer o lixo para debaixo do tapete, a maquiar a miséria. Só que isso tem limite e claro está que chegamos a ele. Não há mais como varrer o lixo para debaixo do tapete por uma razão simples: o tapete ficou curto e o lixo acumulado já o ultrapassa.

A eleição de Lula é a hora da verdade, o ajuste de contas da história e o presidente e os que integram o seu governo não podem perder isso de vista, pois esta realidade continuará a ser cobrada, cada dia com maior contundência. Quantas rocinhas serão necessárias para que nossas elites percebam 1que é preciso resgatar a dívida social?

A OAB, como a CNBB, não faz política partidária. Nem tem ideologia. Nossa ideologia é a da cidadania, da ampliação de direitos. Estamos comprometidos estatutariamente com a defesa da Constituição, da ordem jurídica do estado democrático de Direito, dos direitos humanos e da justiça social. É um compromisso de nosso estatuto. Isso nos envolve com o quadro político-institucional do país, embora não com o jogo partidário. Temos quanto a isso compromissos semelhantes aos da CNBB. Não é casual, por isso mesmo, que tenhamos compartilhado, ao longo das últimas décadas, da mesma trincheira de lutas institucionais.

Reitero que os desafios deste momento impõem o estreitamento desses laços históricos, na luta comum e inadiável pela articulação da sociedade brasileira em defesa de seus mais elementares direitos de cidadania e de sobrevivência. Não é uma luta contra o governo ou contra quem quer que seja.

É uma luta a favor do Brasil e da dignidade humana, dos excluídos socialmente, sem um modelo pronto para enfrentar esse desafio, mas pronto para a ação. Isto é, em síntese, uma luta cristã, em síntese.

Que Deus nos guarneça e abençoe para enfrentá-la. Muito obrigado.

Tags:

Encontrou um erro? Avise nossa equipe!