Combate à escravidão

Relator apóia PEC que expropria terras onde há trabalho escravo

Autor

28 de abril de 2004, 19h21

O relator da Proposta de Emenda Constitucional (PEC nº 438/01) que expropria terras de quem explora o trabalho escravo, Tarcísio Zimmerman (PT-RS), apresentou parecer favorável à aprovação do documento à Comissão Especial da Câmara dos Deputados, nesta quarta-feira (28/4).

Ao final da apresentação, o deputado Asdrubal Bentes (PMDB-PA) pediu vista do relatório. Ele alegou que o relatório de Zimmermann está incompleto. Bentes entende que não é possível condenar alguém de prática de trabalho escravo se não há uma definição clara sobre esta modalidade. “Não há crime sem lei anterior que o defina”, defendeu.

O relator rebateu as considerações de Bentes e afirmou que existem definições sobre o que é trabalho escravo no próprio Código Penal. Ressaltou, no entanto, que neste momento o fundamental é prever na Constituição Federal a possibilidade da expropriação da terra, porque a legislação atual estabelece o direito inviolável da propriedade.

Zimmermann destaca a importância da aprovação da PEC para ajudar no combate ao trabalho escravo. Segundo ele, apesar das fiscalizações terem sido intensificadas no Brasil nos últimos anos, o problema ainda é freqüente em várias regiões. Cerca de 25 mil pessoas estão reduzidas à condição de escravos.

Segundo ele, ações fiscais demonstram que quem escraviza no Brasil não são proprietários desinformados ou arcaicos. Pelo contrário, são latifundiários que produzem, inclusive, para o mercado internacional.

Ele informou, no relatório, que uma das formas de escravidão mais utilizadas no Brasil é a chamada servidão por dívidas. A modalidade ocorre quando os trabalhadores são forçados a trabalhar diariamente para pagar seus débitos. Recebem por isso não mais que abrigo e alimentação como forma de pagamento, e de maneira geral não conseguem quitar a dívida.

A expectativa é de que o relatório volte à apreciação da Comissão Especial na próxima quarta-feira (5/5), quando deverá ser votado e seguir para Plenário.

O representante do Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil, Roberto Caldas, disse que a sociedade civil, por meio da OAB, e as diversas entidades engajadas na luta contra o trabalho escravo continuarão mobilizadas pela rápida aprovação da PEC de autoria do ex-senador Ademir Andrade.

Caldas considerou o relatório “um grande avanço na luta contra o trabalho escravo, marcando o início do fim da impunidade nessa área”. A OAB integra o Conselho Nacional pela Erradicação do Trabalho Escravo (Conatrae). (Com informações da Agência Brasil e da OAB)

Leia íntegra do relatório

COMISSÃO ESPECIAL DESTINADA A DAR PARECER À PROPOSTA DE EMENDA À CONSTITUIÇÃO Nº 438-A , DE 2001

Dá nova redação ao art. 243 da Constituição Federal

Autor: SENADO FEDERAL

Relator: DEPUTADO TARCÍCIO ZIMMERMANN

I – RELATÓRIO

O Senado Federal enviou à Câmara dos Deputados a Proposta de Emenda à Constituição nº 438-A, que altera o art. 243 da Constituição Federal, para dispor sobre o confisco do imóvel rural em que for constada a exploração de trabalho escravo, revertendo a área para o assentamento do trabalhadores que estavam sendo explorados no local. Da mesma forma, pelo texto da Proposta, serão confiscados todos bens de valor econômico apreendidos em decorrência da exploração do trabalho escravo. Em ambos os casos a expropriação prescindirá de qualquer indenização ao expropriado.

A Comissão de Constituição e Justiça e de Cidadania manifestou-se pela admissibilidade da Proposta de Emenda à Constituição nº 438, de 2001. Enviada à Comissão Especial, tramitou em conjunto com as proposições PEC-300/2000, do Deputado Roberto Pessoa e outros, PEC-235/2004, do Deputado Milton Barbosa e outros, PEC-21/1999, do Deputado Marçal Filho e outros, PEC-232/1995, do Deputado Paulo Rocha e outros, todas modificando o art. 243 da Constituição Federal, para determinar a expropriação de terras onde seja explorado trabalho escravo, e a PEC-189/1999, do Poder Executivo, que também altera o art. 243 da Constituição Federal, para dispor sobre a expropriação de glebas que se prestem, de qualquer modo, ao tráfico ilícito de entorpecentes.

Encerrado o prazo regimental, três emendas foram apresentadas. A Emenda nº 1, de autoria do Deputado Ronaldo Caiado e outros, faz inserir dispositivo tipificando como crime hediondo a conduta que, de qualquer modo, concorra para a exploração de trabalho escravo em gleba de qualquer região do País. A emenda nº 2, de autoria da Deputada Kátia Abreu, estende a sanção de confisco, em razão de exploração de trabalho escravo, às áreas urbanas e faz inserir dispositivo determinando que a expropriação apenas se consumará após o trânsito em julgado da sentença condenatória, garantindo-se o contraditório e a ampla defesa. A emenda nº 3, também de autoria da Deputada Kátia Abreu, tem por escopo garantir a retenção de parte do bem a ser expropriado ou a sua compensação financeira, em benefício do cônjuge e dos filhos menores que não tenham participado, direta ou indiretamente, das condutas que caracterizaram a exploração do trabalho escravo.


A Comissão Especial realizou quatro audiências públicas ouvindo autoridades e personalidades ligadas à questão do trabalho escravo.

É o relatório

II – VOTO DO RELATOR

A REALIDADE DO TRABALHO ESCRAVO

A modalidade clássica de escravidão, aquela que, juridicamente transforma um homem em propriedade de outro, não mais existe no Brasil. Todavia, o trabalho escravo, juntamente com outras modalidades condenadas de exploração do trabalho humano, ainda persiste aqui e em vários países, atingindo até as regiões mais ricas do planeta. Neste momento, milhões de homens, mulheres e crianças estão sendo forçados a viver suas vidas como escravos. Embora a exploração a que são submetidos não se enquadre no modelo clássico de escravidão, sua condição é a mesma. Essa pessoas são tratadas como objetos, forçadas a trabalhar por pouco ou nenhum pagamento e colocadas à mercê de seus empregadores.

No plano internacional, a abolição da escravidão foi objeto de vários tratados: a Convenção de Genebra sobre a escravatura, de 1926, a Convenção nº 29, da Organização Internacional do Trabalho, de 1930, a Declaração Universal dos Direitos Humanos, de 1956, a Convenção Suplementar sobre a Abolição da Escravatura, do Tráfico de Escravos e das Instituições e Práticas Análogas à Escravidão, de 1956, e a Convenção nº 105, relativa à Abolição do Trabalho Forçado, de 1957. Inobstante isso, a prática do trabalho escravo é um fato hoje, mesmo nos territórios dos Estados que a baniram legalmente também no plano interno. As formas contemporâneas de escravidão assumem diversas modalidades e afetam pessoas de todas as idades, de ambos os sexos, e de todas as raças.

Uma das formas contemporâneas de escravidão mais utilizadas é a chamada servidão por dívidas. Segundo dados da Organização Internacional do Trabalho – OIT, essa modalidade afeta pelo menos vinte milhões de pessoas no mundo inteiro. Os trabalhadores caem na servidão por dívida quando tomam empréstimos ou são ardilosamente levados a tomá-los para custear remédios, alimentação, transporte ou habitação. Para pagar seus débitos, eles são forçados a trabalhar por longas jornadas, diariamente, sete dias por semana, durante todo o ano. Recebem por isso não mais que abrigo e alimentação como forma de pagamento e nunca conseguem quitar sua dívida, mas são forçados a continuar trabalhando por meio do uso ou ameaça de violência e do isolamento. Esses trabalhadores passam então a ser “possuídos” e controlados por seus pseudo-empregadores, sofrem maus tratos físicos ou mentais e restrição na sua liberdade de movimento. Em resumo, são desumanizados e tratados como “coisa”.

No Brasil, a servidão por dívida é a principal, senão quase exclusiva, forma de escravização de trabalhadores. Embora possa ocorrer no meio urbano, sua freqüência é muito maior em áreas rurais, onde encontra condições mais favoráveis para prosperar, tais como o isolamento e a dificuldade de acesso, a dispersão populacional, a ausência do Estado, a pobreza, o baixo nível de organização sindical dos trabalhadores, a falta de outras oportunidades de trabalho e a desinformação. Todos esses elementos aumentam as chances ou mesmo asseguram a impunidade, estimulando essa forma de violação da dignidade humana.

Alguns exemplos retirados dos Relatórios de Fiscalização do Ministério doTrabalho e Emprego são bem ilustrativos:

“Estamos em 2001. Raimundo Nonato da Silva é um brasileiro, trabalhador rural. Foi contratado em Açailândia, no Maranhão, por um intermediário, o “gato”, para trabalhar numa fazenda, distante cento e cinqüenta quilômetros dali. O gato ofereceu-lhe oitenta reais por hectare para roçar juquira, livres de despesas e alojou-o em um hotel. Na fazenda as coisas começaram a mudar. Raimundo tinha de trabalhar de segunda a domingo, sem fins-de-semana ou feriado. Para começar o dia, farinha com óleo, cebola e sal no café da manhã. No almoço, farinha e feijão. O que mais quisesse tinha que comprar no barracão, inclusive botinas e ferramentas de trabalho, tudo vinculado ao salário. Feitas as contas no fim de mês, nada a receber. O “gato” sempre por perto, rondava Raimundo e os demais empregados. Além do “gato”, um tal “Carlinhos”, segurança, sempre de espingarda na mão, fazia ameaças. Ninguém sai da fazenda sem pagar a dívida diziam, exibindo ora um revólver calibre trinta e oito, ora um espingarda calibre vinte e oito. Um dia , tentaram matar o Mineiro, colega de trabalho de Raimundo. Graças a Deus, Mineiro conseguiu escapar dos tiros, embrenhando-se na mata. Raimundo viu tudo e teve coragem de testemunhar mais tarde, quando ele e mais dezessete trabalhadores foram libertados do trabalho escravo na propriedade “Fazendas Reunidas São Marcos e São Bento, na zona rural de Carutapera, no Maranhão.” (Extraído do Relatório de Fiscalização no Estado do Maranhão, de 3 a 16/10/2001, MTE).


“Wedras dos Santos Gomes tem apenas treze anos e foi trabalhar com seu pai na Fazenda Cangussu, Município de Bom Jardim, no Estado do Maranhão. Wedras tem de trabalhar de 7:00 às 17:00 e não vai à escola. Se tem sede, bebe a água do córrego, a mesma que os animais usam, por isso sofre constantemente diarréias. Não há um banheiro para ele usar no barraco coberto com taipa onde dorme, então precisa fazer suas necessidades no mato. Wedras, seu pai e quase todos os trabalhadores chegaram ali pelas mãos do Chagas, o “gato”. Chagas deixou os trabalhadores por lá e foi-se embora.

A alimentação, arroz, feijão, farinha, açúcar e café, o pai de Wedras compra no barracão. Quem fornece é o Sr. Max, o dono da fazenda. As botas que usa para trabalhar também tiveram de ser compradas na fazenda. Ele, seu pai e os outros empregados só poderão sair da fazenda quando pagarem a dívida com o Sr. Max. Não sabe quanto devem, ninguém sabe, mas o Sr. Max tem tudo anotado no “caderninho”. Não recebe salário, apenas trabalha para pagar a dívida. Wedras gostaria de ir embora dali e de ir à escola, mas o Sr. Max, com mais três homens armados com revólveres e espingardas de dois canos, dizia que quem estava em débito com a cantina não podia sair.

Quando o Grupo Móvel de Fiscalização chegou ao local em novembro de 2001 para resgatar Wedras, exigiram do Sr. Max o pagamento dos salários atrasados dos empregados. O Sr. Max, já assistido por seus advogados, respondeu que não pagava nem morto. Eles, os empregados, é que lhe deviam: “veja os cadernos onde estão anotadas as suas dívidas comigo”, argumentou o Sr. Max diante da fiscalização.” ( Extraído do Relatório de Fiscalização no Estado do Maranhão, de 3 a 16/10/2001, MTE).

Está superada a fase em que se discutia a existência do trabalho escravo no Brasil. Tempo em que, embora tendo assinado todas as convenções internacionais sobre o tema e avançado na sua legislação laboral, o Governo brasileiro ignorava as denúncias sobre o assunto, e a sociedade, mal informada, desconhecia os reais contornos da questão, por julgá-la inacreditável. As entidades de defesa dos direitos humanos, especialmente a Comissão Pastoral da Terra, as entidades representativas dos trabalhadores e os parlamentares, principalmente os das regiões mais atingidas, prosseguiram denunciando a existência do trabalho escravo. Essa persistência conseguiu sensibilizar as organizações internacionais, especialmente a OIT, e culminaram na condenação do Estado brasileiro, pela Comissão Interamericana de Direitos Humanos da OEA, a indenizar um trabalhador vitimado pela escravização. O Governo brasileiro aceitou sua responsabilidade e o ciclo de discussão sobre a existência do trabalho escravo foi fechado.

Estima-se que existam, hoje, perto de vinte cinco mil trabalhadores sujeitos ao trabalho escravo no Brasil. Como resposta, o Governo brasileiro elaborou o Plano Nacional para a Erradicação do Trabalho Escravo, buscando construir uma política pública permanente, dedicada à repressão do trabalho escravo. A alteração constitucional, permitindo a expropriação de imóveis onde forem encontrados trabalhadores escravizados, é, aliás, uma da metas desse Plano.

A criação do Grupo Executivo de Repressão ao Trabalho Forçado – GERTRAF (Decreto Presidencial nº 1538, de 27 de junho de 1995), com a finalidade de coordenar e implementar as providências necessárias à repressão ao trabalho forçado, e do Grupo Especial de Fiscalização Móvel (Portarias nºs 549 e 550, de 14 de junho de 1995), como o braço operacional do GERTRAF, marcam o efetivo esforço do Estado brasileiro no combate a esta forma de exploração do trabalho. A partir de então, através da centralização de comando, do sigilo na apuração de denúncias, da padronização de procedimentos e da atuação em parceria de auditores fiscais, membros do Ministério Público Federal e do Trabalho e policiais federais, temos um avanço progressivo no número de ações fiscalizatórias e na sua eficiência marcada pela efetiva identificação das práticas do trabalho escravo e da libertação dos trabalhadores.

Avançando nas estratégias de combate, prevenção, dissuasão do trabalho escravo e geração de alternativas de trabalho rural, surgiu a Comissão Nacional de Erradicação do Trabalho Escravo, CONATRAE (Decreto Presidencial sem número de 31 de julho de 2003). A Comissão sucedeu o GERTRAF na missão de acompanhar o cumprimento das ações do Plano Nacional, a tramitação de projetos de lei no Congresso Nacional, avaliar os projetos de cooperação técnica com organismos internacionais e propor estudos e pesquisas sobre o trabalho escravo no país.

AS LACUNAS DA LEGISLAÇÃO E OS IMPASSES DA ERRADICAÇÃO EM VIRTUDE DA IMPUNIDADE

A disposição do Estado e da sociedade brasileira hoje não é apenas a de combater o trabalho escravo e sim erradicá-lo. Os obstáculos que se levantam nesse caminho são muitos. Além da necessidade de aparelhamento da fiscalização, num país de dimensões continentais, há o problema de que as sanções administrativas circunscrevem-se ao descumprimento da legislação do trabalho. O valor das multas não tem por si só o potencial de inviabilizar economicamente o “negócio” da escravidão. Em alguns casos, a cobrança em juízo pode se tornar mais dispendiosa do que o valor da multa.


Em dezembro de 2003, o art. 149 do Código Penal Brasileiro foi alterado para dispor sobre o crime de reduzir alguém à condição análoga à de escravo. Apesar do esforço do legislador, esse crime ainda é descrito de forma subjetiva, cabendo à doutrina e à jurisprudência definir o que seja reduzir alguém à condição análoga à de escravo. A persecução criminal enfrenta, ainda, dúvidas sobre a definição da competência para julgar o crime. A jurisprudência do STF, à semelhança do que ocorre na caracterização dos crimes contra a organização do trabalho, entende que o crime não deve ser julgado perante à Justiça Federal, porquanto não atingiria o conjunto dos trabalhadores. Essa jurisprudência, na verdade, foi herdada do antigo Tribunal Federal de Recursos e, de uma certa forma, refletia a falta de estrutura da justiça federal que não estava organizada em todos os Estados. Infelizmente, não há, ainda, varas da Justiça Federal próximas aos locais de maior ocorrência de trabalho escravo. Esse detalhe poderá prejudicar a oitiva de testemunhas e a produção de provas, dificultando a instrução do processo e inviabilizando a condenação. Por essas razões suspeitamos que haverá muitas dificuldades para que os processos por crime de trabalho escravo resultem em condenação efetiva na esfera penal.

A ineficácia do sistema de sanções pode ser demonstrada pelos casos de reincidência. Apesar das fiscalizações realizadas, das multas aplicadas e mesmo dos processos criminais encaminhados, há casos de propriedades rurais que foram autuadas novamente, pouco tempo depois, pelo mesmo motivo (Fazenda Primavera, no Município de Curionópolis-PA, Fazenda Boca Quente, em Bannach-PA, Fazenda Forkilha, em Santa Maria das Barreiras-PA e Fazenda Estrela de Maceió, em Santana do Araguaia-PA).

Segundo o Ministério do Trabalho e Emprego, o Grupo Móvel de Fiscalização , no período de 1995 a 2003, fiscalizou 1.014 propriedades rurais. Encontrou exploração de trabalho escravo em 262, libertando 10.789 trabalhadores. Em 1995 foram registrados três casos de trabalho escravo em 77 propriedades fiscalizadas e libertados 84 trabalhadores. Esses números subiram em 2003 para 135 casos de trabalho escravo em 197 propriedades fiscalizadas, resgatando-se 4.995 trabalhadores. Esses dados demonstram que a fiscalização tem aumentado sua eficiência e reprimido com vigor a exploração do trabalho escravo. Todavia, apesar de tantos crimes registrados, só se tem notícia de um único caso de um escravizador condenado. Mesmo assim, a pena foi convertida em entrega de cestas básicas.

Existe a necessidade de estabelecer definições claras sobre a federalização dos crimes contra os direitos humanos, pois, apesar dos avanços e de todo esforço já feito, tais lacunas geram impasses na erradicação do trabalho escravo e fragilizam a posição do Estado brasileiro, internamente, perante as vítimas e a sociedade; externamente, perante a comunidade internacional, por força dos tratados assinados que o país se obrigou a cumprir.

Tendo em vista que, como já afirmamos, o objetivo do Governo Federal é erradicar o trabalho escravo e não simplesmente combatê-lo, o exame dos dados que procedemos acima vem confirmar que a eficiência da fiscalização é fator importante no combate à escravidão, mas para dar um basta à essa situação, o mais rapidamente possível, será necessário adotar medidas ainda mais enérgicas tais como a que ora se examina, permitindo a expropriação de propriedades.

O DEBATE SOBRE A CONCEITUAÇÃO DO TRABALHO ESCRAVO EM FACE DOS PRECEITOS CONSTITUCIONAIS E DOS TRATADOS INTERNACIONAIS

Podemos afirmar que a exploração do trabalho escravo no Brasil não se deve à omissão de nossas leis e costumes. Ao contrário, essa forma de violação é repudiada pelo ordenamento jurídico e sua punição é cobrada pela sociedade de forma contundente. O trabalho escravo só se explica, hoje, no Brasil, como a exploração de um negócio ilícito por parte de indivíduos que se escondem atrás da honrosa atividade de produtor rural. Não são produtores rurais! São exploradores das vantagens econômicas do crime, como o são os exploradores da prostituição, do comércio ilegal de entorpecentes, do tráfico de armas e de outras atividades ilícitas, mas lucrativas. Nesse sentido, a expropriação das terras desses pseudo-empreendedores rurais atinge o núcleo da questão: a inviabilização econômica da exploração do trabalho escravo pela imposição de pesados custos punitivos.

Apesar de justo e necessário, o emprego dessa medida suscitou dúvidas sobre a conceituação de trabalho escravo, questão importante, porquanto não se deseja de forma alguma expropriar verdadeiros proprietários rurais em razão de falhas no cumprimento da legislação do trabalho.

Como já afirmamos acima, não tratamos da escravidão clássica, mas das modernas formas dessa odiosa forma de aviltamento da dignidade humana. O uso do termos “trabalho análogo ao de escravo” em lugar de “trabalho escravo” não torna a questão mais clara. O trabalho escravo, como modalidade de trabalho forçado, já foi suficientemente descrito nas convenções internacionais, principalmente a Convenção nº 29, a Convenção Suplementar de 1956 e a Convenção nº 105, todas da OIT. Os termos “trabalho escravo” e “modernas formas de escravidão” são correntemente usados pela comunidade internacional e pelas organizações internacionais de que o Brasil faz parte para descrever a servidão por dívida.


Já no preâmbulo da Constituição Federal, o leitor interessado terá diante de si, dentre os fins e os valores que a Carta quer alcançar, o exercício da liberdade, dos direitos sociais e individuais, a dignidade da pessoa humana e os valores sociais do trabalho. O preâmbulo condensa as idéias-força políticas, jurídicas, econômicas e culturais da nossa sociedade. Essas idéias-força se desdobrarão em normas e princípios ao longo títulos e capítulos.

Dessa forma, a dignidade da pessoa humana e os valores sociais do trabalho têm guarida de pronto no art. 1º, II e IV da Constituição Federal. O exercício das liberdades individuais vem protegido no caput e incisos do art. 5º e os direitos sociais ligados à pessoa do trabalhador estabelecidos no art. 7º. Nesse mesmo diapasão, a Constituição Cidadã promoveu um avanço extraordinário na persecução de seus objetivos ao estabelecer, no art. 170, como princípio fundante da Ordem Econômica e Financeira, ao lado da propriedade privada, a função social da propriedade. E, com base nessa diretriz, dispôs sobre a desapropriação da propriedade urbana subutilizada (art.182, §4º, III,), a desapropriação para fins de reforma agrária (art. 184) e a expropriação de terras utilizadas para cultivo ilegal de plantas psicotrópicas (art. 243).

O cotejo dessa legislação com os direitos e as garantias individuais previstos no art. 5º e com os direitos sociais do trabalhador previstos no art. 7º da Constituição Federal, permite aos órgãos de repressão, à comunidade jurídica e aos magistrados uma compreensão segura do conceito de trabalho escravo.

Dessa forma, não há que prosperar o entendimento de que a emenda constitucional deva regular ela mesma o conceito de trabalho escravo. Essa providência, além de desnecessária, é profundamente incompatível com a natureza jurídica da norma constitucional. A emenda tem a função de excepcionar o direito de propriedade em razão da função social da propriedade e da defesa da dignidade humana. Caberá à lei ordinária regular em detalhes, se necessário, essa decisão constitucional, dando-lhe densidade e concretude. É da natureza da lei ordinária e complementar ser ferramenta regulamentadora da norma constitucional, assim como o decreto, se necessário, regulará a lei e, da mesma forma, a resolução, a portaria etc. Tudo progredindo concertadamente do geral ao particular.

Nessa etapa do processo legislativo, a discussão deve se concentrar no mérito da permissão para expropriação de terras prevista na PEC 438-A, que nos parece em harmonia perfeita com a ordem constitucional em vigor. Isso não impede a edição de lei ordinária para regular o disposto constitucional a ser aprovado. Ao contrário, entendemos ser fortemente recomendável, afim de garantir a aplicação efetiva da norma constitucional, que a lei regule a matéria. Não apenas o conceito de trabalho escravo pode ser detalhado, mas, também, e principalmente, questões como o procedimento administrativo necessário ao ato expropriatório, a autoridade judicial competente para conhecer da ação de expropriação e o procedimento especial de rito sumário, sem o qual o processo poderá se arrastar durante anos sem solução.

A EFICÁCIA DA PEC PARA A ERRADICAÇÃO DO TRABALHO ESCRAVO

Devemos ter sempre em mente que o compromisso atual do Estado brasileiro não é apenas combater o trabalho escravo, mas erradicá-lo. Nesse sentido, a possibilidade de expropriação das terras utilizadas para a prática desse crime desce à raiz do problema, inviabilizando economicamente a atividade, como já assinalamos acima. Estamos certos que a aprovação da PEC dará ao Estado um instrumento de punibilidade ágil, eficiente e adequado. Isso significará, sem dúvida, o fim da impunidade. A experiência ensina que em relação a qualquer prática criminosa, somente a certeza da sua punição é capaz de erradicá-la.

AS EMENDAS APRESENTADAS

Cabe-nos, por fim, analisar as emendas apresentadas com o intuito de aperfeiçoar o texto original.

A Emenda nº 1 tipifica como crime hediondo a conduta que, de qualquer modo, concorre para a exploração de trabalho escravo em gleba de qualquer região do País. Pelo potencial lesivo dessa violação à dignidade humana, concordamos no mérito com o autor da proposta. Todavia, tal tipificação cabe à lei e não à norma constitucional. Assim, para alcançar a tipificação pretendida pela Emenda nº1, faz-se necessário alterar a Lei nº 8.072, de 1990, que dispõe sobre os crimes hediondos. Portanto, como não se trata de matéria constitucional, não podemos acolher a sugestão.

A emenda nº 2 estende a expropriação às áreas urbanas. Faz inserir dispositivo para determinar que a expropriação apenas se consumará após o trânsito em julgado da sentença condenatória, garantindo-se o contraditório e a ampla defesa. Como já evidenciamos acima, o trabalho escravo em propriedade rurais ocorre com freqüência muito maior do que em áreas urbanas, o que justifica o seu tratamento em separado. Outra peculiaridade é que nas áreas urbanas o espaço físico da propriedade (o galpão da fábrica ou oficina) não tem a mesma importância como fator de produção que tem a propriedade rural. Fator mais importante nas fábricas e oficinas urbanas são as máquinas e equipamentos operados pelos trabalhadores, e a legislação já permite o confisco dos objetos usados como instrumento para prática de crimes. Em razão dessas especificidades, pensamos que a discussão do combate ao trabalho escravo em áreas urbanas não deve ser embaraço para a aprovação imediata de medidas fundamentais para erradicação do trabalho escravo em propriedades rurais. Finalmente, não há a necessidade de vincular a expropriação ao trânsito em julgado da sentença, o contraditório e a ampla defesa, já que essas são garantias constitucionais que continuarão a vigorar na plenitude de seus efeitos após a promulgação da PEC e nem mesmo poderiam ser objeto de supressão, já que representam cláusula pétrea.


A Emenda nº 3 pretende a retenção de parte do bem a ser expropriado ou a sua compensação financeira em benefício do cônjuge e dos filhos menores que não tenham participado, direta ou indiretamente, das condutas que caracterizaram a exploração do trabalho escravo.

A expropriação exclui o direito de propriedade e é, portanto, incompatível com quaisquer efeitos decorrentes desse direito excluído, como a compensação financeira, o direito de retenção, o direito de herança, os ônus reais, etc. São institutos incompatíveis e não há como conciliar os efeitos pretendidos pela PEC com os da Emenda Nº 3. Louvamos a preocupação da autora ao tentar preservar o bem-estar dos filhos e do cônjuge do criminoso. Lembramos, todavia, que havendo conflito aparente entre valores amparados constitucionalmente, cabe ao legislador sopesar esses valores, decidindo-se por aquele que mais peso tiver para a coletividade. Pensamos que, neste momento, preservar a ordem constitucional é privilegiar a dignidade humana, os valores sociais do trabalho e a função social da propriedade.

AS PROPOSIÇÕES APENSADAS

Por determinação da Mesa Diretora, foram apensadas à PEC 438-A as proposições PEC 232/1995, PEC 235/2004, PEC 21/1999, PEC 189/1999 E PEC 300/2000, em razão da identidade do objeto de todas elas, ou seja, a expropriação das terras, cujos proprietários se negam a dar-lhe sua destinação social e a utilizam para a prática de crimes, especialmente a exploração do trabalho escravo.

O grande número de proposições apresentadas com esse objetivo dá bem a medida da determinação dos congressistas em não mais tolerar esse crime e essa covardia contra o trabalhador e contra a terra. Todas essa proposições têm o mesmo mérito da PEC 438-A, mas a aprovação desta última conduz necessariamente à prejudicialidade daquelas.

UMA NOVA ABOLIÇÃO

Joaquim Nabuco, um dos mais ilustres patronos da causa abolicionista, escrevia, em 1884, em favor de um lei agrária para o país.

“A propriedade não tem somente direitos, tem também deveres, e o estado da pobreza entre nós, a indiferença com que todos olham para a condição do povo, não faz honra à propriedade, como não faz honra ao Estado. Eu, pois, se for eleito não separarei mais as duas questões: a da emancipação dos escravos e a da democratização do solo. Uma é complemento da outra. Acabar com a escravidão não basta; é preciso destruir a obra da escravidão (…) Sei que falando assim serei acusado de ser um nivelador. Mas não tenho medo de qualificativos. Sim eu quisera nivelar a sociedade, mas para cima, fazendo-a chegar ao nível do art. 179 da Constituição do Império que nos declara todos iguais perante a Lei.”

Infelizmente para o Brasil, a Lei Áurea não foi seguida das medidas exigidas pelo ilustre parlamentar. A abolição da escravidão seguiu separada da democratização da terra e pouco ou nada se fez para que a liberdade jurídica do escravo o conduzisse às demais liberdades e conquistas da cidadania.

A recordação das palavras de Joaquim Nabuco não serve apenas para honrar a memória desse grande homem e da causa por que lutou. Serve também para lembrar que a correlação de direitos e deveres para a propriedade foi incorporada pela nossa ordem jurídica apenas um século depois, pela mãos da Constituição de 1988, que dispôs sobre a função social da propriedade, enumerando vários instrumentos para dar-lhe eficácia.

As providências que deveríamos tomar desde então para elevar a condição de todos os trabalhadores custam-nos, hoje, muito mais caro. Não podemos deixar de fazer uma profunda reflexão do significado maior da PEC 438-A. Transcorrido mais de um século desde a Lei Áurea, o Parlamento brasileiro tem diante de si a missão de discutir e votar outro importante documento jurídico sobre o trabalho escravo. Não podemos deixar, pois, de considerar que estamos diante de um momento histórico para a Nação, o momento de uma segunda Abolição.

Diferentemente da primeira, não ignoraremos os alertas daqueles abolicionistas sobre a função social da propriedade e da profunda relação entre trabalho escravo e democratização da propriedade. Por isso a PEC estabelece que a propriedade utilizada para a escravização de homens deve ser não só expropriada como também repartida entre os trabalhadores nela escravizados. Assim, pune-se severamente o escravizador e ampara-se o trabalhador libertado, promovendo-lhe a cidadania em todos os aspectos.

Por outro lado, à semelhança da primeira Abolição que não seria possível sem a resistência dos quilombolas, sem a solidariedade dos homens livres, sem a luta dos ex-escravos, poetas, jornalistas e parlamentares, essa segunda Abolição resulta da mobilização de trabalhadores humilhados e desumanizados pela ganância e pela violência, pela mobilização das organizações religiosas, das entidades promotoras dos Direitos Humanos, da sociedade e do Estado brasileiro, que não aceitam mais a continuidade de práticas que agridem a dignidade da pessoa humana.

AGRADECIMENTOS

Não poderia encerrar esse parecer sem registrar meus agradecimentos. Agradeço aos ilustres convidados que, nas quatro audiências realizadas, vieram a essa Comissão debater conosco a PEC, trazendo-nos um conjunto de análises e experiências inestimáveis para a compreensão do trabalho escravo no Brasil. Cumprimento também os membros dessa Comissão Especial, pelo enfrentamento da questão por meio do debate democrático corajoso e leal. Agradeço aos autores das Proposições apensadas, pelo elevado espírito público que demonstraram ao dar prioridade à votação da PEC 438-A, ainda que com prejuízo das matérias de sua autoria. Quero referir-me, sobretudo, à PEC 232/1995 do Deputado Paulo Rocha que introduziu, de forma pioneira, o debate sobre a necessidade da punição rigorosa com a perda da propriedade da terra para aqueles que praticarem o trabalho escravo. Felicito o Presidente Isaias Silvestre pela condução brilhante dos trabalhos, sempre sereno e firme na determinação de garantir o espaço do debate público. Finalmente, agradeço à Assessoria Parlamentar e à Consultoria Legislativa pelos subsídios técnicos oferecidos na elaboração desse parecer, cuja conclusão encaminho nos seguintes termos:

CONCLUSÃO

Diante de todo o exposto, concluímos pela APROVAÇÃO da PEC 438-A , pela REJEIÇÃO das Emendas nos 1, 2 e 3 a ela apresentadas e pela REJEIÇÃO das proposições apensadas, PEC 232/1995, PEC 235/2004, PEC 21/1999, PEC189/1999 e PEC 300/2000

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