Reforma sindical

Resultado da reforma sindical evidencia falta de diálogo

Autor

  • Márcio Túlio Viana

    é representante da Associação Nacional dos Magistrados da Justiça do Trabalho (Anamatra) na plenária do Fórum Nacional do Trabalho juiz do trabalho em Minas Gerais e professor da UFMG e da PUC-Minas.

27 de abril de 2004, 15h08

Na linguagem sindical, incorporada pelo PT, a palavra “companheiro” já se desgastou pelo uso. É como alguém dizer “bom dia”, mesmo sem estar desejando um dia bom. No entanto, a origem da palavra é rica. “Companheiro” vem do latim companionem, composto de panis e cum. Significa “comer o pão com”, ou, mais precisamente, partilhar o pão.

Numa época de crise, mas também de reconstrução, seria importante que os juizes, procuradores e advogados trabalhistas pudessem ter tido a oportunidade de participar efetivamente do Fórum Nacional do Trabalho, que acaba de construir o consenso sobre a reforma sindical. Afinal, eles lidam diariamente com conflitos do trabalho. Nesse sentido, são companheiros de viagem de trabalhadores e empresários.

Infelizmente, porém, não foi o que aconteceu. A participação de juizes e procuradores foi pouco mais do que figurativa. Só tiveram alguns minutos para expor suas idéias, e mesmo assim na plenária do Fórum, quando os consensos já tinham sido costurados.

Caso tivessem sido convidados para os debates, os procuradores poderiam explicar melhor o que tentaram dizer em exatos dois minutos – como, por exemplo, o seu desacordo com a manutenção do poder normativo da Justiça do Trabalho, ainda que mais restrito e fantasiado de “arbitragem compulsória”.

Já os juizes acrescentariam, como também tentaram fazer, que um novo modelo sindical pressupõe um mínimo de proteção ao emprego; que é importante deixar claro que os direitos contidos na Constituição são intocáveis; e que deve-se frear, ou pelo menos desacelerar, o processo crescente de transformação de normas de ordem pública em regras disponíveis.

Diriam ainda que – havendo mais de um convênio coletivo – deve prevalecer sempre o que for mais favorável ao trabalhador, como é próprio do Direito do Trabalho; e que, não sendo ele renovado, deve estender sua vigência para o futuro, como acontece em vários países.

Os juizes poderiam também sugerir uma organização sindical realmente democrática, o que implicaria não só a abertura das cúpulas para um efetivo controle das bases, mas a abertura das próprias bases para o universo crescente de terceirizados, desempregados, informais e excluídos de toda a espécie.

Proporiam ainda, entre outras coisas: um novo conceito de greve, mais adequado à Constituição, e capaz de abranger as suas formas atípicas; o fim da unicidade sindical, sem exceções; e a construção de critérios dinâmicos e democráticos para identificar o grau de representatividade dos sindicatos, não para o fim de se constituírem, mas para poder negociar.

As razões de tudo isso são simples.

Para os juizes, os problemas que afetam o nosso sindicato não decorrem apenas – e talvez nem principalmente – de um modelo corporativo. São resultado da globalização, da nova ideologia, da crise do Estado Social e sobretudo do novo modo de produzir, que fragmenta o universo operário, exclui multidões crescentes de trabalhadores e recicla boa parte dos que sobram, transformando-os em autônomos, cooperativados e estagiários, e os reaproveitando em seguida.

Assim, já não basta a liberdade de negociar. Mesmo em nível coletivo, o problema é antes de igualdade – ou de desigualdade – entre os atores sociais. Para reequilibrar um pouco a balança, é preciso afastar o medo, seja protegendo o trabalhador contra a despedida arbitrária, seja impedindo que a lei venha a ser negociada para pior.

Para os juizes, não faz sentido abrir artificialmente um espaço político para o sindicato, reduzindo o patamar já existente na lei para um mínimo ainda menor – pois isso ajudará a acelerar e legitimar o processo de desconstrução de direitos. Do mesmo modo, não lhes parece correto, nem eficaz, tentar fortalecer o sindicato de cima para baixo, concentrando todo o poder nas centrais.

Ora, de acordo com o consenso construído no Fórum, só as associações com um certo percentual de sócios poderão se tornar sindicatos; e critérios análogos são exigidos para a formação de centrais. Mas as próprias centrais – desde que tenham “gordura”, ou seja, desde que excedam os limites mínimos – podem criar sindicatos, que não estarão sujeitos àqueles critérios e poderão ser depois extintos, o que os coloca na mão delas. Aliás, toda a estrutura aponta no sentido de um completo domínio das cúpulas sobre as bases.

Além disso, os sindicatos existentes até à véspera da nova lei poderão continuar com o monopólio da representação – como se fosse uma espécie de direito adquirido. Basta uma assembléia e a inserção da cláusula nos estatutos.

Outro ponto complicado diz respeito ao conteúdo das convenções coletivas. O Fórum concluiu que a negociação deverá ser livre, “ressalvados os direitos conferidos em lei como inegociáveis”. Mas não diz qual lei será essa, sinalizando no sentido de que, no futuro, o legislador poderá – por atacado – tornar negociáveis muitos direitos hoje indisponíveis.

Aliás, há quem veja na própria ordem das reformas um indicativo dessa estratégia. Realizando-se primeiro a reforma sindical, sempre se poderá dizer, depois, que os sindicatos já estarão fortes o bastante para que os direitos mínimos sejam minimizados. Renascerá, assim, vestido de novo, o projeto de alteração do art. 618 da CLT, que o ex-Presidente Fernando Henrique Cardoso não conseguiu aprovar.

Mas a premissa é irreal: como a crise do sindicalismo é consequência de todo um novo contexto, nem mesmo a melhor das reformas a resolverá. Por isso, o papel da lei continuará sendo decisivo, e quanto mais espaço ela abrir para baixo mais difícil será construir alguma coisa para cima. Em outras palavras, o sindicato profissional, historicamente de ataque, será levado a usar suas poucas forças para se defender. Naturalmente, isso lhe dará um papel importante – mas completamente invertido, ou pervertido.

É claro que o consenso criado no Fórum tem vários pontos positivos como, por exemplo, a organização sindical por ramo de atividade. Aliás, o próprio direito adquirido ao monopólio não é absoluto – pois os sindicatos podem perdê-lo depois, seja por vontade da maioria, seja por não manter o grau de representatividade exigido.

Mas, de todo modo, como dizíamos, faltou o debate com os juizes, os procuradores e os advogados trabalhistas, que poderiam ter apresentado algumas idéias e objeções, fruto de sua experiência. E – o que foi ainda pior – faltou também a voz dos que foram excluídos da cidadania, e por isso não têm sequer acesso ao sindicato.

Autores

  • é representante da Associação Nacional dos Magistrados da Justiça do Trabalho (Anamatra) na plenária do Fórum Nacional do Trabalho, juiz do trabalho em Minas Gerais e professor da UFMG e da PUC-Minas.

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