Regime fechado

Filha adotiva é condenada por submeter mãe a sessões de tortura

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25 de abril de 2004, 9h56

O juiz da Vara Criminal de Botucatu, Italo Morelle, condenou a secretária executiva M.B.S. a dois anos de reclusão pelo crime de tortura. Filha adotiva, ela submetia a mãe — idosa e portadora do mal de Alzeheimer — a sessões de espancamento, além de privá-la de água, comida e visitas. A pena foi fixada em dois anos de reclusão, em regime fechado, porque a ré é primária.

Consta do processo que, por conveniência da família, a secretária foi incumbida de zelar pela idosa – cuidar de sua alimentação, higiene, segurança e bem estar. E que, para isso, recebia, inclusive, uma remuneração simbólica.

Os vizinhos, estarrecidos com os maus tratos sofridos pela vítima, gravaram as sessões de agressão. A secretária castigava a mãe por conta da carga de trabalho que ela representava. “Promovia tortura física e psicológica em pessoa inválida, sob seu poder e autoridade”, registrou-se.

A defesa da secretária, que domina cinco idiomas, quis desclassificar a acusação para o crime de maus tratos e alegou que a gravação feita pelos vizinhos seria ilegal.

Depois de colher provas e ouvir oito testemunhas, o juiz refutou os argumentos da defesa. Em relação à ilegalidade das gravações, ele afirmou que “o gravador foi posto no muro. Logo, a própria ré dava publicidade quanto aos atos que praticava, não havendo que se falar em proteção constitucional à intimidade. Fosse o gravador colocado no interior da sua residência, sem o seu conhecimento, talvez, aí, fosse diversa a situação.”

Morelle afirmou também que “tudo indica que, como é dos autos, a ré, altamente frustrada por inúmeros fatores de sua vida pessoal, servia-se da mãe para descontar tais frustrações, agredindo-a fisicamente e verbalmente, utilizando-a como vero objeto de tortura”.

E acrescentou: “E, note-se que voltou (a secretária) a viver com a vítima por que algumas coisas em sua vida não deram certo mas, a demonstrar a sua personalidade, exigia cinco mil reais ou uma parte da casa para de lá sair. A mãe era um empecilho”.

A defesa da secretária já entrou com recurso no Tribunal de Justiça de São Paulo. O processo aguarda manifestação do Ministério Público.

Leia a sentença:

V I S T O S et cetera

M.B.S, quantum satis qualificada e identificada no caderno dos autos a f. 57, foi denunciada e vê-se criminalmente processada pelo delito nomen júris tortura (artigo 1o., inciso II, da Lei Federal n. 9.455, de 07 de abril de 1.997).

Historia a exordial acusatória que em meados de janeiro de 2.000, na rua XXXXXX, XX, nesta urbe e comarca, a ré, submeteu pessoa sob sua guarda, poder e autoridade – M.L.Z.S – com emprego de violência e grave ameaça, a intenso sofrimento físico e mental, como forma de aplicar castigo pessoal.

Prossegue dando conta que a ré fora criada pela vítima que, à época, contava com oitenta e um anos de idade. Até pela idade avançada, possuía a vítima problemas de saúde física e mental.

Por conveniência da família, a ré fora incumbida de zelar da ofendida, no tocante a sua alimentação, higiene, segurança e bem estar e, para tanto, recebia, inclusive, módica remuneração.

Todavia, a ré maltratava a vítima, aplicando-lhe tapas, submetendo-a a humilhações e ofensas, ameaçava-a. Impedia-a de receber visitas, mantendo os portões da residência fechados.

Vizinhos, estarrecidos com os maus tratos sofridos pela vítima, gravaram o ocorrido. A denunciada assim agia para castigar a vítima, por conta da carga de trabalho que ela representava. Promovia, assim, verdadeira tortura física e psicológica em pessoa inválida, sob seu poder e autoridade.

O despacho inaugural de cunho positivo, encetador desta actio criminalis foi proferido a f. 68.

A ré foi citada e intimada in faciem cônsone certidão lançada a f. 82, revel a f. 86 e, após, interrogada a f. 120.

Defesa prévia a f. 92.

Foram inquiridas oito testemunhas (f. 99/104, 121 e 125).

Instrução encerrada a f. 126.

Observada a fase de diligências complementares a f. 127 e 129, com documentos carreados (f. 130/56).

Alfim e ao cabo, manifestaram-se as partes (f. 159/64 e 168/81).

O Ministério Público pugnou pela procedência da ação nos precisos termos vazados na inicial.

A Defesa alçou prejudicial (nulidade) e, ao fundo, bateu-se pela absolvição ou desclassificação para delito outro.

Procedi a leitura dos autos.

Sinopse ex lege.

DECIDO.

In primo loco a prejudicial alçada pela indefessa n. Defesa.

Não vinga, concessa vênia.

Na hipótese vertente observa-se a chamada interceptação ambiental. A vítima, até porque insistentemente clamava por socorro, como é dos autos, aquiesceria com tal gravação, se a tanto pudesse. Logo, e concordando ela (a vítima) com tal gravação, não haveria qualquer ilegalidade, em acordo com copiosa jurisprudência.


“Prova – Fita magnética – Gravação – Desconhecimento pela parte contrária – Ausência de ilegalidade – Prova não absoluta, servindo apenas para corroborar os depoimentos das testemunhas” (1)

Ademais, é dos autos que o gravador foi posto no muro (f. 18, verso). Logo, a própria ré dava publicidade quanto aos atos que praticava, não havendo que se falar em proteção constitucional à intimidade. Fosse o gravador colocado no interior da sua residência , sem o seu conhecimento, talvez, aí, fosse diversa a situação. Contudo e todavia, frise-se, a gravação foi feita em área externa, com relativa distância do interior da residência da ré. Gravou-se fatos públicos e notórios, escutados pela vizinhança. Não há a proteção constitucional aventada ou ilegalidade em tal fato. Por oportuno:

“Prova criminal – Fita magnética – Ausência de vedação legal – Constragimento inexistente – Ordem denegada – “Provas ilícitas são as obtidas com violação de domicílio ou das comunicações, as conseguidas mediante tortura ou maus-tratos, as colhidas com infringência à intimidade e as vedadas em decorrência da lei. Ausente demonstração de qualquer destas, não se há falar em constragimento ilegal” (2).

Outrossim, no presente caso, ante tais peculiaridades, não é possível sobrepor o pretenso interesse da ré, vazado nas alegativas de nulidade, ao interesse na apuração da verdade real.

No interessante:

Prospera a proposição acusatória.

Deveras e ver-se-á linhas avante.

Indubitável que a infeliz vítima encontrava-se sob guarda e poder da ré e, que arrostou intenso sofrimento físico e mental por conta de castigo pessoal. Depreende-se o crime de tortura, pois, subsumindo-se a conduta à descrição contida no art. 1o., II, da Lei 9.455/97.

A transcrição constante a f. 45/9 é contundente e, não há a menor dúvida que trata-se de ré e vítima, ao reverso do que intenta a combativa Defesa.

Além das inúmeras agressões verbais e ameaças, bem como, ditos altamente constrangedores para com a pobre vítima, computou-se, nada mais nada menos que vinte tapas desferidos contra a vítima.Tais fatos, constantes na gravação, representam, apenas um dos episódios a que foi submetida a vítima, por inúmeras e incontáveis oportunidades, como é dos autos.

Aliás, vale frisar que o laudo de exame de corpo de delito elaborado com a vítima constou: agressão, resultando em múltiplas lesões, em vítima idosa, indefesa e portadora do mal de Alzeheimer (f. 25).

À primeira hora (f. 23/4), perante a autoridade policial, disse a ré que jamais agrediu fisicamente a vítima. Mas, anuiu que com ela gritava, principalmente na hora do banho, chamando-a por “porca” e algumas vezes que enfiasse a “fralda no cu”. Disse que realmente colocava o cadeado vinte e quatro horas por dia, temerosa que a mãe fugisse e, não permitia que esta recebesse visitas. Declarou arrependimento.

Inquirida novamente pela autoridade policial, ratificou suas anteriores declarações e, em acréscimo, justificando-se, deu conta que à época estava emocionalmente abalada e não estava preparada para cuidar da mãe, embora a amasse (f. 57).

Em juízo (f. 120), já devidamente orientada, negou totalmente os fatos que lhe foram assacados. Disse que apenas chegou a discutir com a mãe. Disse que estava sob grande pressão.

O salvatério da ré é insubsistente.

Tudo indica que, como é dos autos, a ré, altamente frustrada por inúmeros fatores de sua vida pessoal, servia-se da mãe para descontar tais frustrações, agredindo-a fisicamente e verbalmente, utilizando-a como vero objeto de tortura.

Assim, desde que soube ser filha adotiva, o que revoltou-a. Secretária executiva (f. 57), com ganhos aproximados de R$1.800,00 (f. 60), dominando cinco línguas (f. 101) e em tratamento para depressão (f. 61), revoltava-se e frustrava-se por ganhar apenas R$150,00 (f. 16) para zelar de uma pessoa idosa. Daí, descontava todas as suas frustrações na pobre mãe adotiva. E, note-se que voltou a viver com a vítima por que algumas coisas em sua vida não deram certo mas, a demonstrar a sua personalidade, exigia cinco mil reais ou uma parte da casa para de lá sair (f. 16). A mãe era um empecilho.

Contudo e todavia, a prova oral foi categórica em desfavor da ré.

Deu conta Albina (f. 99) quanto aos problemas que a ré teve em São Paulo o que fizeram com que ela retornasse. Foi bem recebida mas, pouco após, começou a demonstrar a sua personalidade, maltratando a vítima. Proibia visitas. Privava-a de água para que ela não urinasse. Por diversas vezes ouviu a vítima clamar por socorro. Constatou marcas de agressão na vítima. E, disse que a vítima não tinha dificuldade ambular.

Na mesma esteira, o depoimento de Santa (f. 100). Disse que a ré maltratava a vítima, deixando-a toda roxa. Disse que a vítima pedia socorro e, as agressões eram diárias. Escutava o ruído dos tapas desferidos pela ré contra a vítima. Afirmou que a vítima era privada de água e forçada a tomar calmantes em excesso. Narrou o episódio de que a vítima, em franco desespero, chegou a pular o muro para pedir socorro.


Dorival (f. 101), filho da vítima, confirmou as lesões que esta apresentava, mas, acreditou na ré, que disse que estas eram decorrentes de quedas. Mencionou que a vítima nada dizia, por temor de represália da ré.

Osmar (f. 102), que foi o autor da gravação, disse que as agressões contra a vítima eram diárias. Repetindo o que disseram as outras testemunhas, mencionou que a ré privava a vítima de água, dava-lhe calmantes em excesso, proibia visitas. Disse que na hora do banho a ré batia, chingava, ofendia a vítima. Contou o episódio do pulo do muro pela vítima para pedir socorro.

O depoimento de Haydee (f. 103) foi na mesma linha dos demais. Disse que o relacionamento entre ré e vítima sempre foi conturbado e, aos fatos destes autos, confirmou agressões e pedido de socorro pela vítima e, privações de visitas.

Sônia (f. 104) disse que ouvia as agressões todos os dias. Disse que a ré era revoltada e, como não tinha quem cuidasse da mãe, descontava nela. Contou o episódio do pulo do muro.

Moacir (f. 121) apresentou versão diversa da ofertada na fase policial (f. 20). Em justificativa, singelamente, disse não recordar-se do que falou na delegacia. Disse que ouviu uma gravação que constava, apenas , uma discussão. Seu depoimento é isolado e incongruente ao anteriormente prestado.

Ana (f. 125), única testemunha arrolada pela defesa, prestou depoimento em prol da ré. Também isolado e pouco crível ante todo o contexto probatório.

Como visto, as provas foram fartas e fortes.

Embora a ré tenha feito restrição a algumas testemunhas, não declinou motivo razoável.

Não vislumbra-se que as testemunhas fossem mentir para incrimina-la. Até porque, a gravação robora integralmente os depoimentos.

Não vislumbra-se, frise-se, um conúbio vil, um complô para prejudicar a ré. E, além da gravação, as lesões foram constatadas em laudo pericial. Se se tratassem de quedas, por certo, consignariam tal fato os peritos.

Aliás, de anotar-se que a vítima, após tais fatos, foi recolhida em casa de repouso (f. 34)

Não é de se enquadrar a conduta da ré no disposto no art. 136 do CP, como quer a nobre Defesa.

Não depreende-se o animus corrigendi na conduta da ré, como acima narrado. Até porque não haveria que corrigir a própria mãe adotiva, já bastante idosa, mediante tapas, gritos e ofensas diárias, com que fim? Aliás, não corrige-se alguém, para que não urine, privando-a de água. Não corrige-se ninguém, privando de visitas. Não corrige-se ninguém, porque, já idoso, vale-se de fraldas e, naturalmente, nelas defeca. Não corrige-se ninguém ministrando-lhe calmantes em excesso. Não corrige-se ninguém, ante a necessidade de banhar-se e, pela idade avançada, ter que contar com auxílio de alguém.

Depreende-se, isto sim, que a ação típica, com a consciência e vontade, foram endereçadas à realização de tortura, com intenso sofrimento físico e mental dirigidos contra quem não tinha a menor possibilidade de defender-se. E, como castigo pessoal, seja pela frustração de ter tomado conhecimento da adoção, seja pelo encargo que representava cuidar de uma pessoa idosa, com as suas necessidades peculiares. Por oportuno:

“Tortura e maus tratos – Arts. 1o., II, da Lei 9.455/97 e 136 do CP – Distinção a ser efetuada em face do elemento subjetivo – “A distinção entre os crimes de tortura e maus-tratos faz-se considerando o respectivo elemento subjetivo. ‘Se o fato é cometido pelo sujeito para fins de correção, censura ou reprimenda, havendo abuso, trata-se de crime de maus tratos (crime comum)’ (cf. Damásio E. de Jesus)” (3)

“Tortura e maus-tratos – Criança – Distinção – “A distinção entre os crimes de maus tratos de tortura deve ser encontrada não só no resultado provocado na vítima, como no elemento volitivo do agente: assim, se abusa do direito de corrigir para fins de educação, ensino, tratamento e custódia, haverá maus tratos, ao passo que caracterizará tortura quando a conduta é praticada como forma de castigo pessoal, objetivando fazer sofrer, por prazer, por ódio, ou qualquer outro sentimento vil. Caracteriza a tortura a conduta do agente que, tendo criança sob sua guarda, a pretexto de corrigi-la, submete-a de forma contínua e reiterada a maus tratos físicos e morais, causando intenso e angustiante sofrimento físico e mental” (4)

“A questão dos maus-tratos e da tortura deve ser resolvida perquirindo-se o elemento volitivo. Se o que motivou o agente foi o desejo de corrigir, embora o meio empregado tenha sido desumano e cruel, o crime é de maus tratos. Se a conduta não tem outro móvel, senão de o de fazer sofrer, por prazer, ódio, ou qualquer outro sentimento vil, então pode ela ser considerada tortura” (5)

Procede, pois, a pretensão do Estado-acusador.

Passa-se a dosimetria.

A ré é primária (f. 76). Fixa-se a pena-base no piso e, à míngua de outras circunstâncias ou causas de oscilação, definitiva neste patamar, i.e., 02 anos de reclusão.

Face o jaez do crime, incabível substituição de privativa de liberdade ou suspensão condicional da pena.

O regime de cumprimento deverá ser o fechado, ex vi legis (parágrafo 7o., art. 1o.).

Aguardou livre o desate e assim poderá manifestar o inconformismo para a Colenda Superior Instância.

Nestes termos:

JULGO PROCEDENTE a presente ação penal e o faço para CONDENAR a ré M.B.S., RG n. xxxxx, natural de Botucatu-SP, nascida no dia 20/03/1952, filha de M.E.S., à pena de 02 (dois) anos de reclusão como incursa nas regras do artigo 1o., inciso II, da Lei 9.455/97.

Oportunamente, lance-se-lhe o nome no rol dos culpados.

Expeçam-se os necessários.

Custas na forma da Lei.

P.R.I.C.

Botucatu, 24 de fevereiro de 2.004.

ITALO MORELLE

Juiz de Direito

Notas de Rodapé:

1) TJSP – 4a. Ccrim – Ap. 67.256-3 – Rel. Des.Corrêa Dias – JTJ-LRX 122/466

2) TJSP – 5a. Ccrim – HC 155.150-3 – Rel. Des. Cunha Bueno – JTJ-Lex 150/324

3) TJPR – 2a. CCRim – Ap. 82687900 – Rel. Des. Trotta Talles – j. 11.11.1999

4) TJSC – Ap. 98.014413-2 – Rel. Des. Nilton Macedo Machado – j. 18.05.1999

5) TJSP – Ac. – Rel. Des. Canguçu de Almeida – j. 13.09.1993 – RJTJSP 148/280.

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