Reforma sindical

Sindicato dos Advogados de SP aprova resolução sobre reforma sindical

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23 de abril de 2004, 15h07

O Sindicato dos Advogados de São Paulo aprovou resolução para uniformizar sua posição em relação à reforma sindical aprovada pelo Fórum Nacional do Trabalho (FNT). O texto firmado foi escrito pelo advogado João José Sady, especialista em Direito do Trabalho e em questões sindicais.

O texto do advogado analisa as implicações das propostas de reforma sindical tidas como de “consenso” e que constam do relatório final aprovado pelo FNT. O relatório foi encaminhado pelo ministro do Trabalho ao governo, para elaboração de proposta oficial do Executivo ao Congresso Nacional.

Leia o texto aprovado como resolução

Durante quase meio século de sindicalismo brasileiro, a imagem da CLT foi sendo cultivada como o símbolo do Mal, reputada como “a filha da carta de lavoro” e retratada como o grande obstáculo às lutas dos trabalhadores. A promulgação da CF-88, todavia, colocou de pernas para o ar aquele tradicional modelo de relações de trabalho, inaugurando um longo período de reconstrução jurisprudencial da legislação sindical. Desvinculado do autoritarismo corporativista, o sistema balançou a borda do caos em razão do tipo de solução adotada pela nova carta política. Como em tantos casos, as normas constitucionais relativas à questão sindical, são os frutos de acordos políticos resultando em redações que poderiam ser interpretadas como favoráveis a qualquer um dos lados das controvérsias.

Foi adotado o regime da unicidade sindical: somente pode haver um sindicato representativo de cada categoria na mesma base territorial. No entanto, como o conceito de categoria ficou em aberto, a unicidade de direito, deu lugar à corrida em direção à pluralidade de fato, com milhares de subdivisões dos sindicatos preexistentes. Não se pode fundar outro sindicato da mesma categoria mas, é possível a um grupo deixar a esfera de representação da entidade e constituir a si mesmo como sendo uma nova categoria. Enquanto os obreiros estavam sob o guante da legislação corporativista, o Estado é que dizia que setores poderiam se organizar sindicalmente e, a partir daí, os interessados poderiam tentar organizar entidade representativa do respectivo departamento da atividade produtiva. Retirado o controle estatal, a definição da esfera de representação passou a ser um ato de vontade dos trabalhadores, definido no ato de organização de suas entidades.

A conseqüente insegurança que passou a afligir os interessados, induziu a que, na prática e parcialmente, a intervenção estatal fosse ressuscitada de forma transversal. O Estado só poderia servir de cartório para que os sindicatos fossem registrados mas, no entanto, através da exigência de registro, assumiu de fato o poder para deferir, ou não, o registro que, concretamente, passou a ter, progressivamente, efeito constitutivo. Mesmo assim, a maré de desmembramentos continuou por causa da leniência da norma constitucional sobre o tema.

Neste problema concreto é que se vai centrar o projeto de reforma sindical que está sendo gerado no interior do chamado Fórum Nacional do Trabalho. O objetivo da reforma é assumido com clareza no ítem II, 4 do capítulo da Organização Sindical aonde se declara que a intenção das propostas está em “inibir a proliferação e a pluralidade sem ferir a liberdade sindical”. Este é o assunto real da reforma projetada. Daí porque, a análise do marco regulatório sugerido termina por demonstrar que tudo resulta no retorno ao sistema autárquico implementado com muito mais rigor, razão pela qual, se torna muito importante tentar identificar estes pontos:

1- Retorno da interferência estatal na constituição dos sindicatos.

A constituição de sindicatos volta a depender de autorização estatal. É proposta a criação de um Conselho Nacional de Relações de Trabalho para estabelecer as linhas mestras do sistema e os pedidos de registro serão concedidos, ou não, pelo Ministério do Trabalho. O Conselho sugerido, teria uma representação tripartite onde o poder público teria bancada igual à dos trabalhadores e à dos patrões, tornando-se o fiel da balança de qualquer definição.

2- Retorno do Quadro de Atividades e Profissões.

O sistema volta a funcionar como na época anterior à Carta de 1988, deferindo-se ao Estado o poder competência para fazer o mapeamento da economia. Tal mapeamento é a condição prévia para a organização sindical porque somente poderão ser constituídos sindicatos para representar os grupos profissionais definidos pelo Estado como tal. A delimitação da esfera de representação deixa de ser um ato de vontade dos obreiros e volta a ser um ato de vontade do Estado, já que a sugestão consiste em proclamar mediante ato do Executivo, os ramos que podem ser sindicalmente representados.

3- Retorno da carta sindical.

Os sindicatos somente passarão a existir juridicamente, quando autorizados pelo Estado. No artigo IV.3, se fala claramente na concessão da representação que deixa de ser um direito dos trabalhadores e volta a ser uma outorga do Estado. Terá que ser pleiteada ao Estado que “concederá, ou não a representação sindical”.


4- Perversão da unicidade sindical

O sistema um tanto esquizofrênico gerado pela CF-88, pressupõe a unicidade sindical sem a intervenção do Estado. Os trabalhadores dispõem de liberdade para organizar sindicalmente o espaço de atividade produtiva que desejarem, com a limitação, apenas, de que somente haverá uma entidade em cada um destes departamentos. No sistema proposto pelo FNT, somente poderá existir sindicato por ramo de atividade econômica delineado previamente pelo Estado. A partir daí, o projeto é extremamente confuso, estabelecendo regras altamente contraditórias: a) os sindicatos preexistentes à reforma, que comprovarem certos níveis de sindicalização poderão obter do Estado a exclusividade de representação; b) se outros sindicatos comprovarem os níveis necessários de sindicalização também receberão a exclusividade de representação. Ambos serão representantes “exclusivos”. Além disto, os “exclusivos” poderão sofrer a concorrência dos sindicatos orgânicos, ou seja, aqueles que as centrais poderão criar como parte de sua estrutura organizativa e que são batizados de “representatividade derivada”.

A liberdade sindical e o pluralismo anunciados ao público desinformado consistem em liberar todos para criar os sindicatos que desejarem, com todo o tipo e formato, com uma única ressalva: podem chamar-se de sindicatos mas, não vão dispor juridicamente de tal natureza. Os sindicatos que forem despojados da representação são batizados com o cínico eufemismo de “sindicatos que optaram pela liberdade de organização”.

O retrocesso está em restaurar a representação única por território previamente delimitado pelo Estado, mediante autorização do Estado e, exclusivamente, por ramo de atividade, implicando na dissolução dos atuais sindicatos por categoria.

5- A ressurreição da Emenda Dornelles.

A proposta utiliza expressão que se refere aos “direitos definidos em lei como inegociáveis”, pressupondo que haverá uma lei que vai definir quais são os “direitos negociáveis”. Entrevista do Presidente da República já anunciou que a idéia é só deixar as férias como sendo o núcleo inegociável, enquanto que o Presidente do partido do governo, fez anúncios menos radicais, afirmando que só ficarão uns cinco direitos inegociáveis. Está bem clara a adesão ao projeto de flexibilização quebrando a atual legislação trabalhista que não seria a legislação de sustento mínima que não poderia ser objeto de negociação. Na medida em que se pense que o Direito do Trabalho constitui um pacote de direitos que são um patamar de cidadania para os trabalhadores, fica claro que este pacote vai ser reduzido. O patamar de cidadania vai ser rebaixado.

6- Expansão e perversão do Poder Normativo da Justiça do Trabalho.

Muito embora seja proclamado aos quatro ventos que a proposta do FNT contenha a extinção do Poder Normativo da Justiça do Trabalho, isto não é verdade. A proposta é a de que a JT não possa aplicar este poder normativo em caso de greve. No mais, inexistindo suspensão do trabalho, passados noventa dias da data-base, a Justiça do Trabalho irá, automaticamente, julgar o conflito coletivo de trabalho por sua própria iniciativa. O arbitramento que hoje é efetuado pelos Tribunais e apelidado de Poder Normativo da Justiça do Trabalho, passará a denominar-se arbitramento público por meio da Justiça do Trabalho. Chega a ser um tanto ridículo mas, a proposta fala que os Tribunais terão o prazo de dez dias para tal finalidade. Por algum milagre da “vontade política”, aquilo que demora em média um ano para ser julgado terá de concluir-se em dez dias.

7- A greve e o Poder Judiciário.

A proposta sugere que o Poder Judiciário não poderá julgar se a greve constitui ou não um abuso de direito. Abstrai o fato de que é cláusula pétrea da carta política, a regra de que nenhuma (ao menos, suposta) lesão de direito poderá ser excluída da apreciação pelo Poder Judiciário. Assim, onde está escrito que “não deve haver julgamento de objeto nem de mérito de greve”, leia-se que os tribunais não poderão mais arbitrar o conflito coletivo de trabalho em caso de greve.

O que há de mais estranho nesta proposta é o fato de que, atualmente, nove em cada dez julgamentos de greve são solicitados pelo próprio sindicato que representa os grevistas. Quando se vê que a greve não está se sustentando, a opção está entre admitir a derrota e voltar ao trabalho sem nada, ou providenciar o “arbitramento público por meio da Justiça do Trabalho”. Pela proposta, é fechada esta porta de saída para os grevistas que terão de se agüentar com a paralisação até que a empresa venha a ceder ou os trabalhadores se dispersem. As greves, neste novo modelo de relações de trabalho, terão que ser, fatalmente, uma empreitada no estilo “matar ou morrer” porque as únicas formas de terminar o movimento vão estar na encruzilhada entre capitular ou fazer a empresa ajoelhar. Então, os patrões vão ficar felizes com a imensa redução do índice de paralisações que irá resultar da nova sistemática.


8- Enxugamento dos sindicatos pela abolição do conceito de categoria.

O sistema de representação por categoria será abolido. A representação se dará por “setor” para as confederações e “por ramo” dali para baixo da pirâmide sindical. O FNT define estes conceitos, na seguinte conformidade: “compreende-se por setor econômico o campo máximo de agregação de atividades econômicas e, por ramo de atividade econômica as subdivisões correspondentes a cada um dos setores econômicos”. Como serão estas subdivisões?

Se tomarmos, como referência, o antigo Quadro de Atividades e Profissões jungido ao finado artigo 577 da CLT, teríamos por analogia, os setores de Indústria, Comércio, Transportes Marítimos, Transportes Terrestres, Comunicações, Empresas de Crédito, Educação e Cultura e Profissões Liberais. Dentro destes parâmetros, aquele sistema identificava um total de quarenta e três subdivisões denominadas de Grupos que poderiam, para fim de argumento, corresponder aos novos ramos.

Vamos tomar como exemplo, o 10o Grupo do setor da indústria, que poderia resultar em ramo químico, nas novas regras sugeridas. Nesta área, o antigo Quadro identificava vinte e uma categorias econômicas. Assim, na reforma proposta, passando os sindicatos a se organizar por ramo, no mínimo, vinte e uma entidades do setor teriam de se agrupar numa única, para atuar em toda a variedade de interesses incluídas em território tão vasto. Fica difícil avaliar um processo de transição que seja capaz de produzir engenharia política com o fito de promover uma fusão de interesses tão multifacetados. Mais complicado, ainda, é vislumbrar que largos setores não se aperceberam, ainda, de que não haverá uma opção entre continuar como se está ou aderir à organização por ramo.

9- Representação sindical por empresa e direito à contratação coletiva para os empregados públicos.

A proposta segue o mesmo espírito da CF-88, proclamando que existirão tais direitos mas, não há consenso em como serão desenhados. Na verdade, é proposta de que continue como está no atual modelo, ou seja, previsto na Ordem Jurídica mas, inoperante por falta de regulamentação.

10 – Direito de greve.

A proposta, no essencial, limita-se a repetir a vigente Lei 7783/89. À exceção de restringir o “arbitramento público pela Justiça do Trabalho” aos casos em que não há greve, no mais, a proposta se restringe a repetir o que diz a legislação vigente, não trazendo absolutamente nada de novo. Importante salientar que se reitera o mecanismo que hoje implica em caracterizar como abuso de direito as greves em serviços essenciais porque não se consegue, politicamente, organizar um esquema de atendimento à população e, ao mesmo tempo, fazer greve.

11- Consolidação do modelo neoliberal.

O tal “arbitramento público por meio da Justiça do Trabalho”, hoje chamado de Poder Normativo, foi tornado inócuo nos mandatos de FHC, mediante a extirpação de duas garantias fundamentais: a da reposição das perdas inflacionárias e da renovação das cláusulas preexistentes.

Excluído o fantasma da greve, será, apenas, diante de tais perspectivas em caso de julgamento da matéria pelos tribunais, que o patronato irá sentir-se intimidado a ponto de negociar. O governo FHC extinguiu estes mecanismos através de vários expedientes e a própria Justiça do Trabalho vem ressuscitando estas garantias através de sua jurisprudência. A reforma consolida esta situação jurídica vulnerável, na medida, em que não se dispõe a introduzir estas garantias como regras mínimas do tal “arbitramento”.

12- Redução da amplitude da substituição processual dos sindicatos.

A proposta “promete” uma negociação sobre o tema mas, garante que em caso de que não haja acordo entre os integrantes do Fórum, a matéria será regida por um texto com a redação atual da CF, cuja obscuridade tantos problemas causou, mutilada por um redutor: “na forma da lei”.

13- Composição extrajudicial dos conflitos individuais.

O projeto segue a agenda do tão falado documento 319 do Banco Mundial, porque se estrutura na idéia de fazer cessar a concepção das atuais garantias legais aos trabalhadores como direitos, quanto mais, como direitos irrenunciáveis ou inegociáveis. Na mais singela das definições, o direito é aquilo que é devido por lei ou por contrato e que, portanto, pode ser realizado forçadamente através da movimentação da máquina estatal (poder judiciário).

O primeiro passo para tirar o gesso do atual modelo, é dado pela Proposta FNT, anunciando que uma parte do atual pacote de vantagens devidas por lei vão se tornar coletivamente negociáveis. O segundo passo está em negar a judiciarização destas garantias, remetendo-as sistematicamente à transação extrajudicial. A proposta de flexibilização no campo do coletivo, casa-se com a proposta de “composição extrajudicial realizada com assistência sindical”.

Mais uma vez, os brasileiros são colocados diante da proposta de que é “para o nosso bem” a extirpação da inegociabilidade e da irrenunciabilidade dos direitos dos trabalhadores. Diga-se em homenagem a FHC que, ao menos, ele intentou esta transformação de modo aberto e sem rebuços, enquanto que a Proposta FNT traz a arma escondida na manga, disfarçando a transformação daí resultante por detrás de uma floresta de palavras enganosas.

Conclusão

Neste pacote que anuncia a suposta modernidade, se esconde uma sinistra volta ao passado, ressuscitando o que havia de pior no modelo estilo Mussolini e procurando adaptá-lo às necessidades do grande capital. É uma simbiose entre Carta de Lavoro e Documento 319 do Banco Mundial. A ameaça é extremamente grave porque o pacote prima por um esquema de duplo significado: nada é o que parece ser. Proclama-se que irá se atingir a plena liberdade sindical e se restaura a intervenção do Estado. Anuncia-se a extirpação do Poder Normativo e o mesmo é expandido e pervertido. Festeja-se a quebra da unicidade sindical e se busca a extinção da maioria dos sindicatos atualmente existentes. De outro lado, propõe-se o fim da inegociabilidade e da irredutibilidade dos direitos assegurados em lei mas, não se anuncia, não se diz uma palavra a tal respeito. Tem um certo aspecto sinistro que o, assim chamado, Governo Popular, eleito como sendo a grande esperança das classes dominadas, esteja a patrocinar uma reforma tão prejudicial aos interesses de seu povo e tão dúplice e ambígua diante da população.

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