Lei de Falências

Anamatra: substitutivo da Lei de Falências é ruim para trabalhador.

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22 de abril de 2004, 11h47

Os juízes do trabalho estão preocupados com os rumos da nova Lei de Falências. O presidente da Associação Nacional dos Magistrados da Justiça do Trabalho (Anamatra), Grijalbo Coutinho, encaminhou oficio ao senador Ramez Tebet (PMDB/MS), relator da matéria na Comissão de Assuntos Econômicos (CAE) e autor do substitutivo relativo ao projeto de lei da Câmara, alertando-o para o “terrível impacto das modificações constantes do substitutivo global”.

A principal insatisfação dos juízes está na limitação do crédito trabalhista em 150 salários mínimos. “A proposição amesquinha a natureza peculiar dos créditos trabalhistas, contrariando o estágio histórico de progresso social da legislação pátria”, informa o ofício, ao citar que na legislação brasileira não há qualquer garantia para os créditos trabalhistas, e por isso o privilégio de tais créditos na falência deve ser “absoluto”.

O presidente da Anamatra sugere ao senador algumas modificações no texto para “atender, ao caráter alimentar do crédito trabalhista, realizando o princípio da dignidade da pessoa humana no âmbito da legislação ordinária, e refletir melhor a não renúncia própria dos créditos tributários”.

Entre as propostas estão: suprimir, nos processos de falência, a limitação quantitativa da preferência dos créditos decorrentes do contrato de trabalho, por salários e indenizações (artigo 7o, XXVIII, 2a parte, da CRFB); sujeitar o crédito relativo ao adiantamento a contrato de câmbio ao concurso de credores, classificando-o em nível menos preferencial que o do crédito trabalhista; e suprimir os dispositivos que vedam a configuração da sucessão de empregadores na hipótese de alienação de unidades da empresa e que se referem à cessão de crédito trabalhista. (Anamatra)

Leia íntegra do ofício

Brasília, DF, 19 de abril de 2004.

Referência: PLC no 71/2003 (antigo PL no 4.376/93 da Câmara dos Deputados).

Senhor Senador,

Acompanhando desde a Câmara dos Deputados a tramitação do Projeto de Lei de Falências, a Anamatra, Associação Nacional de Magistrados da Justiça do Trabalho, tem o dever de dirigir-se a V. Exa. no intuito de alertá-la para o terrível impacto que várias das modificações constantes do Substitutivo Global apresentado ao PLC no 71/2003, que “regula a recuperação judicial, a falência e a recuperação extrajudicial do empresário e da sociedade empresária”, gerariam no ordenamento brasileiro e no patrimônio jurídico dos trabalhadores, em flagrante atentado ao princípio constitucional da dignidade da pessoa humana que está previsto no art. 1o, inciso III, da Constituição da República.

Referimo-nos especialmente à inserção no Substitutivo do nobre Relator de exceções à preferência dos créditos trabalhistas no concurso universal da falência, como a instituição de um teto limite à preferência, a manutenção da natureza extraconcursal do adiantamento a contrato de câmbio, a vedação de incidência do instituto trabalhista da sucessão de empregadores, a autorização implícita da cessão do crédito trabalhista, a suspensão de ações e execuções, bem assim, na recuperação judicial, o fortalecimento da possibilidade de diferimento a tempo incerto e parcelamento das verbas remuneratórias atrasadas dos empregados relativas ao período pré-recuperação. Além destes temas, a Anamatra pretende trazer a público, oportunamente, sua opinião técnica acerca de todos os dispositivos do Substitutivo que digam respeito aos direitos e interesses do trabalhador brasileiro, como, por exemplo: §2o do art. 6o; art. 26, I; art. 41, I, §2o; art. 47; art. 51, IV; art. 54, parágrafo único; art. 60, parágrafo único; art. 76; art. 83, I e V, c, e §5o; art. 84, I; art. 141, II e §2o; art. 145 e §2o; art. 151; art. 161 e §1o; art. 166, parágrafo único; e art. 175.

Antes disso, porém, cumpre-nos o dever de manifestar a V. Exa. a insatisfação da Magistratura do Trabalho nacional, preliminarmente, quanto ao teor do art. 83 do Substitutivo, o qual, ao cuidar da classificação dos créditos, mantém em seu inciso I, no processo de falência, a preferência dos créditos decorrentes de acidentes de trabalho e dos créditos derivados das relações de trabalho, mas limita estes últimos a cento e cinqüenta salários mínimos por credor. Os saldos dos créditos derivados da legislação do trabalho que excederem o referido limite passam a ser classificados como créditos quirografários, na forma descrita no inciso V, do mesmo artigo. Esta proposição amesquinha a natureza peculiar dos créditos trabalhistas, contrariando o estágio histórico de progresso social da legislação pátria.

EXMO. SR. DR.

SENADOR RAMEZ TEBET

PRESIDENTE DA CAE E RELATOR

SENADO FEDERAL

Em que pese inspirado em regras de direito internacional, a verdadeira razão de o Substitutivo fixar um teto para o crédito trabalhista é o superdimensionamento da ocorrência eventual de fraudes na declaração e habilitação dos créditos trabalhistas na falência, o que demonstra a adoção de raciocínio equivocado que se assenta na tomada como parâmetro de uma exceção para elaborar a regra geral e abstrata, olvidando-se o pensamento comum dos povos civilizados quanto ao conteúdo social mínimo das normas de proteção aos salários.


O combate à fraude deve passar, antes, pela precisa definição dos crimes falimentares e pela necessária majoração da pena pertinente, fazendo com a que a norma penal cumpra o seu duplo papel de ao mesmo tempo punir e, principalmente, inibir a prática de delitos como tais. Esta solução parece mais adequada quando se considera a possibilidade de ter como efeito adverso da alteração legislativa o perigo de reduzir garantias de proteção ao patrimônio jurídico do trabalhador ou quebrar princípios tutelares do Direito do Trabalho.

Caso o direito espanhol tenha sido o inspirador da medida, impende esclarecer que lá só se justificam as limitações que o Estatuto de los Trabajadores (ET) imprime ao privilégio dos créditos trabalhistas porque se disciplinou naquele país a instituição de garantia alvitrada pelo art. 9o da Convenção 173, ampliando a proteção através da criação, nos termos do artigo 33 ET, regulamentado pelo Real Decreto 505/1985, de 06.03.85, do Fondo de Garantía Salarial (FOGASA), organismo autônomo vinculado ao Ministério do Trabalho e Assuntos Sociais, dotado de personalidade jurídica e capacidade de agir na persecução de seus fins. Nos casos de insolvência, suspensão de pagamentos, quebra ou concurso de credores, o FOGASA previne a inadimplência dos salários e das indenizações por despedimento, pelos quais se responsabiliza de modo puro, direto e limitado. O Fondo compensa, nessa medida, as restrições que a legislação espanhola impõe ao privilégio do crédito trabalhista.

Convém observar, outrossim, que na legislação brasileira não há tal instituição de garantia para os créditos trabalhistas apta a realizá-los quando o pagamento não puder ser efetuado pelo empregador devido à sua insolvência. Sem essa garantia, o privilégio dos créditos trabalhistas na insolvência deve ser absoluto, mesmo em face dos créditos do Estado e da Seguridade Social, não se justificando, portanto, qualquer limitação quanto a montante superior a cento e cinqüenta salários mínimos. À míngua de instituição similar, não há justificativa plausível para a limitação introduzida pelo Substitutivo do PLC no 71/2003, a qual, de resto, não existe na atual legislação da falência e da concordata, ut artigos 102, caput, e 147, caput, do Decreto-lei 7.661/45.

Na França, a doutrina acentua a utilidade econômica da proteção dos salários: “a proteção dos salários constitui um fator em si mesmo determinante do progresso econômico. O direito do trabalho pode então se antecipar à situação econômica: produtividade e competitividade das empresas podem ser incrementadas pelo desenvolvimento de uma proteção social para os trabalhadores”. Em outras palavras, não cabe argumentar ¾ como é de praxe fazer nos últimos tempos ¾ que a limitação instituída pelo Substitutivo atende melhor à realidade econômica do país, predispondo as empresas ao crescimento de que se ressente a economia brasileira. Resguardar o crédito trabalhista e antecipar a sua satisfação é, sempre, uma medida de geração de demanda efetiva, otimizando os lucros das empresas pelo fator consumo.

Historicamente, os credores trabalhistas amealharam preferência absoluta em face dos demais credores do empregador. Essa conquista histórica representa a concreção legislativa do princípio da proteção, que informa o próprio Direito do Trabalho de modo a proteger uma das partes com o objetivo de, mediante essa proteção, alcançar-se uma igualdade substancial e verdadeira entre as partes. Combalir tal privilégio na legislação que regula a falência e a recuperação judicial causará instabilidade e incerteza no arcabouço legal brasileiro, uma vez que o privilégio dos créditos trabalhistas foi construído sistematicamente, por meio de normas que se espraiam por todo o ordenamento nacional. Assim, os artigos 449, §1o, e 768 da CLT, como também o seu próprio artigo 148; o artigo 44 da Lei no 4.886/65, na redação da Lei no 8.420/92; o artigo 186, in fine, do Código Tributário Nacional; e assim por diante.

O Substitutivo de V. Exa. mantém, acertadamente, a recuperação judicial e extrajudicial de empresas, propondo um modelo judiciário para a administração das empresas em crise econômico-financeira. A louvável iniciativa do legislador padece, porém, de um vício inapelável: cria o instituto do diferimento a tempo incerto dos créditos trabalhistas, limitando a primazia dos créditos dessa natureza, o que hoje não se dá nos processos de concordata. Admitir tal incerteza em relação ao pagamento dos créditos trabalhistas nas ações de recuperação judicial equivale a desprestigiar um ponto afirmativo da legislação brasileira, visceralmente ligado ao princípio da dignidade da pessoa humana. E um tal desprestígio sequer resiste a uma abordagem mais universal e consistente do tema, porque ¾ nas palavras de Fábio Konder Comparato ¾ as ordens jurídicas estão proibidas de retroceder em matéria de direitos humanos (rectius: direitos da dignidade da pessoa humana).


O texto anda mal, ainda, ao estabelecer que, decretada a falência ou deferido o processamento do pedido de recuperação judicial, a ação de natureza trabalhista em curso, ou que venha a ser proposta, será processada perante a Justiça do Trabalho até a apuração do respectivo crédito, para então se habilitar na forma da lei falimentar. Para melhor assegurar a satisfação dos créditos trabalhistas, com vistas à sua natureza estritamente alimentar, seria conveniente excluir os créditos trabalhistas da própria habilitação (como hoje ocorre com os créditos tributários, ut artigo 187, caput, do Código Tributário Nacional) e permitir a excussão de bens na própria Justiça do Trabalho, desde que, ao tempo da falência, já haja execução aparelhada e garantida na Justiça especializada (i.e., com título exeqüível e penhora). No mesmo diapasão, quando já arrecadados os bens pela massa falida, a execução deveria se fazer mediante penhora no rosto dos autos do processo de quebra. Essa era, a propósito, a inteligência da Súmula 44 do extinto Tribunal Federal de Recursos em matéria tributária, aviando solução mais justa e tecnicamente apropriada, com vistas à interpretação sistemática e teleológica dos preceitos legais envolvidos.

Diante do exposto, a Anamatra permite-se, tanto do ponto de vista técnico quanto do ideológico, sugerir as seguintes alterações no Substitutivo: (a) suprimir, nos processos de falência, a limitação quantitativa da preferência dos créditos decorrentes do contrato de trabalho, por salários e indenizações (artigo 7o, XXVIII, 2a parte, da CRFB); (b) sujeitar o crédito relativo ao adiantamento a contrato de câmbio ao concurso de credores, classificando-o em nível menos preferencial que o do crédito trabalhista; (c) suprimir os dispositivos que vedam a configuração da sucessão de empregadores na hipótese de alienação de unidades da empresa e que se referem à cessão de crédito trabalhista; (d) estabelecer, nos processos de falência, a não-sujeição, à habilitação, dos créditos tributários “lato sensu” e dos créditos decorrentes do contrato de trabalho, por salários e indenizações; (e) permitir, nos casos de falência, a execução autônoma, em autos próprios, dos créditos trabalhistas e tributários, com excussão autônoma (se já aparelhada e garantida a execução ao tempo da decretação da quebra) ou com penhora no rosto dos autos do processo de quebra (se a decretação da quebra preceder à penhora nos processos próprios); (f) suprimir a regra que estabelece a sujeição dos créditos decorrentes do contrato de trabalho, por salários e indenizações, ao regime de recuperação, bem assim ao diferimento e parcelamento.

Tais modificações atendem, por um lado, ao caráter alimentar do crédito trabalhista, realizando o princípio da dignidade da pessoa humana no âmbito da legislação ordinária. Por outro, refletem melhor a irrenunciabilidade própria dos créditos tributários.

Certos que o princípio democrático que inspira V. Exa. nos atos da vida pública ensejará a perfeita compreensão da crítica levada a efeito neste ofício, informamos ao nobre Senador que oportunamente será divulgada uma nota técnica da Anamatra, como contribuição para o processo de discussão da matéria, abordando todos os itens mencionados.

Cordialmente,

GRIJALBO FERNANDES COUTINHO

Presidente da Anamatra

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