Príncipe dos mares

Justiça sobre águas faz primeira visita à comunidade amazônica

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22 de abril de 2004, 18h35

Catuiara significa “juiz bom” em nheengatu, língua geral do tronco tupi que se difundiu especialmente no nordeste da região amazônica. A palavra também significa, agora, o acesso à Justiça para cerca de 750 mil brasileiros que vivem nas comunidades ribeirinhas do Estado do Amazonas.

É com esse nome que foi batizado o barco que inaugura o projeto “Justiça Fluvial Itinerante”, que vai levar Justiça e cidadania para pessoas isoladas geograficamente. Pessoas que não constam das estatísticas, que nascem e morrem sem que um dia o Estado tenha sido informado da existência delas.

O presidente do Supremo Tribunal Federal, ministro Maurício Corrêa, participou da inauguração do barco no domingo (18/4), em Manaus.

Em seu primeiro dia de trabalho, o Catuiara deixou a capital amazônica rumo à comunidade Julião, na qual moram cerca de 400 pessoas.

Novos cidadãos

Entre o vilarejo e a capital, não há ligação por terra. O rio é que funciona como estrada. Os 32 quilômetros que os separam, em linha reta, foram percorridos em pouco mais de uma hora. Enquanto o barco deslizava pelo Rio Negro, a comunidade, que existe há cerca de 30 anos, preparava-se para ver um juiz pela primeira vez.

Bastou o Catuiara dar um apito ao se aproximar do povoado para aparecerem crianças, mulheres e homens para ver o barco. A fila, em que também estavam pessoas dos arredores de Julião, se formou rapidamente. O juiz Carlos Zamith, coordenador do projeto, sabia que o primeiro passo de sua equipe seria arrumar a documentação daquelas pessoas, muitas das quais nem sequer tinham certidão de nascimento.

A sala de espera ficou lotada. Maria Raimunda Araújo, 44 anos, queria fazer seu divórcio. Já não via o ex-marido há 17 anos, mas não tinha nenhum registro do casamento. Ele rasgou a certidão na frente dela. José Pereira da Silva queria aposentar-se, mas não possuía o CPF. Pelas contas dele, tinha 67 anos. Pelas do juiz, 69.

Fernanda Rufino Medeiros, 21 anos, grávida de quatro meses, queria fazer a carteira de identidade. “Preciso ter meu documento pra registrar meu filho. Com a carteira posso votar, casar, trabalhar”, disse. Natural do município de Manacapuru, a cerca de 100 quilômetros de Manaus, Fernanda tinha apenas a cópia não-autenticada da certidão de nascimento.

Teoricamente, ela teria de voltar à terra natal para tirar a segunda via do registro, para só então fazer a carteira de identidade. Usando o bom senso, o juiz Zamith examinou a cópia e viu que não havia sinais de adulteração nela. Fernanda iria ter a tão sonhada identidade. A fotografia foi feita em câmera digital, pelo juiz auxiliar da presidência do TJ-AM, Abraham Campos Filho, que participou do projeto do barco.

Quarenta e três anos foi o tempo que Maria Baraona do Santos passou sem ter nenhum documento. Mãe de dez filhos, ela estava ali para tirar sua certidão de nascimento. Os filhos tinham sido registrados pelo pai. Com a vinda da Justiça itinerante, ela teve a oportunidade de obter seu primeiro documento. “Em Manaus é caro, aqui é de graça”, disse, sem saber que os cartórios são obrigados agora a fazer o registro de nascimento gratuitamente.

Se Maria Baraona levou 43 anos para ser registrada, a menina Dayse teve mais sorte. Demorou apenas três dias. Dayse nasceu em um hospital público de Manaus, mas nem a mãe, de 15 anos, nem o pai, de 19, haviam registrado a filha na capital. Com poucas horas de vida, a menina fez a travessia de Manaus a Julião e ganhou, com a vinda do Catuiara, o documento que lhe deu cidadania.

Nas três horas em que o barco ficou atracado no vilarejo, a equipe atendeu a 50 pessoas. Além da orientação jurídica dada aos que queriam obter o CPF ou realizar o divórcio, foram feitas 22 carteiras de identidade, nove certidões de nascimento e uma audiência de retificação de registro.

Justiça sobre águas

Inspirado num barco da Justiça do Amapá, o Catuiara foi desenvolvido para funcionar como um pequeno Tribunal. Ele abriga, em seus 27 metros de comprimento, salas de espera, de audiência, de expedição de documentos, gabinetes do juiz e do promotor, cozinha, refeitório e seis camarotes, sendo duas suítes.

O barco custou 900 mil reais, dos quais 80% foram pagos pelo Tribunal de Justiça do Amazonas (TJ-AM) e 20% pelo Banco do Brasil. A bordo, ele leva juiz, promotor, três conciliadores, um técnico judiciário para lidar com a burocracia, funcionários da secretaria de segurança para expedir carteiras de identidade, e do cartório de registro civil.

“É gratificante chegar a uma comunidade e resolver o problema de uma pessoa na hora, que sai dali satisfeita”, avaliou o juiz Zamith, que retornará a Julião dez dias após o primeiro atendimento, para entregar os documentos solicitados pela população. “Considero-me uma espécie de desbravador, porque vamos visitar lugares que nunca viram um juiz”, revelou o magistrado.

Uma das vantagens do juizado especial itinerante é que ele elimina os custos de transporte, alimentação e hospedagem que os ribeirinhos teriam se tivessem de se deslocar até a sede de seus municípios, além de não ser necessária a contratação de advogado, como ocorre na Justiça comum. “O juizado permite que a pessoa fale diretamente com o juiz, sem a intervenção de um advogado”, explicou Zamith.

Outro ponto positivo é a rapidez no atendimento. “Manaus tem apenas dez juizados especiais, para uma população de quase dois milhões de habitantes. Há sobrecarga e demora de seis meses a um ano na solução de processos”, completou.

Quem não tem cão…

Almir Rodrigues Rabelo, 47 anos, foi o anfitrião do Catuiara. Aproximou-se do barco, falou com o juiz, com o promotor, ajudou a formar a fila de atendimento. É ele o presidente da comunidade Julião, reeleito para o mandato de quatro anos.

Quando há conflitos na comunidade, as pessoas recorrem a ele, em busca de uma solução. Rabelo contou que os maiores problemas são causados pelo alcoolismo. Quando procurado, ele tenta conciliar as partes e, não raro, faz acareações entre elas. Para esses procedimentos, existe um lugar determinado: o centro social da vila, no pátio da escola, conhecido como “chapéu de palha”.

Dentre os casos que Rabelo teve de resolver, está o do volume do som do bar da comunidade. Ele também conduziu as investigações sobre o arrombamento de uma casa, da qual levaram um rádio. Não encontrou o culpado. Como o vilarejo não tem posto policial, em casos mais graves ele tem de recorrer à comunidade mais próxima, São Sebastião, ou, até mesmo, a Manaus, como ocorreu quando um vizinho agrediu outro com um facão.

Agora, Rabelo está tentando resolver o problema de um morador que pagou por uma encomenda de toras de madeira antecipadamente e não recebeu o combinado.

Sob o olhar do promotor de Justiça Mário Ypiranga Monteiro Neto, da equipe do Catuiara, a atuação do líder comunitário como autoridade legitimada pela população para solucionar conflitos remonta a 500 anos de história, ao direito indígena, fundamentado nos costumes. “Em qualquer comunidade, vai haver conflitos de interesses e, aqui [em Julião], eles resolvem isso de forma extraprocessual, extra-autos”, constatou.

Há situações, no entanto, em que só a intervenção estatal pode resolver o problema, a exemplo da questão de posse de terras. Julião assenta-se sobre área particular. “Somos posseiros”, reconheceu Rabelo. “Queria que a gente fosse proprietário. Já falaram pra gente pedir usucapião, mas não temos dinheiro pra pagar advogado. Acho que o governo tinha de desapropriar”, sustentou o líder comunitário.

Ele vê a falta de escritura como o maior obstáculo para o desenvolvimento do povoado. “Desse jeito, não podemos nem pedir um empréstimo no banco”.

Vida itinerante

Na linha de frente do Catuiara, o juiz Carlos Zamith e o promotor Mário Ypiranga Neto têm larga experiência em lidar com comunidades do interior amazonense. A toga eles deixam guardada “senão assusta”.

Com apenas 31 anos, o promotor passou seis anos trabalhando no interior do Estado, no município de Autazes, a 665 quilômetros de Manaus. “Andava 15 minutos numa “voadeira” (pequeno barco com motor de popa) e depois viajava mais três horas em estrada de terra para chegar ao trabalho”, relatou.

“O problema mais freqüente era com pensão alimentícia”, contou o promotor, que já fez muitos acordos para que o pai pagasse a pensão com latas de leite em pó.

Há dez anos, Carlos Zamith, juiz da 3ª Vara Criminal de Manaus, cuida dos dois ônibus da Justiça itinerante do TJ da Amazônica. “O estado tem 62 municípios e cada município tem sua microrregião, com centenas de comunidades. A maioria delas só pode ser alcançada pelos rios”, explicou.

O juiz auxiliar da presidência do TJ-AM, Abraham Campos Filho, também tem histórias do tempo em que era juiz da comarca de Jutaí, há 12 anos. Para chegar ao seu local de trabalho, ele viajava em avião comercial por uma hora, de Manaus a Tefé. Depois, passava 42 horas em um barco, até Jutaí. “Chegava lá com saudade de casa”, contou.

Campos Filho ficava três semanas no município e uma semana em Manaus, acompanhando recursos e cuidando de questões pessoais.

Desenhado para funcionar como um pequeno hotel, o Catuiara será, ao mesmo tempo, a casa e o ambiente de trabalho da equipe nas viagens mais longas. “Em muitos lugares, não há como a gente se hospedar, porque não há nem hotel nem casa pra alugar”, disse Zamith. Daí a importância da concepção do barco.

O próximo destino da embarcação é a vizinha São Sebastião. Ele vai atendendo a pedidos dos ribeirinhos do povoado, que aguardam ansiosos para receber a visita da Justiça. “Muitas vezes, é por falta de conhecimentos dos direitos que as pessoas não os exercem. É função do juiz, do promotor, levar o conhecimento dos direitos à população”, disse Mário Ypiranga Neto, ciente de sua missão a bordo do “juiz bom”. (STF)

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