Sob suspeita

Justiça determina sequestro de bens de prefeito de Cuiabá

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20 de abril de 2004, 17h40

O juiz Paulo Cézar Alves Sodré, da 2ª Vara Federal de Mato Grosso, concedeu liminar que determina o sequestro de bens do prefeito de Cuiabá, Roberto França Auad (PPS), dos ex-secretários municipais de Saúde e de Administração, respectivamente Benedito Cesarino Lara Fernandes e Paulo Ronan Ferraz Santos, e da ex-coordenadora administrativa da Fundação de Saúde de Cuiabá (Fusc), Nilva Benedita Cândida. Ainda cabe recurso.

A decisão foi tomada em ação proposta pelo Ministério Público Federal, que os acusa de improbidade administrativa. Segundo a denúncia, eles são responsáveis por um esquema de irregularidades praticadas no fornecimento de medicamentos ao SUS de Cuiabá, que teria sangrado mais de R$ 7 milhões dos cofres públicos.

Consta da ação que o desvio de verba, iniciado em 1996, teria sido levado a cabo pelos então secretários e pela coordenadora do Fusc. A empresa PJ Comércio e Representação, de propriedade do ex-secretário Paulo Ronan, teria intermediado boa parte dos desvios.

O prefeito Roberto França é responsabilizado por omissão. Isso porque, na ocasião, não tomou as medidas necessárias logo que soube das irregularidades. Mais que isso: afastou o médico que denunciou o esquema de corrupção, manteve os secretários nos seus respectivos cargos e promoveu Nilva.

Para deferir a liminar, o juiz considerou que "tanto a auditoria do Ministério da Saúde, quanto à do Tribunal de Contas da União, apontam a existência das irregularidades denunciadas (…)". E ressaltou: "Tem-se, portanto, que a existência das irregularidades é um fato concreto e inquestionável. O alcance de tais irregularidades, bem assim a exata dimensão do prejuízo e a imputação aos responsáveis, é fato que só poderá ser constatado após ampla produção probatória, assegurando-se aos requeridos o amplo direito de defesa, observado o devido processo legal".

A medida liminar determina o sequestro dos bens móveis e imóveis dos acusados. Mas não alcança as receitas mensais recebidas a título de salário ou remuneração por atividade profissional.

Leia a liminar:

PODER JUDICIÁRIO

JUSTIÇA FEDERAL

SEÇÃO JUDICIÁRIA DO ESTADO DE MATO GROSSO

2ª VARA

PROCESSO N°: 2004.36.00.002607-1

CLASSE 7300: AÇÃO DE IMPROBIDADE ADMINISTRATIVA

REQTE: MINISTÉRIO PÚBLICO FEDERAL

REQDOS: ROBERTO FRANÇA AUAD E OUTROS

Trata-se de ação de improbidade administrativa promovida pelo Ministério Público Federal contra Roberto França Auad, Paulo Ronan Ferraz Santos, Nilva Benedita Cândida e Benedito Cesarino Lara Fernandes, com pedido de liminar, para decretar o seqüestro de tantos bens móveis e imóveis dos réus, equivalentes ao valor da causa.

O requerente alega, em síntese, que:

a) em abril/97, o MPF recebeu informações da ocorrência de irregularidades no fornecimento de medicamentos ao SUS-Cuiabá, envolvendo a administração local, em conluio com diversas empresas distribuidoras de medicamentos e insumos hospitalares, como o superfaturamento de produtos, pagamento indevido de restos a pagar, exploração de prestígio por Secretários, aplicação indevida de verba federais, emissão de notas fiscais sem a entrega dos produtos;

b) o MPF recomendou a realização de auditoria ao Ministério da Saúde, através da qual foi constatado o superfaturamento praticado por pessoas jurídicas, causando prejuízos à União e aos cidadãos mato-grossenses;

c) o Presidente da FUSC homologou as licitações com produtos superfaturados e determinou à ré Nilva Benedita, como seu superior, que atestasse o recebimento de produtos que não eram entregues, e que deveriam ser fornecidos pela empresa do réu Paulo Ronan;

d) o superfaturamento dos preços impediu a aquisição de um número muito maior de medicamentos e produtos, causando prejuízos à população e à União;

e) tudo ocorreu com a conivência do Presidente da Fundação de Saúde de Cuiabá, e expressa anuência e participação da Coordenadora do Setor de Compras de material hospitalar e laboratorial, que atuou, inclusive, nas Comissões de licitação, sendo que o Secretário de Administração e proprietário de uma das empresas envolvidas beneficiou-se diretamente do esquema de corrupção; e


f) o Prefeito Municipal, ciente dos fatos, afastou o médico que noticiou o esquema ao MPF, ignorou as irregularidades cometidas, mantendo-se inerte, manteve os Secretários Municipais nos respectivos cargos e promoveu a servidora que operacionalizou o esquema de corrupção ao cargo de Coordenadora Administrativa da FUSC.

Requereu, ao final, a condenação dos réus no pagamento de indenização pelos danos materiais e morais causados à União; perda da função pública; suspensão dos direitos políticos; proibição de contratar com o Poder Público ou receber incentivos fiscais ou creditícios. Juntou os documentos de fls. 18/2124.

O réu Roberto França Auad manifestou-se à fls. 2126/2141, alegando, preliminarmente, a incompetência do juízo em razão da prerrogativa de função, tendo em vista o disposto no art. 84 do Código de Processo Penal, e em razão da matéria, uma vez que os recursos já haviam sido incorporados ao patrimônio do Município. No mérito, refutou as alegações do autor.

Às fls. 2.148/2.149 determinei ao autor que emendasse a inicial, e ainda, ao representante do Tribunal de Contas da União, neste Estado, que trouxesse aos autos cópia integral do Processo TC 003.780/2002-0.

O autor emendou a inicial, inclusive, alterando o valor da causa para R$ 7.270.445,73, por entender ser esse o efetivo prejuízo causado à União e à sociedade.

Às fls. 2.157/2.187, juntou-se o relatório da Auditoria do TCU, parecer ministerial e Acórdão do TCU Nº processo nº TC-003.780/2002-0.

Às fls. 2.188/2.189, petição do réu Roberto França Auad, acompanhada de documento (fls. 2.190), onde alega que o único pagamento efetuado à empresa PJ Comércio Representações Ltda. ocorreu por exclusiva responsabilidade do então presidente da FUSC, Benedito Cesarino Lara Fernandes, e ainda assim, antes da denúncia de irregularidades, data a partir da qual, por determinação do requerido, todos os pagamentos foram suspensos.

É o relatório. Decido.

Por primeiro, as preliminares.

Da Incompetência deste Juízo, por prerrogativa de função do réu Roberto França Auad (Prefeito Municipal).

Com suporte no § 2º do artigo 84 do Código de Processo Penal, acrescentado pela Lei 10.628, de 24 de dezembro de 2002, o réu Roberto França Auad postulou o reconhecimento da incompetência deste juízo, com a conseqüente declinação ao TRF da 1ª Região.

Dispõe o § 2º do artigo 84 do Código de Processo Penal:

“A ação de improbidade de que trata a Lei 8.429, de 2 de junho de 1992, será proposta perante o tribunal competente para processar e julgar criminalmente o funcionário ou autoridade na hipótese de prerrogativa de foro em razão do exercício da função pública, observado o disposto no § 1º”.

A teor da expressa disposição legal, de induvidosa clareza, competente para a análise desta demanda, seria o eg. TRF da 1ª Região. Assim vem entendendo o Supremo Tribunal Federal nas reclamações por ele analisadas, contra atos de juizes de 1º e 2º graus. O mesmo entendimento é perfilhado, ao que me parece, por unanimidade pelo TRF 1ª Região.

A propósito, o Ministro do STF Nelson Jobim, ao julgar procedente a reclamação proposta contra decisão do Juiz Federal Substituto da 14ª Vara da Seção Judiciária do Distrito Federal e do Juiz Relator da AC 1999.34.00.016727-9, do TRF 1ª Região, entre tantos outros argumentos, ponderou a um determinado momento que:

“(…) Assim, a admissão do convívio dos dois sistemas de responsabilidade para os agentes políticos propicia que um juiz substituto de primeiro grau suspenda, em caráter provisório, a pedido de um diligente membro do Ministério Público prestes a encerrar o estágio probatório, do exercício das suas funções, o PRESIDENTE DA REPÚBLICA, ALGUNS MINISTROS DE ESTADO, O PRESIDENTE DO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL, O PROCURADOR-GERAL DA REPÚBLICA, OU O COMANDANTE DO EXÉRCITO (original destacado)”.

As razões de decidir da reclamação noticiada encampa os fundamentos de uma corrente doutrinária que advoga uma interpretação extensiva da matéria sobre competência, tendo por substrato jurídico aspectos relevantes, os quais podem ser resumidos da seguinte forma:


a) os agentes políticos não se submetem ao rito procedimental da Lei nº 8.429/92;

b) o regime de crime de responsabilidade fixado no art. 102, inciso I, alínea “c” da Carta Magna e disciplinado pela Lei nº 1.079, de 1.950, é o que deve ser aplicado aos agentes políticos;

c) Sendo a Lei nº 8.429/92 e a Lei nº 1.079/50 institutos que definem os delitos político-administrativos, não é coerente que sobre os agentes políticos incidam duplamente dois regimes jurídicos. A superposição de regimes jurídicos distintos, provocará em conseqüência, decisões contraditórias.

Em que pese a relevância da argumentação, comungo do pensamento que a matéria de competência constitucional não admite interpretação extensiva por parte do judiciário, sendo ainda defeso ao legislador infraconstitucional dispor de forma contrária ao texto constitucional

Com efeito, dispõe o texto constitucional em seu artigo 108, ao fixar a competência dos Tribunais Regionais Federais:

“Art. 108: Compete aos Tribunais Regionais Federais:

I – processar e julgar, originariamente:

a) os juízes federais da área de sua jurisdição, incluídos os da Justiça Militar e da Justiça do Trabalho, nos crimes comuns e de responsabilidade, e os membros do Ministério Público da União, ressalva a competência da Justiça Eleitoral;

b) as revisões criminais e as ações s de julgados seus ou dos juízes federais da região;

c) os mandados de segurança e os hábeas data contra ato do próprio Tribunal ou de juiz federal;

d) os habeas corpus, quando a autoridade coatora for o juiz federal;

e)os conflitos de competência entre juízes federais, vinculados ao Tribunal;

II – julgar em grau de recurso, as causas decididas pelos juízes federais e pelos juízes estaduais no exercício da competência federal da área de sua jurisdição.”

Como se percebe, o constituinte, ao fixar a competência original do Tribunal Regional Federal, não elencou entre as várias atribuições a de julgar o prefeito municipal, por ato de improbidade administrativa. É bem verdade, que em função do princípio da simetria cabe aos Tribunais Regionais Federais a competência para julgar os prefeitos municipais, em matéria criminal, posto que tal competência é dos Tribunais de Justiça, por expressa determinação do art. 29, inciso X, da Constituição Federal.

Mas ali o caso é diferente: Trata-se de competência criminal, o que não está a ocorrer com os atos de improbidade administrativa praticados por prefeitos municipais, que por possuírem natureza civil, não são alcançados pela extensão daquela norma constitucional. Nesse sentido é a lição de Nelson Nery Junior, conforme transcrevo a seguir:

3. Crimes de responsabilidade. Improbidade administrativa. A L.1079/50 define, em seu art. 91, quais os crimes de responsabilidade por improbidade administrativa. Essa tipificação, estrita porque matéria criminal, nada tem a ver com a descrição dos atos de pura improbidade administrativa previstos e definidos na LIA 9º a 11. Os dois sistemas convivem harmonicamente porque um define  improbidade (L. 1079/50 91) e outro define os atos administrativos de improbidade (LIA 91 a 11). No primeiro o controle é político; no segundo, civil e administrativo. Ao contrário dos fatos descritos na LIA 91 a 11, técnicos, civis e administrativos, a tipificação dos crimes de responsabilidade por improbidade administrativa, notadamente o n. 7 (proceder de modo incompatível com a dignidade, a honra e o decoro do cargo), da L.1079/50, implica forçosamente a conclusão de que o controle desses crimes pelo Senado Federal é POLÍTICO, nada tendo de civil ou de administrativo, verbis: AL. 1079/50: Art. 9º. “São crimes de responsabilidade contra a probidade na administração: 1 – omitir ou retardar dolosamente a publicação das leis e resoluções do Poder Legislativo ou dos atos do Poder Executivo; 2 – não prestar ao Congresso Nacional dentro de sessenta dias após a abertura da sessão legislativa, as contas relativas ao exercício anterior; 3 – não tornar efetiva a responsabilidade dos seus subordinados, quando manifesta em delitos funcionais ou na prática de atos contrários à Constituição; 4 – expedir ordens ou fazer requisição de forma contrária às disposições expressas da Constituição; 5 – infringir no provimento dos cargos públicos, as normas legais; 6 – usar de violência ou ameaça contra funcionário público para coagi-lo a proceder ilegalmente, bem como utilizar-se de suborno ou de qualquer outra forma de corrupção para o mesmo fim; 7 – proceder de modo incompatível com a dignidade, a honra e o decoro do cargo.”


II: 4. Competência. Improbidade administrativa. As autoridades mencionadas na CF 52 II devem ser processadas por crime de responsabilidade perante o Senado Federal. Os atos de improbidade administrativa (LIA 9º a 11), bem como os lesivos ao patrimônio público (CF 51 LIII e PAP 1º e 11) não tipificam crime de responsabilidade, de modo que o Senado Federal não é competente para processar ação pública por improbidade administrativa nem ação popular movida contra as autoridades mencionadas na CF 52 I e II. A competência é do juízo federal de primeiro grau (CF 109 I). A noção de crime é estrita – só pode ser definida em lei penal (CF 85 par. Ún.; L. 1079/50) – e não pode ser estendida às hipóteses de infrações civis ou administrativas, assim descritas pela lei civil ou administrativa (LIA e LAP). O fato de a LIA 12 conter previsão de devolução de bens, indenização, perda da função pública e suspensão de direitos políticos, não transforma a natureza dessas penas civis e administrativas em penas criminais. O que define o ato como crime não é a pena para ele prevista, mas a tipificação legal desse ato como crime. A propósito, os militares estão sujeitos à pena privativa de liberdade por infração administrativa, não controlável por habeas corpus, e essa pena administrativa militar não transforma a infração administrativa em crime. Da mesma forma, a perda da função pública pode ser pena criminal (CP 92 I e CF 52 par. ún.) ou administrativa (LIA 12). Crime de responsabilidade tem definição própria, cujo conceito não abarca outras figuras dos direitos difusos, administrativo ou civil. A CF 15 V c/c CF 37 ‘ 41 determinam a perda e suspensão de mandato eletivo por prática de atos de improbidade administrativa, “sem prejuízo da ação penal cabível” (CF 37 § 4º in fine), a que, por si só, indica que essas penas têm natureza não penal. A L. 10628/02, que modificou a redação do CPP 84 para permitir que a ação civil de improbidade administrativa seja processada perante o juízo criminal ao qual estão sujeitas as respectivas autoridades (v.g. STF e STJ) é inconstitucional, não podendo ser aplicada. V. coments. CF 102 I e 105 I e, na legislação extravagante, título “Improbidade administrativa”, coments. LIA 12.

Como a Constituição Federal não fez constar no rol de competência originária dos Tribunais Regionais Federais a de julgar os prefeitos municipais, por atos de improbidade administrativa, não pode o legislador infraconstitucional, no apagar das luzes do ano de 2002 – sabe se lá por qual motivo -, outorgar-lhe tal competência, nos termos do § 2º do art. 84 do Código de Processo Penal, acrescentado pela Lei nº 10.628/2002, padecendo assim de vício de constitucionalidade.

Nesse sentido, cito o acórdão do Superior Tribunal de Justiça, tendo por relator o Ministro Nilson Naves, onde a Corte Especial daquele Tribunal, no autos da Reclamação (RCL 591/SP, DJ 15/05/2000, p. 00112), assim decidiu:

“Improbidade administrativa (Constituição, at. 37, § 4º, Cód. Civil, arts. 159 e 1.518, Leis nºsº 7.347/85 e 8.429/92). Inquérito civil, ação cautelar inominada e ação civil pública.Foro por prerrogativa de função (membro de TRT). Competência. Reclamação.

(…)

2.Competência não se presume (Maximiliano, Hermenêutica,265), é indisponível e típica (Canotilho, in Resp-28.848, DJ de 02.08.93). Admite-se, porém, competência por força de compreensão,ou por interpretação lógico-etensiva.

3. Conquanto caiba ao STJ processar e julgar, nos crimes comuns e nos de responsabilidade, os membros dos Tribunais Regionais do Trabalho (Constituição, art. 105, I, a), não lhe compete, porém, explicitamente, processa-los e julga-los por atos de improbidade administrativa. Implicitamente, sequer,admite-se tal competência, porquanto, aqui, trata-se de ação civil, em virtude de investigação de natureza civil. Competência, portanto, de juiz de primeiro grau.

4.De lege ferenda, impõe-se a urgente revisão das competências jurisdicionais.


5.À míngua de competência explícita e expressa do STJ, a Corte Especial, por maioria de votos, julgou improcedente a reclamação”. (grifei)

Ademais, a natureza civil da Lei nº 8.429/92, que parte da doutrina e da jurisprudência, mesmo a reconhecendo, fazem questão de ignorar, vem devidamente estampada no § 4º do art. 37 da Constituição da República:

“§ 4º – Os atos de improbidade administrativa importarão a suspensão dos direitos políticos, a perda da função pública, a indisponibilidade dos bens e o ressarcimento ao erário, na forma e gradação previstas em lei, sem prejuízo da ação penal cabível” (grifei).

Fosse efetivamente aplicável o regime jurídico da Lei nº 1.079/50 aos agentes políticos, em matéria de improbidade administrativa, porque teria o legislador constitucional efetuado a ressalva contida na última linha do § 4º do art. 37 acima transcrito? Ou indagando de outra forma: ao legislador infraconstitucional ter disposto na forma como disciplinada na Lei nº 10.628/2002, e, ao julgador dar interpretação extensiva à matéria competencial, não estariam, ambos, por via oblíqua, retirando a eficácia do § 4º do art. 37 da Magna Carta?

Penso que sim.

Desconheço no direito comparado tamanho privilégio, em relação ao foro por prerrogativa de função, sendo cediço que o sistema jurídico de países exponenciais permite que o representante máximo de seu poder político seja julgado por juiz de primeira instância. Entretanto, em função da nossa tradição jurídica, legitimada pela perpetuação dos privilégios históricos às classes dirigentes, reconheço não ser tão inusitada a concessão de tais privilégios, os quais só cessarão após um árduo e intenso processo de amadurecimento da nossa democracia, o que por certo não se faz da noite para o dia.

Entretanto, tratando-se de foro de exceção em odiosa discriminação aos demais cidadãos, é necessário que da leitura do texto constitucional não paire dúvida alguma da intenção do legislador constitucional. Somente por decisão política discricionária a ser inserida no texto constitucional é que se pode admitir não sejam os agentes políticos submetidos ao julgamento por ato de improbidade administrativa, da mesma forma e na mesma instância que os demais cidadãos.

Caso contrário, não se estará dando a efetividade imperativa ao texto constitucional.

Nesse sentido, trago à colação, entendimento do Ministro do Supremo Tribunal Federal, Celso de Mello, que ao apreciar a matéria sobre a efetividade do texto constitucional, assim se posicionou como relator da ADIN 293-7-DF (DJU de 16/04/93, pg. 6.429):

“Uma Constituição escrita não configura mera peça jurídica, nem simples estrutura de normatividade e nem pode caracterizar um irrelevante acidente histórico na vida dos Povos e nas Nações. Todos os atos estatais que repugnem à Constituição expõem-se à censura jurídica dos Tribunais, especialmente porque são írritos, nulos e desvestidos de qualquer validade. A Constituição não pode submeter-se à vontade dos poderes constituídos e nem ao império dos fatos e das circunstâncias. A supremacia de que ela se reveste – enquanto for respeitada – constitui a garantia mais efetiva de que os direitos e liberdades não serão jamais ofendidos”.

Face ao exposto, reconheço a inconstitucionalidade “incidenter tantum ” do § 2º do art. 84 do Código de Processo Penal, na redação acrescida pela Lei nº 10.628/2002, e afasto a alegada incompetência deste juízo.

Da Incompetência deste Juízo, em função da matéria.

Alega o réu, Roberto França Auad, que em função de ter a verba sido incorporada ao patrimônio do município a competência, de acordo com a Súmula 209 do STJ, seria da Justiça Estadual (Súmula 209: “Compete à Justiça Estadual processar e julgar prefeito por desvio de verba transferida e incorporada ao patrimônio municipal”).


Improcede a preliminar suscitada, primeiro porque não houve a incorporação da verba ao patrimônio da Prefeitura Municipal. Referida verba foi ou deveria ter sido aplicada na saúde dos munícipes, tendo o Município, no máximo a responsabilidade pela gestão de tais recursos.

Segundo, porque ou o requerido esqueceu de mencionar, ou desconhece o teor da Súmula 208, também do STJ:

“Compete à Justiça Federal processar e julgar Prefeito Municipal por desvio de verba sujeita a prestação de contas perante órgão federal”

Ora, no caso, tratando-se de verba pública federal, destinada ao Sistema de Saúde Municipal, deve o município prestar contas não só ao Ministério da Saúde, mas também ao Tribunal de Contas da União.

Afasto, assim, a preliminar de incompetência em função da matéria, na forma como alegada pelo requerido Roberto França Auad.

Ultrapassada as preliminares, volvo-me ao pedido contido na inicial.

DO PEDIDO DE LIMINAR

A pretensão do Ministério Público Federal, com suporte legal no art. 10, incisos V, XI, XII, c/c o artigo 12, inciso II, ambos da Lei nº 8.429/92, tem por objetivo principal o ressarcimento de danos materiais e fixação de danos morais, em função da má gestão e desvio de verbas públicas federais, envolvendo a gestão de recursos públicos destinados à área de saúde do Município de Cuiabá/MT. Os fatos narrados na inicial, corroborado pela emenda de fls. 2.153/2.155, podem ser sintetizados sobre quatro fatos distintos: (a)superfaturamento; (b) não entrega de produtos; (c) produtos entregues fora da especificação; e (d) pagamentos de “restos a pagar” de forma indevida.

Desses quatro fatos concretos, praticados em tese por Paulo Ronan Ferraz Santos, Nilva Benedita Cândida e Benedito Cesarino Lara Fernandes, teria surgido a responsabilidade do atual prefeito da cidade de Cuiabá/MT, o quarto requerido, Roberto França Auad. Segundo o MPF, o requerido Roberto França Auad, foi omisso ao não ter adotado as medidas necessárias e eficientes tão logo soube das irregularidades.

Além do mais, acabou por afastar o denunciante das irregularidades – médico Bohdan Baranhuk Sologe -, mantendo na função de Secretários Municipais, de Saúde e de Administração, respectivamente, Benedito Cesarino Lara Fernandes e Ronan Ferraz Santos. Promoveu ainda, a requerida Nilva Benedita Cândida ao cargo de Coordenadora Administrativa da Fundação de Saúde de Cuiabá – FUSC.

Os fatos noticiados pelo MPF são graves e, a princípio, demonstram um enorme prejuízo financeiro ao Sistema Público de Saúde, e em particular às burras da União, pois, o dinheiro destinado à saúde não foi corretamente aplicado. Ressalto que não são apenas fatos desacompanhados de qualquer indício de provas, pelo contrário, junto com a inicial, na ampla e vasta documentação composta de mais de oito volumes, acrescida ainda, de documentos entregue pelo Tribunal de Contas da União, a pedido deste Juízo, verifica-se a existência de duas auditorias já realizadas, e ainda de uma Comissão de Sindicância realizada pelo Município de Cuiabá/MT.

Tanto a auditoria do Ministério da Saúde, quanto à do Tribunal de Contas da União, apontam a existência das irregularidades denunciadas a este Juízo, pela inicial. E ainda, a Comissão de Sindicância também andou no mesmo rumo, identificando com algumas nuances, as mesmas irregularidades.

Tem-se, portanto, que a existência das irregularidades é um fato concreto e inquestionável. O alcance de tais irregularidades, bem assim a exata dimensão do prejuízo e a imputação aos responsáveis, é fato que só poderá ser constatado após ampla produção probatória, assegurando-se aos requeridos o amplo direito de defesa, observado o devido processo legal.

Resta nesse momento, em sede de análise do pedido liminar, aferir se a hipotética responsabilidade dos requeridos justifica o grave e excepcional pedido de seqüestro de todos os bens dos requeridos como forma de garantir, enquanto pendente a instrução processual, que ao final da demanda, em sendo provada a responsabilidade dos requeridos, seja o patrimônio público ressarcido dos prejuízos causados pelos demandados.


Confrontando o interesse público, com o direito de livre disposição da propriedade (patrimônio dos requeridos), bens constitucionalmente tutelados, concluo que há de se sacrificar, ainda que momentaneamente, o direito dos requeridos, a fim de resguardar-se o patrimônio público. Isso se faz, pois inexistem direitos e valores absolutos garantidos pelo texto constitucional. Havendo o confronto entre direitos igualmente protegidos pela ordem constitucional, há sempre de se aferir, qual no caso concreto deve ser prestigiado. Neste caso, não restam dúvidas, que a garantia ao patrimônio público, revela-se como um bem maior a ser assegurado.

Ademais, em sede ação de improbidade administrativa, para se decretar o seqüestro dos bens dos requeridos importam somente dois fatos, os quais, já advirto estão presentes: a existência de prejuízo ao interesse e patrimônio público, e, “fundados indícios de responsabilidades” dos requeridos pelos atos comissivos ou omissivos, que geraram esse prejuízo.

Dos indícios de responsabilidade dos requeridos Benedito Cesarino Lara Fernandes, Nilva Benedita Cândida e Paulo Ronan Ferraz Santos.

Os prejuízos suportados pelos cofres públicos, em decorrência dos atos praticados, em tese, pelos requeridos Benedito Cesarino Lara Fernandes, Nilva Benedita Cândida e Paulo Ronan Ferraz Santos, estão bem demonstrados.

A uma, a iniciar-se pelo depoimento minucioso efetuado perante o MPF, pelo então denunciante, o médico Bohdan Baranhuk Sologe (fls. 25/31), dando conta das irregularidades envolvendo a área de saúde do Município de Cuiabá/MT;

A duas, após a auditoria realizada pelo Ministério da Saúde – relatório às fls. 403/412 -, verifica-se às fls. 686/687, ao que me parece despacho conclusivo daquele Ministério, onde, com suporte na conclusão dos auditores, relata a existência de superfaturamento em diversos materiais e equipamentos hospitalares, além de aquisição de materiais e medicamentos em quantidade excessiva.

A três, com suporte na informação fiscal efetuada por Auditor Fiscal do Tesouro Nacional, em que informa que as operações envolvendo a Fundação de Saúde de Cuiabá e a empresa JP Comércio e Representações Ltda – empresa de propriedade do então Secretário Municipal e requerido Paulo Ronan Ferraz Santos -, foram baseadas em notas fiscais que além de não terem sido registradas no livro fiscal correspondente foram “calçadas” (1)(fls. 731)

A quatro, pois a Comissão de Sindicância instaurada pela prefeitura municipal de Cuiabá, em seu relatório final (fls. 1.165/1.1175), concluiu em seu parecer final pela responsabilidade dos requeridos:

“a) A servidora NILVA BENEDITA CÃNDIDA, em realidade infringiu o disposto no Art. 174 e seu Parágrafo Único da Lei nº 1.259/A de 02 de março de 1972 – Estatuto dos Servidores Públicos do Município de Cuiabá.

(…..)

d) – O Secretário de Saúde, o Presidente da FUSC, o Diretor Superintendente do Pronto Socorro Municipal, o Diretor Executivo e os Membros da Comissão de Licitação da FUSC, todos pertencentes à Gestão anterior, pela negligência dos seus atos, deverão responder pela responsabilidade dos seus referidos atos e omissões praticados, considerando-se que deveriam ter observado com maior empenho os registros de preços constantes dos Editais, nas tomadas de preços, eis que, até a data de hoje (23.06.97) não nos foi apresentado todos os documentos solicitados à FUSC.

(….)” (grifo no original)

A cinco, consta do parecer da lavra do Subprocurador-Geral do Ministério Público Federal, oficiando perante o Tribunal de Contas da União, no processo TC-003.780/2002-0 (fls. 2.167), um pertinente resumo das conclusões a que chegaram os analistas do Tribunal de Contas da União. Transcrevo abaixo as conclusões relativas às condutas dos requeridos ora em análise:

“a) a equipe constatou que nem mesmo durante a realização de sindicância foram suspensos os pagamentos de Restos a Pagar, sendo que a suspensão só se efetivou muito tempo após a realização da sindicância e, por isso, não surtiu efeito significativo;


(…)

c) afronta ao princípio da segregação de funções, visto que a Sra. Nilva Benedita Cândido era Secretária da Comissão de Licitação e, ao mesmo tempo, responsável pelo Setor de Compras;

(…)

e) pagamento de fatura com preterição da ordem cronológica (art. 92 da Lei 8.666/93);

f) diversas irregularidades em licitações e na execução de contratos, conforme reportado em instrução anterior (fls. 82 a 91), como a concernente à emissão de notas “frias” pela empresa de Paulo Ronan Ferraz Santos, Secretário de Administração e sócio da PJ Comércio de Materiais Hospitalares, sendo que a servidora Nilva Benedita Cândido, Gerente da Farmácia do Pronto Socorro, que atestou o recebimento de mercadorias da referida pessoa jurídica, foi promovida à Coordenadora de Administração da Fundação;

(…)”

Assim, os mesmos fatos, acrescidos por vezes de outros mais graves, foram já analisados não só pela Comissão de Sindicância da Prefeitura do Município de Cuiabá, pela Auditoria do Ministério de Saúde, por Auditor Fiscal da Receita Federal, e por fim, por Analistas do Tribunal de Contas da União, e todos, cada qual com uma análise específica, concluíram pela existência de graves irregularidades, com prejuízo ao erário, notadamente pela malversação e desvio de verbas públicas federais.

Tais fatos, da forma como apresentados, não só autorizam, mas obrigam a este juízo, a bem do interesse público e no intuito de dar garantia ao efetivo ressarcimento dos prejuízos sofridos pelo patrimônio público, determinar na forma como requerida pelo MPF, o seqüestro de tantos bens, quanto necessários dos requeridos Paulo Ronan Ferraz Santos, Nilva Benedita Cândida e Benedito Cesarino Lara Fernandes.

Dos indícios de responsabilidade do requerido Roberto França Auad

De acordo com a inicial, conquanto o requerido Roberto França Auad não tenha praticado os mesmos atos que os demais requeridos, teria se portado com omissão, e mais, aquiescendo e convalidando determinados atos praticados na gestão anterior, inclusive por ter mantido os requeridos nos cargos, e ainda, ter promovido uma das requeridas.

Mesmo sem ter sido notificado, o requerido Roberto França Auad, curiosamente, manifestou-se nos autos, dando-se por notificado, alegando em síntese que: (a) para que todas as condutas que lhe foram imputadas sejam comprovadas, há a necessidade de ampla produção probatória; (b) que todas as condutas imputadas contra si, são subsidiárias às condutas de terceiros, não existindo no direito pátrio a responsabilidade objetiva; (c) ao tomar conhecimento dos fatos adotou a seguintes providências: (c.1) determinou a abertura de Comissão de Sindicância, inclusive comunicando os fatos denunciados ao MPF; (c.2) a fim de estancar as supostas práticas lesivas ao erário municipal, determinou a suspensão de todo e qualquer pagamento às referidas empresas; (c.3) e exonerou os assessores envolvidos na denúncia; (d) o processo licitatório deflagrado e que rendeu ensejo às aquisições mencionadas, ocorreu nos idos de 1996 (processo 1.915/96), ocasião em que o requerido não era o Prefeito Municipal; (e) a vedação de restrição ao pagamento de “restos a pagar”, somente veio a compor o ordenamento jurídico a partir da edição da Lei Complementar nº 101/2000 (Lei de Responsabilidade Fiscal); (f) a inscrição em restos a pagar, oriundo da elaboração do orçamento de 1997, não foi de iniciativa do requerido, que ainda não havia assumido o executivo municipal.

Assiste razão ao requerido, quando afirma que para serem comprovada todas as acusações, contidas na inicial, há a necessidade de ampla produção probatória. Tanto assim, que em linhas precedentes, este juízo, ao analisar a viabilidade da pretensão cautelar já afirmara que “o alcance de tais irregularidades, bem assim a exata dimensão do prejuízo e a imputação aos responsáveis, é fato que só poderá ser constatado, após ampla produção probatória, assegurando-se aos requeridos, o amplo direito de defesa, observado o devido processo legal”.


Como nesse momento, a teor do que dispõe o “caput” do art. 16 da Lei nº 8.429/92, se faz necessário somente a existência de fundados indícios de responsabilidade do requerido, nada impede a apreciação da pretensão cautelar requerida pelo autor.

Em relação à suposta responsabilidade objetiva, que segundo o requerido, seria vedado pelo ordenamento jurídico, entendo que tal argumento não se aplica ao caso concreto. Primeiro, ressalto que os precedentes jurisprudenciais trazidos aos autos pelo requerido referem-se à responsabilidade objetiva na seara penal, quando a presente demanda tem natureza eminentemente civil.

Ademais, a pretensão do autor tem respaldo legal no art. 10, inciso V, XI, XII da Lei nº 8. 429/92, “in verbis”:

“Art. 10. Constitui ato de improbidade administrativa que causa lesão ao erário qualquer ação ou omissão, dolosa ou culposa, que enseje perda patrimonial, desvio, apropriação, malbaratamento ou dilapidação dos bens ou haveres das entidades referidas no art. 1º desta Lei e notadamente:

(…);

V – permitir ou facilitar a aquisição, permuta ou locação de bem ou serviço pro preço superior ao de mercado;

(…);

XI – liberar verba pública sem a estrita observância das normas pertinentes ou influir de qualquer forma para a sua aplicação irregular;

XII – permitir, facilitar ou concorrer para que terceiro se enriqueça ilicitamente;

(…)”.

Diante do texto legal acima transcrito, em especial o “caput” do art. 10 da Lei nº 8.429/92, é irrelevante a alegação do requerido de que estão sendo lhe imputados fatos subsidiários. Ora, mesmo que, em tese, o requerido não tenha praticado nenhum dos atos imputados aos demais requeridos, a pretensão ministerial funda-se exatamente na sua omissão, de na qualidade de chefe do Executivo Municipal, nada ter feito para impedir a consumação das irregularidades. É lhe imputado ainda, o fato de ao se omitir, ter aquiescido com a as irregularidades que estavam sendo cometidas.

Se o requerido tem ou não responsabilidade pelos fatos lhe imputados, é matéria a ser apreciada durante e após a dilação probatória, mas, a princípio, resta claro a existência de indícios de sua omissão, o que certamente encontra respaldo nos dispositivos legais já mencionados.

É bem verdade que o requerido em 09 de abril de 1997, através do Decreto nº 3.351, de 09 de abril de 1997 (fls. 353), constituiu Comissão de Sindicância para apurar os fatos. Entretanto, só o fez praticamente um mês após ter tido conhecimento das irregularidades (fls. 025/031 – depoimento do médico BOHDAN BARANHUK SOLOGE, perante o MPF).

A alegação de que levou ao conhecimento do Ministério Público Federal os fatos ocorridos, também não merece guarida. Isso porquê os fatos só foram comunicados ao MPF no final do ano de 1998 (fls. 351), após a Comissão de Sindicância ter encerrado os trabalhos. E, ainda assim, por provocação efetuada pelo órgão ministerial. Portanto, não foi observado a obrigação de se dar conhecimento prévio ao MPF e ao Tribunal de Contas da existência de irregularidades, conforme preconiza o art. 15 da Lei nº 8.429/92. Tal omissão, não possibilitou aos órgãos mencionados o exercício da faculdade de designar representante para acompanhar o procedimento administrativo.

Em sua manifestação o requerido alega que determinou a suspensão de todo e qualquer pagamento às empresas envolvidas, trazendo aos autos como prova o Decreto nº 3.315, de 1º de janeiro de 1.997. Necessário se fazem três ponderações.

Primeiro, o decreto mencionado foi expedido em 01 de janeiro de 1997, com conteúdo genérico, não se referindo expressamente ao pagamento dos valores incluídos em restos a pagar vinculado às empresas suspeitas de terem cometido irregularidades, mesmo porque, a denúncia foi efetuada pelo médico BOHDAN BARANHUK SOLOGE somente no início do mês de março de 1997;

Segundo, conforme o próprio parágrafo único do artigo 1º do mencionado decreto, o prazo de suspensão dos pagamentos foi de 60 (sessenta) dias. Como a denúncia foi efetuada pelo médico BOHDAN BARANHUK SOLOGE no início do mês de março de 1997, não se pode afirmar que a proibição ainda estava vigente.


Da mesma forma a alegação de que teria exonerado os envolvidos na denúncia, não afasta os indícios de que tenha se portado com omissão perante os fatos. Ora, a denúncia data de março de 1997, ao passo que os requeridos Paulo Ronan Ferraz Santos e Benedito Cesarino de Lara Fernandes só foram exonerados, respectivamente, em 18 de fevereiro de 1998 e 10 de dezembro de 1998, ou seja, um foi exonerado passados quase 12 meses, e o outro quase dois anos após a denúncia. E o que é mais importante, conforme consta dos documentos acostados às fls. 2.145/2.146, a exoneração dos requeridos se deu a pedido deles, demonstrando assim, que tal medida não fora efetivada de moto próprio pelo requerido Roberto França Auad.

Por último, a requerida Nilva Benedita Cândido, além de não ter sido exonerada – não há nos autos prova de que ela tenha recebido outra punição -, foi ainda promovida para exercer a função de assessora administrativa de 1997 a 2000, conforme relatam os analistas do Tribunal de Contas da União (fls. 77, item 21, Processo 003.780/2002-0, volume principal, em apenso à esta ação).

É verdade que parte dos fatos alegados pelo autor, refere-se a processo de licitação ocorrido nos idos de 1996, ocasião em que o requerido não era o Prefeito Municipal.

Mas pelo que consta dos autos, tal afirmação não pode ser tida como verdade absoluta. Isso se afirma, face ao narrado pelos analistas do Tribunal de Contas da União, às fls. 94 (Processo TC nº 003.780/2002-0, volume principal, apenso à esta ação), onde após fazerem uma análise das ocorrências investigadas afirmam:

“Na verdade, mudou-se a administração, mas as pessoas e empresas fornecedoras continuam as mesmas e há indícios de que continuam ocorrendo os mesmos fatos, considerando que:

a) não há qualquer controle da execução financeira e orçamentária, não existe controle interno na Fundação de Saúde de Cuiabá e o …….(…);

b) as concorrências para registro de preços de medicamentos, materiais hospitalares e odontológicos não passam de mero engodo, já que a FUSC não paga as faturas na ordem cronológica de sua apresentação, mas escolhe a quem pagar e quando afastando os fornecedores indesejáveis ()…).);

c) O mesmo grupo de empresas ainda atua na FUSC e na Secretaria de Administração do Município de Cuiabá (por exemplo Volume 5, fls. 81, 84 e 07 e todo o Vol. 3), vencendo as concorrências de registro de preços acima mencionadas e convites realizados;

d)foram identificadas graves irregularidades em procedimentos licitatórios, relatados no subitem 5.4, (fls. 34 a 36).

e)Superfaturamento nas aquisições de medicamentos (item 60).

f)Notas fiscais atestadas referentes a mercadorias que nunca foram entregues a FUSC (48, 62/68).

g) Compra de medicamentos de marca ou “similares”, ao invés de adquirir medicamentos genéricos, contrariando norma do Ministério da Saúde neste sentido e por conseqüência dificultando a comparação de preços entre os licitantes e ainda correndo o risco de adquirir medicamentos cuja fórmula seja muito diferente da licitada, já que o chamado “similar” não garante a mesma formulação, e correndo o risco, também de adquirir medicamento de origem duvidosa, pondo em risco a saúde da população atendida e por fim;

(…)”

Continuando, relatam os analistas do Tribunal de Contas da União que o requerido, Roberto França Auad, ciente dos fatos tomou as seguintes providências:

“a) afastou o Médico Dr. Bohdan da gestão do FUSC (teria oferecido cargo em outro local para o mesmo, que recusou);

b)Manteve em absoluto sigilo o processo de sindicância, que comprovou cabalmente as denúncias feitas pelo Dr. Bohdan Baranhuk Sologe, não tendo sido disponibilizado à equipe de Auditoria do Ministério da Saúde quando da auditoria realizada no final de 1997, tendo sido sonegado ao TCU na Auditoria intitulada “Diagnóstico da Saúde no Brasil” em 1998 e sonegado nesta auditoria (….).

c)Manteve na função de Secretário de Saúde o Médico Dr. Benedito Cesarino, que autorizou o pagamento do valor de R$ 450.000,00 às empresas denunciadas, pagamento que estava suspenso por decreto executivo (item);


d)Manteve como Secretário de Administração Paulo Ronan Ferraz Santos, sócio proprietário da empresa PJ Comércio de Materiais Hospitalares que, conforme cabalmente demonstrado na Comissão de Sindicância, emitiu contra a FUSC notas fiscais “frias” no valor de R$ 273.125,47 (após Diligência Fiscal da Receita Federal apurou-se que eram notas calçadas) (item);

e)Promoveu a servidora Nilva Benedita Cândido, que atestou o recebimento das mercadorias no verso das notas fiscais da empresas no Secretário de Administração, mencionadas acima. De gerente da farmácia do Pronto Socorro, passou a Coordenadora de Administração de toda a Fundação. No exercício de 2000 esta servidora era, ao mesmo tempo secretária da comissão de licitação e responsável pelo recebimento das mercadorias licitadas, atestando as notas fiscais (item).”

Ademais, ao contrário do quanto argumentado pelo requerido Roberto França Auad, os indícios de irregularidades não se referem exclusivamente ao período anterior à sua gestão. Transcrevo, a propósito parte do relatório do voto do Ministro do Tribunal de Contas da União, Marcos Vinicios Vilaça no Acórdão nº 3.086/2003 – TCU-1ª CÂMARA (fls. 2.170/2187), onde referido Ministro, após dimensionar o período a que se refere a auditoria, reproduziu o notável trabalho dos experientes analistas do Tribunal de Contas da União, tantas vezes já mencionado por este juízo:

“2. Os exames da presente auditoria compreenderam as licitações, contratos e convênios dos exercícios de 1997 a 2001, mediante documentos consultados na Prefeitura Municipal de Cuiabá e na Fundação de Saúde de Cuiabá, estendendo-se as visitas ao Almoxarifado Central da FUSC, Pronto Socorro Municipal, Ministérios Públicos Federal e Estadual, Tribunal de Contas do Estado, escritório do Ministério da Saúde e Hospital Universitário Júlio Muller.

(…)

53. Observa-se, conforme levantamento acima, que, em 2001, o valor mensal licitado era de R$ 558.332,35 para 267 itens, totalizando aproximadamente R$ 6.700.000,00 anuais. Em 2000, todavia, o valor mensal licitado foi de R$ 68.433,46, para 32 itens, totalizando R$ 821.201,52 anuais.

54. Dada a natureza da despesa, cujo consumo pouco varia de um ano para outro, e considerando a diferença na quantidade de itens licitados (235 itens), é possível calcular que foram adquiridos em 2000 aproximadamente R$ 5.800.000,00 em medicamentos sem licitação, já que a concorrência para registro de preços foi a única licitação para medicamentos naquele ano.

55. Causa estranheza a pouca competitividade nas concorrências da FUSC realizadas em 1997, 1998 e 2000 (neste último ano concorreram apenas 3 participantes). No mesmo mercado de Cuiabá, são realizadas tomadas de preços pelo Hospital Universitário Júlio Muller, ligado à UFMT, onde participam em torno de 25 empresas, embora o volume de aquisições ser muito menor que o da FUSC. Por que esse desinteresse pelas concorrências da FUSC?

(…) ” (grifei)

Por fim, às fls. 87/89 (Processo TC nº 003.780/2002-0, volume principal, em apenso), os analistas do Tribunal de Contas da União relatam a existência de irregularidades nos Convênios celebrados com o Ministério da Saúde, nºs 1.410/97, 2.117/97, 868/98, 3.255/98, 3.111/98, 2.132/99 e 2.511/99, os quais somados perfazem um total de R$ 1.055.340,30 (Um milhão, cinqüenta e cinco mil, trezentos e quarenta reais e trinta centavos).

Em referidos convênios não teriam sido encontrados pela auditoria do Ministério da Saúde diversos aparelhos, pretensamente adquiridos com aqueles recursos, tais quais um aparelho de eletroencefalograma, dois conjuntos odontológicos completos, um eletrocardiógrafo completo. E no Convênio 2.511/99 já mencionado, tendo sido já repassado pelo Ministério da Saúde a quantia de R$ 151.168,27 (cento e cinqüenta e um mil, cento e sessenta e oito reais e vinte e sete centavos), nenhum dos equipamentos objetos do convênio foram localizados pela equipe de Auditoria do Ministério da Saúde.

Enfim, por todos os ângulos em que os fatos são observados, percebe-se sem muito esforço, que há fundado indícios de que todos os requeridos tenham responsabilidade no prejuízo suportado pelo patrimônio público, em especial o da União, pois ao que tudo indica, verbas públicas federais subsidiaram licitações fraudulentas, com eliminação de licitantes, preterição da ordem cronológica de pagamento, enfim, diversas irregularidades, inclusive com a grave suspeita de que verbas federais foram utilizadas para aquisição de medicamentos, sem que sequer tivesse ocorrido a licitação.


Por um lado, as evidências das responsabilidades dos requeridos Paulo Ronan Ferraz Santos, Nilva Benedita Cândida e Benedito Cesarino Lara Fernandes, prendem-se, de início, a fatos concretos ocorridos na gestão municipal anterior à posse do atual prefeito municipal.

De outra banda, pesa contra o requerido Roberto França Auad, a imputação de não ter adotado com eficácia medidas aptas a remediar as irregularidades ocorridas na gestão anterior, mas com reflexos na sua gestão.

Não bastasse a previsão legal da sua conduta omissiva nos termos da Lei nº 8.429/92, que regula os atos de improbidade administrativa, tratando-se de verbas públicas federais é a matéria também disciplinada pelo artigo 8º da Lei nº 8.443/92, que em seu artigo 8º assim dispõe:

“Art. 8º Diante da omissão no dever de prestar contas, da não comprovação da aplicação dos recursos repassados pela União, na forma prevista no inciso VII do Art. 5º desta Lei, da ocorrência de desfalque ou desvio de dinheiro, bens ou valores públicos, ou, ainda, da prática de qualquer ato ilegal, ilegítimo ou antieconômico de que resulte dano ao Erário, a autoridade administrativa competente, sob pena de responsabilidade solidária, deverá imediatamente adotar providências com vista à instauração da tomada de contas especial para apuração dos fatos, identificação dos responsáveis e quantificação do dano. (grifei)

Por seu turno, dispõe o inciso VII do art. 5º da Lei nº 8.443/92, ao disciplinar o dever de prestar conta perante o TCU:

“Art. 5º A jurisdição do Tribunal abrange:

I …..omissis

(….)

VII – os responsáveis pela aplicação de quaisquer recursos repassados pela União, mediante convênio, acordo, ajuste ou outros instrumentos congêneres, a Estado, ao Distrito Federal ou a Município.”

Repise-se, o ato omissivo do requerido Roberto França Auad, tanto pela Lei nº 8.429/92, quanto de acordo com a Lei nº 8.443/92, demonstram a este juízo fundado indícios de sua responsabilidade para com os prejuízos gerados ao patrimônio público.

Ademais, os indícios de omissão são corroborados pelos fortes indícios de que na sua própria gestão tenha ocorrido várias irregularidades na administração das verbas federais recebidas através dos convênios com o Ministério da Saúde.

Em face destes fatos, tenho por presentes os fundados indícios de responsabilidade dos requeridos a que se reporta o artigo 16 da Lei nº 8.429/92, o que me leva a decretar o seqüestro de tantos bens móveis e imóveis dos requeridos, em quantidade suficiente para garantir o ressarcimento dos danos materiais, estipulados em R$ 7.270.445,73 (Sete Milhões, duzentos e setenta mil, quatrocentos e quarenta e cinco reais e setenta e três centavos).

No que diz respeito ao bloqueio dos valores dos requeridos existentes nas instituições financeiras, por ser uma medida excepcional, de cunho extremamente grave, defiro-a, porém, ressalvando o direito de os requeridos poderem movimentar livremente os valores oriundos de suas receitas mensais, a título de subsídios ou remuneração da atividade profissional, desde que devidamente comprovado, de forma prévia a este juízo.

Considerando os fundamentos desta decisão e, ainda, o fato de que o requerido Roberto França Auad já se deu por notificado, recebo em relação a ele a petição inicial nos termos do artigo 17, § 9º, da Lei nº 8.429/92, e determino seja efetuada a sua citação, devendo os demais requeridos serem formalmente notificados, nos termos do § 7º do art. 17 da Lei nº 8.429/92.

Diante do exposto: Defiro o seqüestro, tornando indisponíveis tantos bens móveis e imóveis dos requeridos, quanto sejam necessários, para garantir eventual ressarcimento dos danos materiais estipulados em R$ 7.270.445,73 (Sete milhões, duzentos e setenta mil, quatrocentos e quarenta e cinco reais e setenta e três centavos); fica ressalvado o direito de os requeridos poderem movimentar livremente os valores oriundos de suas receitas mensais, a título de subsídios, salários ou remuneração da atividade profissional, depositados em instituições financeiras, desde que devidamente comprovado o vínculo e o valor, de forma prévia a este juízo;

a)

b)

c) oficie-se conforme requerido nos itens 2,3 e 4 da fls. 16;

d) notifiquem-se os requeridos Paulo Ronan Ferraz Santos, Nilva Benedita Cândida e Benedito Cesarino Lara Fernandes, nos termos do § 7º do art. 17 da Lei nº 8.429/92, para que, em querendo, manifestem-se por escrito no prazo de 15 (quinze) dias;

f) Nos termos do § 3º do art. 17 da Lei nº 8.429/92, c/c o § 3º da Lei nº 4.717/65, notifique-se a União, para que manifeste o seu interesse em compor o pólo ativo desta ação; e

g) Notifiquem-se a Fundação de Saúde de Cuiabá e o Município de Cuiabá, para que no prazo máximo de 15 (quinze) dias, tragam aos autos, respectivamente, a cópia autêntica da Portaria nº 104/GAB/FUSC/99 e a cópia integral do processo administrativo da sindicância instaurada pelo ofício n. 310/97, da lavra do Prefeito Municipal de Cuiabá/MT.

Cite-se o requerido Roberto França Auad, para no prazo legal,em querendo, contestar a ação, sob pena de revelia.

Intimem-se.

Cuiabá/MT, 19 de abril de 2004.

PAULO CÉZAR ALVES SODRÉ

Juiz Federal Substituto da 2ª Vara/MT.

Nota de rodapé:

1)Terminologia utilizada na área contábil/fiscal, para denominar a prática de se emitir a 1ª via da nota fiscal com valor superior às demais vias. A primeira via é entregue ao cliente/consumidor, e as demais vias, com valor inferior, ficam com a empresa, servindo de base para a escrituração contábil e fiscal.

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