Questão de ótica

A verdadeira conspiração é contra o Ministério Público

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19 de abril de 2004, 14h32

Perdem-se nas brumas do tempo as origens do Ministério Público como instituição. Já se passaram, no entanto, mais de vinte séculos, desde que envergava a túnica dos procuradores de César no Império Romano, ou, pelo menos, seis séculos, desde que ostentava a capa dos advogados do Rei, dos tempos de Felipe, o Belo.

Num e noutro caso, tais agentes não passavam de “mordomos qualificados, incumbidos da defesa do patrimônio do príncipe, perante juízes afeiçoados”, como escreveu Roberto Lyra.

No transcorrer das eras, a instituição mudou de natureza, despiu-se daquelas túnicas e capas e vestiu a roupa do Paladino da Lei e do Defensor da Sociedade, feição que só adquiriu recentemente.

Em sua caminhada rumo à modernidade, o Ministério Público, como todas as instituições humanas, atingiu altos e baixos, e é difícil dizer se estes foram mais perniciosos do que aqueles, ou se aqueles foram mais salutares do que estes.

Mas uma coisa é certa: o Ministério Público só cresce e se engrandece nos regimes de plenitude democrática. Nas ditaduras, ele é o primeiro a ser aniquilado, quando não, graças à adesão dos covardes e para vergonha dos pósteros, cooptado para atuar como longa manus da repressão.

A Emenda Constitucional nº 17/82, de autoria do deputado e constitucionalista Zeno Veloso, antecipou, no Pará, em pelo menos meia década, já nos estertores da ditadura militar, a revolução que a Constituição Federal de 1988 operaria no desenho institucional do Ministério Público brasileiro, dispensando-o, definitivamente, da defesa do Estado (missão dos procuradores de César e dos advogados do Rei), para se dedicar, com exclusividade, à defesa da sociedade – perfil que não encontra paralelo na história do Brasil nem no direito comparado.

Nesse novo papel, o Ministério Público volta e meia colide com os interesses de muitos dos detentores do poder político e do poder econômico, porque, por mais dolorosa que a verdade seja, a sociedade está menos ameaçada pela criminalidade comum do que pela criminalidade sofisticada dos que tramam contra ela, encarapitados em postos privilegiados da administração pública ou do mercado, cujas linhas lindeiras vão ficando cada vez mais difusas e confusas, num conúbio incestuoso.

Inexoravelmente, os antigos defensores dos interesses privados do monarca viram-se, de uma hora para outra, na contingência de combater esses setores que se juntam para açambarcar o dinheiro público mediante ações e omissões multifacetadas, de cuja variedade nem sequer suspeita a vã filosofia das pessoas honestas e bem intencionadas.

Esta é a moderna vocação do Ministério Público, seu destino e seu futuro, consignados na Carta Magna que o finado Ulysses Guimarães batizou de “Cidadã”: guerrear contra os que acutilam o interesse público, seja porque deixam de prover as políticas públicas que o povo precisa, seja porque canalizam para bolsos indevidos os recursos que em favor do povo, unicamente do povo, deveriam ser corretamente aplicados.

Na bandeira do Ministério Público saído da Carta de 1988, bem poderiam ser gravados, como síntese do seu desiderato institucional, os versos incandescentes do paraense Cléo Bernardo, um socialista, mas, sobretudo, um apóstolo da Liberdade: “Levantem as mãos / bandidos não assumidos / e não toquem no dinheiro público.”

Se este é o destino do Ministério Público, o destino do Ministério Público é só este: travar essa luta desigual, de Davi contra Golias, porque a tribo dos gigantes é que detém o poder de mudar a Constituição e as leis, ao bel prazer, e, assim, eles podem, a qualquer hora, esburacar a funda do pequeno Davi, tornando-a inócua e inútil enquanto arma de combate.

O desmonte do perfil constitucional do Ministério Público já está em marcha há algum tempo, e nisso se empenham os poderosos, independentemente de coloração ideológica.

Aqueles que, ontem, aplaudiam a coragem e o denodo do Ministério Público no ataque à improbidade administrativa, são os mesmos que hoje, porque trocaram de posto, se arvoram e se alvoroçam, de montão com os antagonistas de anteontem, em desfigurar e amesquinhar a instituição concebida, gestada e parida pela “Constituição Cidadã”, minando a sua essencialidade, sem que, sobre isso, à sociedade seja dada a menor satisfação.

Mas ninguém se iluda. Na esteira da decomposição do arcabouço constitucional do Ministério Público, o Estado totalitário que, da esquerda ou da direita, tem o mesmo facies e o mesmo modus operandi, continuará a obra a que se propôs, tão previsível quanto deletéria: calar a imprensa, dobrar o Judiciário, manipular o Legislativo e acuar a sociedade.

O Ministério Público não conspira contra governo nenhum, arma-se contra o crime que, desgraçadamente, quer transformar gabinetes governamentais, ou sítios tão próximos a estes, nos diversos níveis federativos, em quartel-general.

Enxergar no Ministério Público delirantes movimentos “conspiratórios” contra este ou aquele governo, se não for manobra de fancaria ou de redobrada má-fé, será, com certeza, uma questão de “obtusidade córnea”, para usar a interessante expressão de Eça de Queiroz.

De fato, os olhos de antanho, que assim enxergaram, ou os olhos de hoje, que assim teimam em enxergar, estavam e estão fora de foco: a verdadeira “conspiração” não se ensaia nas entranhas do Ministério Público, pois vem de fora, com a maldisfarçada intenção de eviscerar a instituição que defende a sociedade, acreditando os arquitetos do apocalipse que não deixarão perante a História o rastro desse verdadeiro crime de responsabilidade – que é o nome que a qualquer “atentado ao livre exercício do Ministério Público” nos dá a Constituição que o (re)criou.

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