Vida nova

Juiz autoriza transexual a mudar de nome e trocar documentos

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19 de abril de 2004, 9h38

Um transexual ganhou na Justiça o direito de mudar seu nome e de contar com a expressão “sexo feminino” em sua documentação civil. A decisão é da 7ª Vara da Família e Sucessões do Fórum Central de São Paulo. Ainda cabe recurso.

O autor da ação recorreu à Justiça alegando que, apesar de ter se submetido à cirurgia para troca de sexo em hospital público, com sucesso, o fato de seus documentos ainda registrarem a identificação masculina era motivo de inúmeros transtornos, como o preconceito de que freqüentemente era vítima.

Consta do processo que o transexual vive maritalmente com um homem, relaciona-se sexualmente, tem todas as características e porta-se como uma mulher. Dessa forma, a troca da documentação apenas autenticaria uma situação que já existe de fato.

Em seu parecer, o Ministério Público requereu a extinção do pedido, sob a alegação de carência. O juiz Elcio Trujillo, contudo, acolheu os argumentos do transexual e deferiu o pedido para alterar seus documentos.

Na sentença, o juiz entendeu que, efetivada a cirurgia de troca de sexo em hospital público, reconhecida pelo Estado, não se pode, agora, negar o direito à alteração de seus registros civis.

E questinou: “Como o agente de defesa social – o Ministério Público – posto pelo Estado para zelar pela cidadania vem negar-se a reconhecer o que o próprio Estado realizou em prol do cidadão, ausente prejuízo para terceiros?”

Leia a sentença:

Vistos etc…

“Ainda que nós, como geração, não sejamos capazes de resolver determinadas contradições próprias da condição humana, isto não significa que possamos considerar os obstáculos como definitivos…” (in “Ser Livre”, Flávio Gikovate, 4ª edição, MG Editores Associados, São Paulo, 1984, pág. 15)

Diante razões constantes à fls. _, juntados documentos de fls. 5/10, P.C.O, qualificado, submetido a cirurgia de transgenitalização em hospital público, na condição de transexual, pediu alteração junto ao assento de nascimento, do seu nome, passando a chamar-se P.C.O, bem como do sexo, de masculino para feminino.

Em manifestação de fls. 21/41, o representante do Ministério Público requereu a extinção do feito diante manifesta carência. A condição resultou afastada, determinado, em r. despacho de fls. 43, vinda de novos documentos, ausente recurso pelo MP.

Em r. despacho saneador de fls. 53/54 determinada a realização de perícia médica junto ao IMESC bem como requisitadas cópias do prontuário médico do requerente junto ao Hospital das Clínicas da Universidade de São Paulo.

Laudo juntado à fls. 131/133.

Requerente com depoimento prestado à fls. 147/149.

Alegações finais, pelo requerente à fls. 151/155 e, pelo MP, à fls. 156.

Relatado,

DECIDO.

Julgo o feito no estado em que se encontra.

Dispensável, no caso, maior produção probatória.

Prontuário médico, em cópia, juntado aos autos.

Neste, todo o histórico do atendimento médico e do procedimento cirúrgico.

Resultado, pelos dados ali descritos, satisfatório.

Transformação ocorrida.

Apresentava o requerente o órgão masculino.

Com a intervenção cirúrgica, em trabalho técnico de realce, a mudança para o órgão sexual feminino.

Daí o pedido de alteração.

Comportamento e visual de mulher.

Atitudes e relacionamento com características do sexo feminino.

O laudo elaborado pelo IMESC – fls. 131/133 – apresenta regular radiografia do caso.

Genitália semelhante a vagina – fls. 132 – sendo a resolução cirúrgica de boa qualidade.

Vive o requerente maritalmente com homem e relaciona-se sexualmente como mulher – fls. 132, do laudo referido.

A fls. 147/148, em longo e detalhado depoimento, o requerente traduziu sua vida de problemas e desencontros bem como a realidade vivida.

Sustentou mesmo conteúdo posto em laudo não impugnado.

Apresenta-se, desde criança, como mulher.

Veste-se, desde tenra idade, como mulher.

Relaciona-se como mulher.

Tem companheiro homem. Mantém relacionamento sexual satisfatório a contar da cirurgia.

É, em realidade do comportamento, uma mulher.

Certamente com limitações em termos de procriação.

O mais, equipara-se ao sexo feminino.

Importa salientar que o requerente nasceu em parto de trigêmeos.

Um irmão, uma irmã.

E o requerente.

A aceitação da sua condição, desde criança, pela família.

Um quadro, repetindo, de dificuldades quanto a identificação.

A vida de uma mulher.

A documentação de um homem.

Os constrangimentos decorrentes.

A Constituição veda qualquer distinção ou mesmo tratamento preconceituoso.

Todos sob sua tutela e em busca do seu amparo.

Direitos e garantias individuais presentes.

Muito poderia ser posto em termos filosóficos.

Sobre a vida, sobre a história, sobre os povos.

Sobre o convívio, a aceitação e a participação.

Tenho, entretanto, dispensáveis tais questionamentos.

O processo trata de uma vida.

Sem espaço para os tratados em elaboração de teses.

Apenas a análise da realidade em face da legislação vigente.

O quadro guarda acaloradas disputas.

Também discórdias.

O que é homem? O que é mulher?

A presença da transexualidade.

Vigente ao longo da vida e dos tempos.

Os dramas sem retrato.

Os retratos sem figuras.

As imagens escondidas.

Mas presente a dor, o preconceito, o sofrimento.

O mundo muda. A vida se altera.

A esperança se faz presente.

A construção do Estado, pela Nação, em busca da melhoria da vida.

Do respeito integral as individualidades.

Da consideração pelas diferenças.

Do aperfeiçoamento das realidades.

Da solução para os conflitos.

O Judiciário como Poder do Estado revelando-se muito mais como da Nação.

A trazer solução para a existência e a relação entre as pessoas.

A busca da solução diante da lei.

Regras que se apresentam para melhorar a condição dos cidadãos.

E nesse limite, todos iguais.

Sem qualquer distinção.

Nesse comando, apurada a realidade vivida por P., como negar, em parcela de Poder, o atendimento.

Judiciário na análise.

O Estado juiz presente.

O Executivo, de longo tempo, assume a postura transformista.

Autoriza a mudança.

Nos autos, a prova.

Renomada e destacada Universidade – a de São Paulo – por seus pesquisadores e operadores, em hospital público – o das Clínicas, vinculado à Universidade – portanto, em nome do Estado, a realizar cirurgias corretivas, de adaptação e de transformação.

O histórico revelado pelo prontuário médico encartado.

A verba pública utilizada para minorar o sofrimento do cidadão.

O encontro, da Medicina, com a realidade vivida pelo ser humano.

A justa compreensão da técnica com a realidade.

Um Estado, portanto, que executa de acordo com os anseios do cidadão.

Condição de se anotar.

E de se questionar: como o mesmo Estado que pesquisa, investe e realiza no campo da transformação vem, ao depois, pelo seu seguimento de solução de conflitos, negar reconhecimento a situação de fato reconhecida?

Como o agente de defesa social – o Ministério Público – posto pelo Estado para zelar pela cidadania vem negar-se a reconhecer o que o próprio Estado realizou em prol do cidadão, ausente prejuízo para terceiros?

Apenas o interesse do Estado e o do cidadão.

Repetindo, sofrido, indefinido, no momento, documentalmente.

O Estado transforma P. em mulher.

Ao depois, se nega a dar-lhe o reconhecimento social quanto ao nome e ao sexo que, renovada a condição, autorizou.

Conflito evidente.

Mas, pela análise, aparente.

Etapas que avançam.

A primeira condição, o reconhecimento físico via cirurgia transformadora.

A segunda, a mudança documental.

A menor.

O direito surge relativo.

Revela a vontade, o consenso de uma época.

E o Estado-juiz cuida de declarar essa vontade.

Em plena realidade.

P. apresenta-se como mulher.

Revela-se como mulher.

O Estado declara a condição em cirurgia específica.

Com recursos e investimentos públicos.

Momento da confirmação.

De forma simples e sem altas divagações.

Como deve ser a vida.

A mudança a quem aproveita?

Ao próprio requerente.

Que a contar do acolhimento da pretensão deixará de sofrer constrangimento e discriminação.

Condições que a Constituição impõe em afastamento.

O poder legal da transformação.

Do Judiciário.

O físico pertence ao Executivo.

E aos seus grupos de atuação em pesquisa e cirurgia.

Que P. corrija seu nome e seu sexo.

Que seja P., segundo sua vontade.

E mulher conforme sua realidade.

POSTO ISSO e considerando o mais que dos autos consta, JULGO PROCEDENTE a inicial e, em conseqüência, acolhido o pedido constante de fls. 2/4, diante realidade física e médica decorrente de cirurgia realizada em hospital público e as expensas do Estado, DEFIRO as retificações pretendidas por P.C.O, qualificado, no tocante ao nome, passando a chamar-se P.C.O e no tocante ao sexo, passando a contar com o sexo feminino em lugar do sexo masculino, ratificadas as demais condições postas em registro e em assento junto ao Serviço de Registro Civil.

Com o trânsito em julgado, de se expedir mandado de averbação.

Custas “ex vi legis”.

P. R. e Intimem-se.

São Paulo, 11 de abril de 2004.

ELCIO TRUJILLO

Juiz de Direito

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