Caça às bruxas

Política de cobrança do governo pode acabar com microempresas

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18 de abril de 2004, 14h47

O Governo Federal, via Secretaria da Receita, está promovendo verdadeira caça às bruxas, ou melhor, às micro e pequenas empresas, desde o final de 2003, excluindo-as ex abrupto do Sistema Integrado de Pagamento de Impostos e Contribuições das Microempresas e Empresas de Pequeno Porte (SIMPLES), instituído pela Lei 9.317/96.

A bandeira desfraldada pelos zelosos agentes do fisco é o combate aos sonegadores, bandeira costurada pela premente necessidade de aumentar a arrecadação, dadas as dificuldades por que passa o País.

Infrangível o direito-dever de combate aos vis sonegadores. A questão, todavia, revela uma segunda bandeira, escondida sob aquela, mas também já surrada pelo uso contínuo ao longo dos tempos pelos sucessivos governos: a vampiresca ganância de quem não soube e não está sabendo lidar com problemas que pareciam, nos discursos eleitoreiros de outrora, serem de solução simples como, v.g., os juros que têm de ser pagos ao FMI, o caixa arrombado da previdência, etc.

E o problema ganha relevo pelas conseqüências que o ato de exclusão – inicialmente promovido pela SRF – acaba gerando para a excluída, frente aos demais órgãos governamentais. Citemos um caso concreto:

Recentemente, uma dessas empresas “caçadas” nos procurou com a seguinte situação: trata-se de uma firma modesta, localizada no município de Rebouças, interior do Paraná, que apesar de pequena tem conseguido manter-se ativa ao longo dos últimos quinze anos – desde 1989 –, não obstante todas as dificuldades impostas neste País açoitado por uma burocracia criadora de obstáculos e por uma carga tributária obscena.

Embora pequena, a firma atualmente emprega cerca de 80 funcionários, em razão do tipo de atividade que desenvolve no local (confecção de lâminas e compensados), empregados estes que se acham na iminência de serem despedidos (ou parte deles) em razão de repentino “débito” previdenciário que a exclusão do SIMPLES, promovida no final de 2003, gerou à empresa.

Em primeiro lugar, há que se reconhecer que uma empresa assim é exceção no Brasil, onde as estatísticas revelam que poucas empresas conseguem sobreviver além dos primeiros 5 (cinco) anos de existência. Todavia, foi ela surpreendida pela Receita Federal em novembro de 2003, que, não encontrando indícios de “sonegação” ou outras irregularidades, promoveu a sua exclusão do referido regime ao argumento de que uma sócia estaria em débito com a Procuradoria da Fazenda Nacional em 18.08.1998, o que criaria obstáculos à inclusão/permanência no SIMPLES.

A aberração é que essa “sócia” retirara-se da sociedade em 01.08.1997 (um ano antes) e a empresa teve apenas duas inscrições em Dívida Ativa com o INSS, que foram liquidadas integralmente em julho de 1991. Tudo demonstrado documentalmente, a empresa solicitou a revisão do ato junto à SRF.

Mas (e aí ressuma a “bandeira” escondida), eis que o INSS, à vista da exclusão promovida pela Receita Federal, autuou a empresa a fim de que esta recolhesse todas as contribuições previdenciárias “passadas” – desde 1999, quando vigorou o SIMPLES. Segundo o INSS, o fato de a empresa estar impugnando sua exclusão junto à Receita Federal, e por serem órgãos independentes e autônomos, não poderia afetá-lo (a ele, INSS).

Ou seja: o ato negativo, nefasto, da SRF (excluir a empresa do SIMPLES) vincula o INSS, impondo-lhe o dever de autuar a empresa; mas o ato de defesa da empresa não atrela a autarquia previdenciária, que invoca a “separatividade” para manter a punição sobre o empresário! É uma armadilha bem engendrada, como uma vítima que, enquanto defende-se de golpes desferidos na cabeça, toma outros no estômago por atacante diverso.

O valor do débito, em razão dos “atrasados” (que na verdade “desabrocharam” somente em fins de 2003!), acaba superando – com juros e multa – a R$ 600.000,00. Ocorre que nem mesmo vendendo a empresa e os bens da família (são apenas dois sócios) haverá o pagamento dessa dívida.

Poderiam dizer, os defensores do fisco, que a empresa poderá reparar ou desfazer eventual injustiça posteriormente, inclusive com o socorro do Judiciário. Mas, e os sabidos transtornos que isso causa? E a via crucis dos procedimentos judiciais? E o caráter pugnaz do fisco, que litiga ainda que “contra a maré” dos inúmeros julgados desfavoráveis às suas teses? Isso tudo porque a via administrativa já está fechada para a citada empresa, eis que para recorrer dessa decisão do INSS teria de depositar previamente os 30% da assombrosa dívida.

Preleva notar que, em casos semelhantes ao supracitado, verifica-se a ocorrência de uma “questão prejudicial” que deveria, em homenagem ao princípio da legalidade e da moralidade administrativas, ser considerada já na esfera extrajudicial, o que, infelizmente, não vem ocorrendo. Isto significa dizer, no exemplo citado, que enquanto não há um desfecho final no processo administrativo em trâmite na Receita Federal e correspondentes recursos aos Conselhos de Contribuintes, a empresa terá de amargar as autuações dos demais órgãos, como o INSS, eis que desconsiderada aquela prejudicialidade (contra o contribuinte), o que atenta até mesmo contra a mais elementar lógica e bom-senso, pois a empresa não tem outra defesa que não a própria ilicitude da exclusão!

A situação viola também o preceito constitucional segundo o qual “aos litigantes, em processo judicial ou administrativo, e aos acusados em geral são assegurados o contraditório e ampla defesa, com os meios e recursos a ela inerentes” (art. 5º, LV, da CF/88).

Ora, no caso in tela existe apenas um único “meio” de defesa possível frente àquele procedimento administrativo do INSS: questionar a exclusão do SIMPLES, porque fora justamente esta o motivo da autuação previdenciária. Mas o INSS gera uma situação inusitada: a) a empresa está sendo autuada apenas por ter sido excluída do SIMPLES, ou seja, não há outros fundamentos a estribarem a suposta obrigação previdenciária; b) por conseqüência, a única defesa cabível (se não houver erro de cálculo ou alguma nulidade formal) seria a demonstração da ilicitude daquela exclusão, embora decretada por órgão diverso, já que esse decreto é que motivou a atividade fiscalizatória do INSS; c) todavia, ao não aceitar esta defesa, está o ente previdenciário impedindo a concretização prática daquela garantia constitucional, ainda que por via transversa – mas que não deixa de ser no mínimo imoral.

Também o Código Tributário Nacional estatui que:

Art. 149. O lançamento é efetuado e revisto de ofício pela autoridade administrativa nos seguintes casos:

(…)

II – quando a declaração não seja prestada, por quem de direito, no prazo e na forma da legislação tributária;

III – quando a pessoa legalmente obrigada, embora tenha prestado declaração nos termos do inciso anterior, deixe de atender, no prazo e na forma da legislação tributária, a pedido de esclarecimento formulado pela autoridade administrativa, recuse-se a prestá-lo ou não o preste satisfatoriamente, a juízo daquela autoridade;

IV – quando se comprove falsidade, erro ou omissão quanto a qualquer elemento definido na legislação tributária como sendo de declaração obrigatória;

Ora, para que se patenteie concretamente a ocorrência de qualquer das hipóteses estampadas nos incisos II a IV, aptas a ensejarem a punição do fisco, é claro que a ilegalidade cometida torna-se certa e inquestionável (administrativamente) somente após decisão final administrativa; in casu, sobre o acerto ou não da exclusão de uma empresa do SIMPLES. Isto sem falarmos na possibilidade de discussão na esfera judicial.

Não é por outro motivo que o artigo 151, do mesmo CTN, também preceitua:

Art. 151. Suspendem a exigibilidade do crédito tributário:

(…)

III – as reclamações e os recursos, nos termos das leis reguladoras do processo tributário administrativo;

Portanto, o argumento do INSS, com personalidade jurídica distinta e sujeito também a outros dispositivos legais, sustentando a tese de que não estaria adstrito àquelas discussões encetadas frente a órgão diverso (SRF), é absolutamente frangível, para não dizer “ingênuo”, eis que viola a própria Lex Mater e atropela os mais comezinhos princípios vigorantes em nosso ordenamento jurídico, como acima exposto. Até mesmo por uma questão de moralidade haveria a autarquia previdenciária, nestes casos que ocorrerão rotineiramente daqui em diante, de ao menos suspender as medidas punitivas, como inclusão no CADIN e outras, até que se aguardasse aquela decisão final da Receita Federal ou dos subseqüentes órgãos recursais, quanto à manutenção ou não do ato de exclusão do SIMPLES. Senão, como reparar in totum os danos causados pelo INSS se a empresa consegue, muito tempo depois, reformar o ato de exclusão perpetrado pela SRF?

Outra questão pertinente é de índole política. Curiosamente, foi-nos prometida a geração de 10 milhões de empregos (ou fomos levados a crer nisso, tanto faz). Também nos prometeram um tal “espetáculo do crescimento”. Mas, aberta a temporada de caça às micro e pequenas empresas, vislumbramos a futura bancarrota das mesmas, que obviamente não conseguirão pagar os débitos fiscais advindos da súbita exclusão do SIMPLES. Vislumbramos também a avalanche de desempregados com tais medidas.

À moda do legislador ateniense Dracom, que no século VII A.C. elaborou seu código marcado pela severidade (“dacroniano”), a truculenta postura do fisco não aumentará a arrecadação, mas apenas a revolta das vítimas e o grau de informalidade em nosso País, informalidade esta já tão acentuada. Afinal, tais medidas ameaçam levar à quebra essas pequenas empresas, que um dia acreditaram (erroneamente?) no novo sistema de pagamento de impostos e agora são premiadas com desmedida truculência.

A propósito, apenas para constar: o Governo Federal arrecadará, até março de 2004, R$ 2,6 bilhões a mais do que o esperado, num total arrecadado de R$ 75,746 bilhões. Desse total, R$ 1,00 bilhão deve-se apenas à nova incidência da COFINS, que passou a vigorar somente em fevereiro e teve seu primeiro impacto na arrecadação de março (cf. Jornal Valor Econômico, 15.04.2004). Seria necessário também esse ataque aos micro e pequenos empresários para aumentarmos o nível do caixa?

Em suma, seja por uma questão de legalidade e moralidade administrativas, seja por questão de boa política social, o Governo Federal precisa rever urgentemente essa nova empreitada de truculência contra os pequenos empresários desse País, justamente os que mais empregam. Afinal, ao invés de estarmos assistindo ao espetáculo do crescimento, estamos presenciando o “crescimento do espetáculo” (parece a mesma coisa, mas não é…).

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