Parece, mas não é.

A questão da justiça gratuita não é tão simples como parece

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17 de abril de 2004, 12h43

O acesso à Justiça é uma necessidade imperiosa que se coloca como interesse do Estado mas, a verdade é que são muitas as portas de entrada neste território e em cada uma delas há um guardião diferente. Encontramos aqueles que percebem a necessidade de, acima de tudo, buscar uma decisão de mérito.

No entanto, nos defrontamos, também, a toda a hora, com aqueles que se perdem numa floresta onde a Justiça se transforma em intransponível cipoal de artigos, parágrafos e alíneas que constroem uma espécie de jurisprudência do azedume, enredando o jurisdicionado nesta rede. Perde-se de vista que o Judiciário existe para atender ao povo e não a ele próprio e, nesta cadência, toda a forma de manifestação de poder em que os detalhes minúsculos se impõem como forças poderosas, mostra-se como altamente sedutora para esta visão de mundo distorcida.

A questão da concessão do benefício da justiça gratuita é um microcosmo que evidencia o poderio magnético desta distorção perversa. É salutar registrar, contudo, que existe os que palmilham o caminho oposto desenhando uma vertente jurisprudencial de que assume a atitude de facilitadora da decisão de mérito e bem anuncia o caminho correto neste tema:

“Justiça gratuita. condição de pobreza. Simples requerimento. A ruptura com o modelo vigente no período de exceção, que mesclava autoritarismo, supressão de direitos individuais, e assistencialismo sindical que confinava o acesso gratuito ao Judiciário Trabalhista (art. 14, Lei 5.584/70), se deu com a Carta Magna de 88. A chamada “Constituição Cidadã” adotou o novo paradigma da democracia social, com amplo acesso dos trabalhadores ao Judiciário, sem restrições de ordem econômica (art. 5º, XXXIV, a, e LV, CF). A recusa aos necessitados, dos benefícios da Assistência Judiciária Gratuita e a negativa da prestação jurisdicional integral navegam em sentido oposto ao Constitucionalismo Social e ao perfil histórico desta Justiça Especializada. O fato de a lei considerar a concessão como uma faculdade não afasta o dever do magistrado de deferir a Justiça Gratuita sempre que requerida oportunamente e preenchidas minimamente as condições prescritas em lei. A negativa, por vezes voluntariosa e injustificada, acaba por transformar a prerrogativa em capricho, e assim, em fonte de intolerável arbítrio, em detrimento da cidadania e dos preceitos constitucionais que asseguram o direito ao “due process of law”. “In casu”, a reclamante requereu o benefício afirmando condição de pobreza sob as penas da lei. É o quanto basta para a concessão dos benefícios da Assistência Judiciária Gratuita. (TRT/SP – 07120200390202004 – RO – Ac. 3ªT 20030697691 – Rel. Riicardo Artur Costa e Trigueiros – DOE 13/01/2004).

Palavras que, talvez, sejam duras mas, bem reveladoras da extrema resistência da Justiça do Trabalho às ampliações que o legislador foi introduzindo nesta temática ao longo dos anos passados. Vejamos, pois, que a nossa história começa com a lei 5584/70 em cujo artigo 14, se concedia a assistência judiciária, inclusive com a justiça gratuita, para os casos do empregado que percebesse ganho inferior do dobro do salário mínimo ou apresentasse atestado de miserabilidade jurídica “fornecido pela autoridade local do Ministério do Trabalho e Previdência Social”.

Com relação à primeira hipótese, a mesma vem se mantendo desde então, com um pequeno hiato em que perdurou a Lei 10288 de 20 de setembro de 2001, até o advento da Lei 10.537 de 27 de agosto de 2002. Neste interstício, a concessão do beneficio da justiça gratuita ficou automática para quem percebesse salário menor do que cinco salários mínimos. Como a lei processual surpreende os processos no estado em que se encontram, entendemos que a norma se aplica a todos que litigavam com processo em pé dentro de tal período. Com efeito, no curso da demanda, foi revogado o limite até dois salários mínimos e ampliado para até cinco salários mínimos, sendo que tal norma incidiu de imediato nos feitos pendentes em qualquer instância. Assim, o limite de dois salários mínimos é aplicável somente aos processos instaurados após 27 de agosto de 2002.

Este aspecto do problema, contudo, não apresenta grandes polêmicas, até porque não tem desfrutado de muita visibilidade. Neste ponto, aliás, a única especificidade digna de nota, já que, no mais, o mecanismo tem um caráter induvidosamente automático. A tempestade se dá na outra ponta da norma, quando se cuida das pessoas que percebiam salário maior do que o fixado em tais limites.

Retornando ao problema, vemos que a lei 5584/70 exigia atestado fornecido pelo Ministério do Trabalho, ou na sua falta, pela delegacia de polícia. Tal norma, contudo, veio a ser suprimida com o advento da Lei 7.115, de 29.08.1983. A partir daí, foi extinto o atestado mencionado em função da simplificação havida nesta área e, então, muito celebrada como “Reforma Hélio Beltrão”, eliminando os atestados de “vida, residência, pobreza, dependência econômica, homonímia ou bons antecedentes”. A prova de tais situações jurídicas passou a ser feita mediante declaração firmada pelo próprio interessado ou “procurador bastante”.


No entanto, quanto ao problema dos benefícios da justiça gratuita, esta norma vigorou por pouco tempo, vindo a ser promulgada a Lei 7510 de 4 de julho de 1986 que veio a dar nova redação ao disposto no art. 4o. da Lei 1060/50, dispondo que “a parte gozará dos benefícios da assistência judiciária, mediante simples afirmação na própria petição inicial, de que não está em condições de pagar as custas do processo e os honorários de advogado, sem prejuízo próprio ou de sua família”.

A resistência trabalhista a esta norma foi extrema. Em alguns casos, sem indicar vício de inconstitucionalidade, revelando, apenas, desafeição ao que foi disposto na lei: “isenção das custas. Declaração firmada por advogado. Apesar de haver procuração para requerer declaração de pobreza, isso não pode ser feito pelo advogado, pois a responsabilidade penal pela falsa declaração é da parte e não do causídico. Logo, não pode ser aplicado o artigo 1º da Lei nº 7.115” (TRT/SP – 00209200233102005 – AI – Ac. 3ªT 20030137939 – Rel. Sérgio Pinto Martins – DOE 01/04/2003).

Veja-se que, muito embora a lei fosse expressa em prever o “procurador bastante”, tal julgado considera que o dispositivo legal “não pode ser aplicado”. Na mesma linha: “para o deferimento da justiça gratuita, conforme o artigo 789, parágrafo 9º, da CLT, deve o reclamante apresentar a declaração de pobreza, na forma da Lei 7.115, de 29.08.1983, ou seja, firmada de próprio punho, ou, por procurador que tenha poderes específicos para fazer a referida declaração, cuja falsidade importa em conseqüências na esfera do Direito Penal. A mera apresentação de CTPS para comprovar desemprego não dá sustentáculo jurídico ao pedido”. (TRT/SP – 55268200290202004 – AI – Ac. 5ªT 20030117008 – Rel. Fernando Antonio Sampaio da Silva – DOE 04/04/2003).

Como se vê, estes julgados, apesar da norma falar em “procurador bastante” não aceitavam a prática do ato por advogado, nem sequer exibindo procuração com poderes especiais para tal finalidade. Foi preciso que o Tribunal Superior do Trabalho, através de sua SBDI 1 viesse a consolidar entendimento sobre o assunto, de modo a afastar estes fantasmas: “a declaração de insuficiência econômica firmada por advogado em nome e favor de seu cliente, munido apenas de procuração com poderes para o foro em geral, revela-se apta para assegurar o direito aos benefícios da justiça gratuita (arts. 2º, 3º e 4º da Lei nº 1.060/50 e 1º da Lei nº 7.115/83; Código de Processo Civil, art. 38)” (PROC. TST ERR NUM: 570486 ANO: 1999 REGIÃO: 02, Relator Designado Ministro João Oreste Dalazen, publicado in D.J.U. 15/12/2003).

Neste julgado paradigma, incumbe destacar os seguintes pontos principais:

a) “a expressão ” procurador bastante “, prevista no aludido art. 1º da Lei nº 7.115/83, indica o advogado que atua em juízo munido de procuração com poderes para o foro em geral. Desnecessária, pois, a exigência de poderes especiais para firmar tal declaração. Tal interpretação estaria eivada de excessivo rigor, ultrapassando as exigências contidas no § 2º do art. 5º da Lei 8.906/94 (Estatuto da Advocacia) e no art. 38 do CPC..”;

b) “anteriormente à Lei nº 7.510/86, o reconhecimento do estado de miserabilidade da parte estava condicionado à comprovação acaso percebesse quantia superior à aludida. No entanto, a nova redação do art. 4º da Lei nº 1.060/50 assim reza: “Art. 4º A parte gozará dos benefícios da assistência judiciária, mediante simples afirmação na própria petição inicial, de que não está em condições de pagar as custas do processo e os honorários de advogado, sem prejuízo próprio ou de sua família”.

Veja-se que tal julgamento realizou-se já na vigência da nova Lei (em 29 de outubro de 2003), evidenciando que não existe incompatibilidade entre o disposto no artigo 4º da Lei 1060 (com a redação dada pela Lei 7510/83) e o disposto no artigo 790, par. 3º (com a redação dada pela Lei 10.537/2002).

A jurisprudência já tem se manifestado sobre tal incompatibilidade: “Mandado de Segurança – benefício de justiça gratuita: “O trabalhador fica isento do recolhimento de custas processuais, quando o pleito de concessão dos benefícios de assistência judiciária gratuita respeita as disposições legais atinentes (Leis n.ºs 1060/50 – com a redação dada pela Lei n.º 7510/86 – e 7115/83), sendo certo que o parágrafo 3.º, do art. 790, da CLT, com a redação que lhe outorgou a Lei n.º 10537/2002, possibilita ao Julgador a concessão, de ofício, do benefício, em qualquer fase processual. O benefício da gratuidade na Justiça do Trabalho não se limita aos termos da Lei n.º 5584/70”. Segurança concedida” (Proc. TRT/SP 10683-2003-000-02-00-3, TRT 2a Região – SDI, Relator Juíza Dora Vaz Treviño).


A verdade é que o tal dispositivo trazido com a lei nova, restringe-se a expandir o momento oportuno para a formulação do pedido de isenção de custas que passa a ser admissível em qualquer fase do processo. Por outro lado, a vantagem é de ser concedida “àqueles que …declararem, sob as penas da lei, que não estão em condições de pagar as custas do processo sem prejuízo do sustento próprio ou de sua família”. Não por acaso, não se vê por aqui, a ressurreição da expressão “firmada pelo próprio interessado” constante da Lei 7115/83.

A jurisprudência recalcitrante em relação a tal entendimento é completamente despropositada, como se pode ver, por exemplo, da seguinte ementa: “a Lei 10.537, de 27/08/02. que dentre outras alterações introduziu o § 3º ao artigo 790 na CLT, veio pacificar o entendimento de que o benefício da Justiça Gratuita pode ser feito em qualquer fase processual, desde que o requerimento venha acompanhado da declaração de miserabilidade feita de próprio punho pelo beneficiário e sob as penas da lei, como previsto na Lei 7.115/83. A prova da miserabilidade jurídica, portanto, não é válida se feita por simples afirmação em petição como previsto na Lei 1.060/50, diante da existência de diplomas legais específicos a regularem a matéria no âmbito desta Justiça Especializada” (TRT/SP – 51818200290202006 – AI – Ac. 4ªT 20030254331 – Rel. Paulo Augusto Câmara – DOE 06/06/2003).

Este condicionante (“desde que”) é completamente desfundamentado porque o “como previsto na Lei 7115/83” despreza o fato de que, neste tema, ela foi derrogada pela Lei 7510/86 e a nossa ordem jurídica inadmite a repristinação. De outro lado, não existem outros “diplomas legais específicos a regularem a matéria no âmbito desta justiça especializada”, a não ser a própria Lei 10.537/2002. E esta, não repete o disposto na lei 7115/83, quanto ao “firmado pelo próprio interessado ou procurador bastante”.

Em resumo, malgrado todo o emaranhado de confusão gerado pela incompreensão desta sucessão de normas legais sobre o tema, podemos estabelecer as seguintes conclusões:

a) não é exigível qualquer atestado do tipo mencionado na Lei 5584/70 desde o advento da lei 7115/83 que extinguiu tal documento;

b) a exigência de declaração firmada pelo próprio interessado introduzida pela Lei 7115/83 foi extinta com o advento da Lei 7510/85 que passou a dar como suficiente a simples alegação na petição inicial;

c) para tal declaração será bastante que o patrono do obreiro disponha dos poderes gerais para o foro, não sendo exigíveis poderes especiais;

d) a Lei 10.537/83, trouxe como dado novo a possibilidade da justiça gratuita ser concedida em qualquer instância diante de mera declaração de impossibilidade de arcar com os custos do processo formulada pelo obreiro ou por seu patrono, sob as penas da lei;

e) a concessão da justiça gratuita é automática para os que percebam salário inferior ao equivalente a dois salários mínimos;

f) em todos os processos existentes anteriormente a 27 de agosto de 2002, quando entrou em vigor a Lei 10.537, a justiça gratuita deve ser concedida automaticamente para os obreiros que percebiam salário até o valor equivalente a cinco salários mínimos.

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