Próximo da perfeição

Civilização constituída por índios é a mais próxima da perfeição

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16 de abril de 2004, 14h42

Dia desses, entrei no museu do índio no Forte de Bertioga. Embora bom o tempo, não vi outros visitantes ali. Nos primeiros degraus da escada que leva ao alto do forte, estava sentada uma índia guarani. Segurava um cachimbo. Estava imóvel. Parei para observá-la. Pensei cuidar-se de uma das estátuas integrantes do ambiente. Era real, contudo. Cumprimentou-me, perguntando se atrapalhava minha passagem.

Sua fisionomia, mais do que os cabelos, ainda não totalmente brancos, denunciava bem avançada idade. Sua roupa simples e discreta constituía-se de uma camisa fina e clara e uma saia estampada com ícones de sua tribo. Longa, só não escondia os pés descalços. No pescoço, tinha um enfeite de penas, dentes e contas, um mboyira. Disse que o colar não era seu. Era de seu filho. Guardava-o pra matar a saudade.

Incomodada, talvez, com minha demora à sua frente, encarou-me por alguns segundos para, em seguida, afirmar que poderia responder a todas as minhas perguntas.

Sei que veio para encontrar algumas respostas, porque é raro alguém voltar aqui, como você, em tão curto espaço de tempo.

De fato, dias antes visitara o museu, mas não a tinha visto naquela ocasião. É certo, de qualquer modo, que tinha muitas perguntas a fazer.

Tirou duas ou três folhas secas de um saco de pano amarrado à cintura. Cuspiu nelas, amarfanhando-as durante algum tempo entre as mãos. Antes que lhe indagasse a respeito, explicou-me tratar-se de caapi. Pôs o fumo umedecido no fornilho daquele pito, feito de argila queimada e canudo de bambu e, então, mandou que eu desse umas tragadas. Perguntei se não devia acender primeiro. Disse-me que já estava aceso. Não a vi, entretanto, com fósforo ou isqueiro.

O que importa é que, ao colocar o canudo na boca e aspirar, vi que começou a enfumaçar. Dei algumas tragadas e gostei. Parecia tornar mais profunda a respiração. Ao constatar que sentia uma leve vertigem, tirou-me o cachimbo da mão e pediu que entrasse e continuasse a visita ao museu. Segundo ela, as respostas viriam naturalmente, mas se prontificava a dissipar eventual dúvida. Ficaria ali aguardando o meu retorno.

Ao transpor a primeira porta, foi como se tivesse sendo conduzido por um túnel do tempo e vi que já não estava no museu, mas andando apressado em alvíssima areia. Estava, na verdade, no meio de uma confusão. Alguns homens medievais armados com espadins e trabucos a recolher os mortos. Comecei a ajudar um padre que tentava salvar das ruínas de uma maloca em chamas alguns objetos de arte sacra e de uso pessoal. Não consegui identificar sua ordem religiosa. Usava camisola enquanto sua batina secava pendurada num dos galhos mais baixos de uma ibirapitanga.

Dirigindo-se a mim, reclamou que já estava cansado de ver aqueles ataques dos tamoios. Corria atordoado com uma pequena arca que afirmava conter muitos rolos de cartas, tudo pronto para o embarque na expedição que partiria aquela noite com destino a Portugal. Abriu o baú ao que parecia para conferir se estava tudo em ordem. Vi ali um pano com a inscrição Janeiro de 1552, São Vicente… e outras coisas ilegíveis.

O padre só se acalmou depois de certificar-se de que nada mais havia a fazer para evitar os danos do incêndio. Disse que os tamoios atacavam aleatoriamente, mas não falhavam em investir contra o povoado nas horas que antecediam uma expedição rumo à Europa. Pareciam saber o momento da maior eficácia das batalhas.

O fato é que, gostando da companhia do missionário, resolvi segui-lo pari passu enquanto não fosse eventualmente advertido.

Passou ele a caminhar em direção à uma longa canoa, fora d’água, distante uns cem metros, onde se encontravam dois índios com mãos e pés amarrados com icipó. Um deles parecia ter idade para ser o pai do outro, ainda bem jovem e que, por uma estranha coincidência, trazia no pescoço um colar idêntico ao exibido há pouco pela índia lá fora. Prisioneiros do assalto, não pareciam satisfeitos, nem assustados.

Sentou-se na borda da canoa e ditou num idioma que parecia a mistura do latim, português e espanhol e, às vezes, tupi-guarani: — Aonde é que vocês pensam que podem chegar com esses assaltos? Não vêem que os brancos estão armados com canhões, dispõem de cavalos, espadas e lanças de ferro e até alguns arcabuzes? Não fizeram ainda a conta do prejuízo que isso causa a todos? Vejam quantos mortos de parte a parte.

De fato, contei ali naquela praia, tingindo a areia com a marca da dura batalha, nove índios e quatro brancos mortos.

Os índios nada respondiam, até ouvirem do padre o que lhes pareceu mais injusto.

Chego a dar certa razão à Coroa Portuguesa quando se recusa a negociar com esses canibais. Primeiro, porque nunca se sabe onde estão os chefes, que mandam tropas de ignorantes a enfrentar luta desigual sem nenhuma finalidade justa. Depois, porque é uma terra sem lei e sem ordem, onde não se trabalha e nada se produz. E, ademais, como se pode respeitar um povo pagão, que tem o sol, a lua e os invisíveis monstros da floresta como divindades? Não se pode levar a sério homens animalescos que nem sequer sabem ler e escrever.

Depois do longo sermão, o índio mais velho não se conteve, respondendo que nada do que ouvira era verdade.

Suas injustas afirmações decorrem da arrogância da sua civilização, que acredita ser superior à que pertenço. Aliás, ao denominar essas terras de “novo mundo” já se vê que seu povo ignora, desconsidera ou subestima as antigas civilizações de que somos herdeiros.

De início, se não temos religião, que é próprio de quem tem simples fé ou frágil crença no criador, é porque não apenas acreditamos em Deus. Temos a certeza de sua existência e nos comunicamos efetivamente com todas as divindades.

Também não é verdade que os chefes aborígines sejam covardes. Eu sou Itamanhá, tabajara da aldeia de Boiçucanga, e estava nessa luta em companhia de meus filhos. Assim procedi como todos os chefes indígenas. Ninguém, entre nós, foge da luta e as batalhas não são decretada pelos morubixabas isoladamente, mas pela confederação dos tamoios, com a participação de todas as comunidades atingidas pela invasão portuguesa na região.

Aliás, meu povo sempre se contentou com as terras que tem, jamais atravessando as águas para invadir chão alheio. E o que chamou agora de assalto foi, na realidade, um contra-ataque para libertar escravos.

De outra parte, ninguém nessa terra é antropófago. Não se sabe porque inventaram essa mentira. De qualquer forma, nenhum nativo descarta a luta com o mesmo grau da crueldade dos agressores.

Aqui, ao contrário do que dizem, há lei e a respeitamos sem que ela tenha que ser escrita. E, a bem da verdade, muitos, entre os brancos, confessam-se admiradores dos preceitos morais que adotamos.

Antes não havia lutas nestas praias. Os brancos, qualquer que fosse o seu idioma, eram recebidos amavelmente, sempre que aqui vinham negociar. Traziam e levavam riquezas. Capitães franceses e muitos corsários de origem desconhecida sempre nos consideraram os verdadeiros donos da terra e ainda nos respeitam e conosco transacionam. Muitos brancos até passaram a integrar as famílias indígenas. Em várias aldeias há incontáveis mestiços, numa prova da índole pacífica do povo da terra.

Nos últimos vinte anos, entretanto, passaram os brancos, especialmente portugueses e espanhóis, a não se contentarem com a ocupação de territórios locais, partindo para a tentativa de escravização dos seus legítimos detentores. E se há um bem que integra a honra indígena é a liberdade, que sempre tememos perder mais do que a morte. Quando tentam nos fazer escravos, lutamos até morrer. Entre nós, com efeito, se há luta, há morte, pois não fazemos do vencido na guerra um escravo. Se é desonroso para nós, não será diferente para ele.

Além disso, escravidão é sinônimo de trabalho forçado e, para o índio, o trabalho não é um castigo. É um dom e, assim, só trabalha quem está disposto a fazê-lo, até porque, repita-se, a primeira lei aqui é a liberdade de todos os seres. Parece, aliás, que não estamos equivocados nessa política, pois todos acabam cumprindo suas atribuições voluntariamente, tanto que até agora nunca faltou abrigo e alimento ao povo tamoio.

Note, ainda, que ninguém encontrará uma prisão sequer construída em nossos territórios. Não há prisão aqui nem para os poucos inimigos e, se algum integrante da tribo comete um crime, não o prendemos. Exigimos que abandone a aldeia. Essa é a pena, mesmo assim raramente aplicada. Aliás, nem mesmo engaiolamos animais.

Outro equívoco do seu povo é supor que sejamos inferiores por não sabermos ler e escrever.

Sabemos ler todas as informações que já estão escritas e simbolizadas pela natureza e, respeitando-a e preservando-a como uma verdadeira divindade, não queremos acrescentar nossas imagens às divinas imagens produzidas pela própria natureza. É essa leitura, aliás, que nos dá todos os segredos medicinais necessários à manutenção de nossa higidez física e espiritual.

Além do mais, não precisamos registrar a história de nossos ancestrais, pois que com eles mantemos freqüentes contatos na dimensão da espiritualidade. Acredite se quiser.

Defendemos a nossa cultura e nos comunicamos com outros povos por meio da voz e de elementos artísticos, como a dança, a música, os sons dos instrumentos musicais e de comunicação à distância, o artesanato, tudo contando com uma simbologia similar à sua escrita. E ainda com incontestável vantagem, porque nossa linguagem, não sendo exclusivamente verbal, admite a compreensão também dos gestos dos animais.

Não é verdade, ainda, que aqui nada se produz. Produzimos só o necessário para a nossa subsistência. Ninguém aqui precisa de ostentações. Temos a convicção de que a vida quanto mais simples menos agride a natureza e agrada mais os espíritos que a protegem.

Agradecemos a todas as divindades que conhecemos, pela vida e pela liberdade, dádivas que bastam para a conservação de nossa permanente alegria.

A verdadeira ciência é o conhecimento da natureza e o que nos interessa e preocupa é a preservação da terra, do ar, da água e da floresta, que sempre nos asseguraram e hão de nos assegurar uma sobrevida liberta.

Não produzimos armas. Fabricamos utensílios necessários aos afazeres domésticos, à lavoura, à pesca e à caça. Lutamos contra os animais ferozes e os demônios da floresta, sempre e sempre pela vida e pela liberdade. Só por isso nos chamamos guerreiros. Abominamos a guerra entre seres humanos, a menos que seja contra a escravidão.

Venha para o nosso convívio, livre de preconceitos, e lhe garanto que gostará.

Embora tendo aprendido muito pouco do idioma guarani, consegui traduzir mais do que imaginava antes ser possível.

Depois de ficar bom tempo em absoluto silêncio, como que para disfarçar o constrangimento, pediu-lhes o padre que se deitassem no fundo da ygara. Se os guardas os esquecessem um pouco mais, poderia mandar alguém para ajudá-los na fuga.

Estava certo de que as informações que fui buscar no museu vieram muito mais ricas do que as que poderia alcançar com todas as pesquisas convencionais. E, com orgulho, tive a certeza de que, se já houve no planeta uma civilização bem próxima da perfeição, foi a constituída pelos índios brasileiros.

Estava àquela altura passando pela última câmara do museu e, como da primeira vez, aborreci-me com a simulação de uma oca com um casal de índios canibais, dormindo ao lado de uma churrasqueira assando pedaços de corpo humano, cena bem mais cruel do que as que acabara de ver ao vivo na sobrenatural dimensão do inconsciente.

Ansioso para agradecer à sábia amiga, voltei ao local em que a vi, na escada. Não a encontrando, subi na plataforma superior do Forte, de onde então pude vê-la numa catraia, com outras pessoas, a uma certa distância, a me acenar, a caminho da ilha em frente. Parecia querer apontar para algum lugar do meu lado. Notei, então, que na muralha, ao lado de um canhão, estava o pequeno alforje que ela tinha antes amarrado na cintura. Nele encontrei o cachimbo e o colar. Das misteriosas folhas, senti apenas um suave perfume.

* Artigo publicado no site Ministério Público Democrático — www.mpd.org.br

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