Consultor Jurídico

Confusão de termos prejudica direito de autores no país

16 de abril de 2004, 19h18

Por João Henrique Fragoso

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Quando Spinoza pontificou que “a maioria dos erros consiste apenas em que não aplicamos corretamente o nome às coisas” estava apenas seguindo uma tradição iniciada pela filosofia grega, voltada para o conhecimento da natureza mesma das coisas.

Pois, a aplicação errônea dos nomes às coisas a que se prestariam a designar, fatalmente leva a conclusões igualmente errôneas e, mais ainda, pode levar a que se construa todo um arcabouço de idéias, que acaba se revelando falso, posto que assentado em algo erroneamente designado.

Considerando-se que as coisas são identificáveis pelos nomes que se convencionou designá-las, nada mais lógico do que utilizarmos os nomes certos para as coisas certas e, só então, ao escolher o objeto consoante sua designação correta, podemos dele fazer livre uso: podemos estudar, descrever, comentar, citar, apontar, criticar, enfim, sobre ele traçar o que bem convier às nossas intenções intelectuais.

No âmbito do Direito, aquela assertiva ajusta-se à perfeição, como um elemento da teoria do conhecimento aplicado à filosofia e à ciência do Direito, e que há séculos tem sido aceita e observada por juristas do mais alto calibre. No entanto, parece que regras básicas, como a formulada por SPINOZA, têm sido cada vez mais ignoradas, levando a equívocos de toda sorte.

No campo do Direito Autoral, de nosso interesse – talvez pela excessiva velocidade das informações, o que leva à sua má assimilação – tem sido muito comum a aplicação de certos termos que não condizem com o objeto visado.

Exemplos recorrentes são as palavras royalties e copyright, aquela para designar a contraprestação pecuniária pelas utilizações autorais, esta para designar os próprios direitos dos autores – e, em alguns casos absurdos, englobando os direitos patrimoniais e os direitos morais de autor.

A palavra royalty, literalmente realeza, tem o sentido original de prerrogativa ou privilégio real, ou seja, a concessão, pelo monarca, de um direito de cópia (copyright) de uma determinada obra literária, pelo qual pagava-se uma determinada importância que, ao fim e ao cabo passou a se designar como royalty.

Ou seja, a coisa em si, o privilégio real, com o tempo passou a designar, também, o pagamento que lhe correspondia. Esse pagamento, ou royalty, aparentemente teve início na Inglaterra, com as concessões reais propiciadas pelo Licensing Act, de 1662, pelo qual garantia-se à chamada Stationer`s Company o monopólio da reprodução e do comércio de livros mediante o pagamento de royalties ao monarca.

A palavra, quando aplicada aos sistemas legais daqueles países onde vigora o sistema de copyright é correto. A questão é a sua aplicação para designar a remuneração pelas utilizações das obras nos países onde vige a tradição do Droit d´Auteur especialmente no Brasil – diferenciação que se verá mais à frente.

Por enquanto, deve-se dizer que a palavra royalties em nosso país, e tal como acolhida pela nossa legislação, aplica-se exclusivamente à remuneração pelo uso de patentes, uso de marca de indústria e comércio, assistência técnica e científica, aí incluída a transferência de tecnologia etc. e nunca para a utilização de obras protegidas pelo Direito Autoral.

A palavra royalties está claramente vazada em inglês, em diversos artigos da Lei nº 4.131/62, com as alterações posteriores (“Lei de Remessa de Lucros”). A lei autoral (Lei nº 9.610/98) – que não tem, ou não deveria ter! expressões inúteis ou tautológicas – ao prever o pagamento pela utilização de criações intelectuais sob a proteção do Direito Autoral, a ele refere-se como “retribuição”.

A Lei nº 9.430/96, que trata do Imposto de Renda das pessoas Jurídicas, em seu artigo 72, sob o título “Remuneração de Direitos”, prevê o pagamento pela aquisição, ou pela remuneração (sic) de direitos e a remessa do numerário correspondente para o exterior. Entre os direitos expressamente estabelecidos naquele artigo encontram-se previstos os de transmissão por televisão, rádio ou outros meios, de filmes ou eventos quaisquer.

A questão que de imediato se impõe neste caso, é que o tratamento dado aos royalties pela legislação tributária, como pagamento pelo uso de patentes, uso de marca de indústria e comércio, assistência técnica e científica etc. difere substancialmente do tratamento dado à remuneração por direitos sobre obras ou produções protegidas pelo Direito Autoral.

Sob o ponto de vista tributário é importante salientar que a dedução do imposto de renda a pagar, pela remessa de royalties para beneficiário situado no Exterior está limitada a 5% da receita bruta auferida pelo produto fabricado ou vendido – o que não ocorre com a remessa de remuneração a título de direitos autorais ou outros direitos, como o de arena nos caso de eventos esportivos.

Sob o ponto de vista do bom nome do Direito Autoral como é estruturado no Brasil e na maioria dos países, entendemos que deva ser eliminado de vez o termo do nosso vocabulário jurídico autoral, não só pelas confusões a que se presta na área tributária, mas também porque é designativo da remuneração do copyright em um sistema estranho à nossa tradição jurídica.

Entre os países que adotam o sistema do copyright, encontram-se os EUA, Inglaterra, Canadá, África do Sul e Austrália, cujas leis reconhecem em menor grau os direitos morais de autor, mas todas, sem exceção, admitem a renúncia a tal direito.

Ora, o direito moral de autor, como direito de personalidade, na melhor tradição européia, ou mesmo como direito pessoal como querem alguns, é irrenunciável e inalienável.

No caso dos EUA, o reconhecimento dos direitos morais é limitadíssimo, ocorrendo, tão somente, no que concerne a algumas dentre as chamadas obras de artes visuais, ou seja, pinturas, desenhos, gravuras e fotografias, em exemplares originais ou limitados a 200 cópias, assinadas pelo autor e numeradas, sendo que as fotografias ainda sofrem outras restrições.

Este reconhecimento somente recebeu abrigo na lei dos EUA a partir do chamado Visual Artists Rights Act (V.A.R.A.) de 1990, que foi objeto de emenda à Copyright Law norte-americana, passando a integrar o texto como §106 A.

O sistema do copyright está assentado em uma premissa de ordem puramente econômica: o que importa é o aspecto da exploração econômica da obra, e é isto o que se visa, fundamentalmente, permanecendo em último plano – quando não desaparece inteiramente – a personalidade do autor, manifesta na obra.

Daí a enorme resistência dos tribunais norte-americanos no reconhecimento dos direitos que envolvem a integridade (right of integrity) e a paternidade (right of attribution) das obras. Não se pode esquecer que os chamados direitos morais de autor constituem um conjunto universalista de princípios e faculdades especiais, que remete diretamente à personalidade do autor, e muitos a ela sobrevivem.

Tais princípios (perpetuidade, inalienabilidade, irrenunciabilidade, imprescritibilidade e impenhorabilidade) e faculdades (direito à paternidade, à nominação, ao inédito, à integridade; de modificação, de repúdio, de acesso etc) derivam do ato mesmo da criação da obra, e erigem-se para a sua proteção como manifestação que é da personalidade do autor, com todos os seus atributos de natureza moral e espiritual.

Apesar da resistência e dos embates que vêm sendo travados nos EUA, pelos defensores dos direitos morais dos autores, que tentam, há décadas, quebrar a rigidez dos interesses econômicos da indústria cultural daquele país, o fato concreto é que o sistema do copyright norte-americano tem suas bases solidamente estabelecidas desde o primeiro Copyright Act, de 1790.

Por outro lado, o nosso sistema, igualmente secular, também as tem. A questão a se verificar é justamente se e quando haverá um ponto de convergência conceitual entre os dois sistemas, já que as pontes já lançadas por diversas convenções e tratados em matéria de direitos autorais firmados pelos EUA pouco têm contribuído nesse sentido. Entrementes pede-se que não se confunda alhos com bugalhos, chamando de copyright o que não o é, e transformando em pó o direito dos autores.