Nome aos bois

Irregularidade trabalhista não pode ser confundida com escravidão

Autor

  • Hélio de Souza Rodrigues Júnior

    é advogado especialista em Direito Constitucional e em Filosofia pela Universidade Federal do Ceará professor de Ciências Políticas da Universidade Católica de Brasília (UCB) e assessor Técnico do Senado Federal

14 de abril de 2004, 19h26

Os que advogam da desnecessidade de uma definição do que seja trabalho escravo basicamente alegam dois motivos. A doutrina e a jurisprudência são pacíficas com relação aos elementos gerais presentes no crime de “reduzir alguém a condição análoga à de escravo” (art. 149 do Código Penal 1 ). E o tipo penal previsto no art. 149 é aberto, daí porque depende da valoração no caso concreto, ou seja, dos fatos que estejam envolvendo a situação, de modo que não se deve alterá-lo.

Primeiramente, na esfera dos fatos, observa-se que a doutrina e a jurisprudência não são pacíficas no conceito oriundo do art. 149 do CP, visto a impunidade que abrange a prática deste crime no Brasil. A aplicação do art. 149 somente está sendo efetivada através de muita pressão dos movimentos populares e de cobrança da comunidade internacional. É verdade que, atualmente, alguns processos estão tramitando no Poder Judiciário, mas a indefinição sobre a competência jurisdicional para o julgamento da ação (competência da Justiça Federal ou Estadual) é um dos elementos que impede, com profundidade, como o conceito amplo do art. 149 do CP será, efetivamente, aplicado.

Ademais, a exposição de motivos do Decreto-Lei nº 2.848/40, parte especial do CP, dispõe que “no art. 149 é prevista a entidade criminal ignorada do Código vigente: o fato de reduzir alguém, por qualquer meio, à condição análoga à de escravo, isto é, suprimir-lhe, de fato, o status libertatis , sujeitando-o o agente ao seu completo e discricionário poder. É o crime que os antigos chamavam de plagium . Não é desconhecida a sua prática entre nós, notadamente em certos pontos remotos de nosso hinterland ”.

É necessário levar em consideração que a Lei nº 10.803/2003 deu nova redação ao art. 149 do CP, prescrevendo: “reduzir alguém a condição análoga à de escravo, quer submetendo-o a trabalhos forçados ou a jornadas exaustivas, quer sujeitando-o a condições degradantes de trabalho, quer restringindo, por qualquer meio, sua locomoção em razão de dívida contraída com o empregador ou preposto”.

Portanto, se naquele primeiro momento a definição de trabalho escravo é supostamente dispensável, em termos práticos, a Lei nº 10.803/2003 trouxe como elementos do crime de trabalho escravo: submeter a trabalhos forçados ou à jornada exaustiva; sujeitar a condições degradantes de trabalho, e ainda restringir a locomoção do trabalhador em razão de dívidas contraídas.

Em nosso franciscano entendimento as duas posições expostas não contribuem para a elucidação do dilema, notadamente em virtude da concreta possibilidade de agravamento das sanções penais e de multas administrativas, expropriação de terras e restrições administrativas, pois o argumento-pergunta dos escravocratas modernos é no sentido de que “o que caracteriza o trabalho escravo para que eu perda, sem indenização minha terra? Por que serei preso?”.

É bom levar em consideração que qualquer norma jurídica restritiva de direito, como o caso de uma pena, aplicação de multas e até a perda da propriedade será sempre interpretada restritivamente.

Por outro lado, sempre foi fundamental a distinção entre trabalho escravo e trabalhos forçados ou degradantes, ou ainda, de que qualquer irregularidade trabalhista não deve ser confundida com trabalho escravo – para a extirpação do nefasto fenômeno do trabalho escravo e para a eficácia da sua punição. A Lei nº 10.803/2003 colaciona uma nova confusão entre trabalho escravo e sobre-exploração.

O conceito “reduzir alguém a condição análoga à de escravo” exige que o intérprete utilize noções pré-constituídas. Esta pré-condição para iniciar a interpretação, extrapola para além do perfeitamente existente em toda interpretação normativa.

Evidentemente que não negamos as implicações da relação “eu e minha circunstância”, pois seria desconhecer que a fenomenologia e o existencialismo trataram esta relação como uma construção conceitual filosófico igualmente rica e aprofundada. A compreensão de que “Eu sou eu e minha circunstância” (Ortega y Gasset), a bem da verdade, implica que a circunstância é o ponto de partida para toda reflexão e investigação sobre o ser humano, o que impede a concepção do homem como um ser ontologicamente independente.

Portanto, em uma sociedade de caráter patrimonialista, com forte cultura de que a desigualdade social é quase um elemento normal 2 e marcada pelo ensino jurídico acrítico, beiramos a vergonhosa situação de um olhar complacente da fatalidade ou a da mera inércia resignada.

“No caso brasileiro, a escravidão não se manifesta direta e principalmente em más condições de vida ou em salários baixos ou insuficientes. O núcleo dessa relação escravista está na violência em que se baseia, nos mecanismos de coerção física e às vezes também nos mecanismos de coerção moral utilizados por fazendeiros e capatazes para subjugar o trabalhador. (…) Isso não quer dizer, obviamente, que todos os casos em que o trabalhador não recebe seu salário sejam casos de escravidão. O pesquisador deve estar atento ao seu ingrediente principal, que é a coerção física e moral que cerceia a livre opção e a livre ação do trabalhador. Nesse sentido, pode haver escravidão mesmo onde o trabalhador não tem dela consciência. Fato, porém, que não deve servir como estímulo para que o agente de pastoral ou o agente sindical defina como trabalho escravo tudo aquilo que encerre más condições de trabalho e falta de consciência e de iniciativa do próprio trabalhador para escapar da situação em que encontra-se.” Isso também vale para o erro de confundir formas penosas de trabalho com escravidão, coisa comum, de que temos o exemplo dos carvoeiros de Minas Gerais.


Numa cultura como a nossa, ainda permeada por múltiplas formas e concepções de obediência e sujeição, há evidentes situações culturais de servidão. (…) Nas sociedades camponesas e nas sociedades patriarcais, de que temos fortes resíduos no Brasil, a relação do pai com o filho, em muitos casos tem fortes características de relação senhor-escravo. O mesmo agente de pastoral que consideraria escravidão o trabalho de uma família de carvoeiros de Minas Gerais, escravidão praticada pelo dono da carvoaria, não tem habitualmente considerado escravidão as formas domésticas de sujeição da criança e da mulher ao pai e marido, sujeição que muitas vezes encerra a possibilidade da surra e da violência física.

No interior do Maranhão, no Vale do Pindaré, encontrei professores que ainda usam nas salas de aula a palmatória, um instrumento de castigo que os fazendeiros do século XIX costumavam usar para punir seus escravos. A maior tolerância dos agentes de pastoral com o cativeiro doméstico e a menor tolerância com a sobre-exploração, que não é escravidão, tem muito a ver com uma deformada visão economicista das relações sociais, entre nós difundidas pelo chamado marxismo vulgar de inspiração stalinista. Mas, os que deixam de ver tem, também, uma relação profunda com a sua ideologia familial, o que é próprio das religiões cristãs. Trata-se, obviamente, de uma insuficiência e de uma omissão tendenciosa, por seu lado reveladoras de uma postura comprometida com as tradições do pensamento conservador 3 .

Feitas tais considerações, observamos que o trabalho escravo nos dias atuais se manifesta com a presença de alguns elementos, como a criação de dívidas artificiais, relação de trabalho originada de fraude ou violência, frustração de direitos trabalhistas e retenção de documentos pessoais ou contratuais, sempre com vistas a impedir o desligamento do serviço.

“A Organização das Nações Unidas compreende como escravidão contemporânea grande variedade de violações de direitos humanos, dentre as quais a servidão por dívida (Office of the High Commissioner for Human Fact Sheet nº 14, 1991). (…) A servidão por dívida distingue-se da escravidão tradicional apenas porque a vítima está impedida de deixar seu trabalho ou a terra onde trabalha até que sua dívida seja quitada. Ocorre que esta servidão se caracteriza exatamente porque, apesar de todos os seus esforços, o trabalhador não pode quitá-la 4 .”

Sem dúvida alguma que uma das razões pelas quais o trabalhador teme e recusa sua libertação é a dívida artificial, pois se considera subjetivamente devedor e, portanto, incapaz de violar o princípio moral em que apóia sua relação de trabalho.

Abaixo, estão detalhados oito passos que transformam um homem livre em um escravo, padrão que se repete com triste freqüência.

1) Devido à seca, à falta de terra para plantar e de incentivos dos governos para fixação do homem no campo, aos altos juros do crédito agrícola, ao desemprego nas pequenas cidades do interior ou a tudo isso junto, o trabalhador acaba não vendo outra saída senão deixar sua casa em busca de sustento para a família.

2) Ao ouvir rumores de que existe serviço farto em fazendas, mesmo em terras distantes, ele ruma para esses locais. O Tocantins e a região Nordeste, tendo à frente os Estados do Maranhão e Piauí, são grandes fornecedores de escravos.

3) Alguns vão espontaneamente. Outros são aliciados por “gatos” (contratadores de mão-de-obra que fazem a ponte entre o empregador e o peão). Estes, muitas vezes, vêm buscá-lo de ônibus ou caminhão – o velho pau-de-arara.

4) O destino principal é a região de expansão agrícola, onde a floresta amazônica tomba diariamente para dar lugar a pastos e plantações. Pará e Mato Grosso são campeões em denúncias e resgates de trabalhadores pelo Ministério do Trabalho e Emprego.

5) Há os “trecheiros” ou “peões do trecho” que deixaram sua terra um dia e que, sem residência fixa, vão de trecho em trecho, de um canto a outro em busca de trabalho. Muitos deles acabam se hospedando nos chamados “hotéis peoneiros”, ficando dias até que algum gato venha buscá-los, compre suas dívidas e o leve às fazendas. A partir daí, tornam-se seus credores e eles são obrigados a trabalhar para abater o saldo. Muitos seguem contrariados por estarem sendo negociados. Mas há os que vão felizes, pois acreditam ter conseguido um emprego que possibilitará honrar seus compromissos e ganhar dinheiro.

6) Já na chegada, o peão vê que a realidade é bem diferente. A dívida que tem por conta do transporte aumentará em um ritmo constante, uma vez que o material de trabalho pessoal, como botas, é comprado na cantina do próprio gato, do dono da fazenda ou de alguém indicado por eles. Os gastos com refeições, remédios, pilhas ou cigarros vão para um “caderninho”, e o que é cobrado por um produto dificilmente será o seu preço real. Um par de chinelos pode custar o triplo. Além disso, é costume do gato não informar o montante, só anotar. Pedro conta que um par de botas sai por R$ 25 na cantina da fazenda Nossa Senhora Aparecida. Uma rede, R$ 16 e uma foice, R$ 12. Material de trabalho que deveria ser entregue gratuitamente. Junto com o equipamento mínimo de segurança, que também não existia.


7) Meses de serviço e nada de dinheiro. Sob a promessa de que vão receber tudo no final, o trabalhador continua derrubando a mata, aplicando veneno, erguendo cercas e outras atividades degradantes e insalubres. Cobra-se pelo uso de alojamentos sem condições de higiene.

8) No dia do pagamento, a dívida do trabalhador é maior do que o total que ele teria a receber – isso considerando que o acordo verbal feito com o gato é quebrado, tendo o peão direito a um valor bem menor que o combinado. Ao final, quem trabalhou meses sem receber nada acaba devedor do gato e do dono da fazenda, e tem de continuar suando para poder quitar a dívida. Se for necessário, até força física e armas são usadas para mantê-lo no serviço” 5 .

Portanto, organizando as idéias expostas, verifica-se que o trabalho escravo nos dias atuais se manifesta com a presença do mecanismo de fraude e/ou violência para se criar uma dívida artificial com descumprimentos dos direitos assegurados na legislação trabalhista, objetivando impedir o desligamento do serviço, o que gera, por conseqüências, mácula ao direito de “ir e vir” e à própria liberdade ao trabalho.

Em outros termos, existe uma relação trabalhista violenta ou fraudada e o seu objetivo é manter, a qualquer custo, essa relação, pois com a criação de todos os tipos de manipulações – dívida artificial, retenção de documentos, isolamento e distância da terra natal do trabalhador – impedem que o trabalhador rompa o vínculo, aliás, induz que o trabalhador aceite as regras impostas, sujeitando-se ao trabalho.

Portanto, esses elementos devem estar contidos na caracterização do trabalho escravo, que deve ser aplicado para a esfera do Direto Trabalhista, Penal, Civil e Administrativo, daí porque sugerimos:

“O trabalho escravo se caracteriza pelo vínculo de trabalho com vícios do consentimento, advindo de artificial mecanismo de endividamento ou envolvendo fraude, violência ou ameaça de mal injusto e grave, ou confinamento, com vistas a assegurar que o trabalhador se sujeitará e não romperá o vínculo de trabalho, sendo irrelevante à vontade do trabalhador para a concretização da situação em que se encontra”.

Assim, se diz que a condição de escravo é fruto de uma relação trabalhista (não se deve restringir ao vínculo de emprego, notadamente em face da cultura de contratação de mão-de-obra no campo que na esmagadora maioria das vezes não segue a noção formal de “emprego”).

Contudo, esse vínculo de trabalho é maculado com vícios do consentimento. É corrente na esfera do Direito a definição e alcance dos denominados “vícios do consentimento” que invalidam um acordo de vontades, isto é, um contrato ou negócio jurídico.

Esse vício do consentimento, envolvendo fraude, violência ou ameaça de mal injusto e grave, também provocará um endividamento artificial e/ou confinamento, cuja característica, como anteriormente citado em transcrições de juristas. Resolução da ONU, sociólogos e jornalistas, são elementos substanciais para consubstanciar o moderno trabalho escravo, do ponto de vista objetivo.

É importante dizer que o conceito de fraude, violência ou ameaça de mal injusto e grave, são mansa e tranqüilamente definidos pela doutrina e jurisprudência penal. A fraude nada mais representa do que o uso de meios enganosos que possa ludibriar a vítima, tornando falsa a percepção da realidade. Aqui, evidentemente, está incluído o mecanismo ardiloso ou de artifício.

A violência é a coação física, enquanto que a ameaça de mal injusto e grave é refletida quando a vítima se sente temerosa, isto é, existe algo nocivo à vítima que se poderá constituir em prejuízo sério, verossímil, tornando-a intimidada. Trata-se de uma coação moral ou psicológica, como alguns denominam.

Ademais, o elemento subjetivo se caracteriza pela vontade do agente em assegurar que o trabalhador se sujeitará ao vínculo de trabalho e não o romperá.

Com efeito, o núcleo da relação escravagista está na violência em que se baseia o vínculo de trabalho, pois amparado em mecanismos de coerção física e, na maioria das vezes, também nos mecanismos de coerção moral, utilizados para subjugar o trabalhador, obrigando-o a realizar o trabalho e a não romper o vínculo de trabalho.

Desta feita, tanto o vínculo de trabalho (amparado em fraude, ameaça de mal grave e injusto e quiçá na própria violência física) como a sua finalidade (coação moral e física para que a vítima se sujeite ao trabalho e não rompa o vínculo de trabalho) precisam integrar a caracterização a ser definida.

Em outros termos, se deve inserir na definição a denominada “relação de trabalho” fundada na fraude, na violência ou, ainda, na ameaça de mal injusto e grave; além de acrescer o dolo, consistente no intuito da vítima acatar e obedecer ao nefasto vínculo de trabalho e, “plus”, não romper essa relação de trabalho.


Por fim, valiosa as palavras do Professor José de Souza Martins:

“Freqüentemente, pedem-me agentes de pastoral, militantes sindicais e até mesmo alunos e professores de diferentes escolas que lhes diga o que é, afinal de contas, escravidão. O pedido vem da surpresa em face da menção à persistência da escravidão ainda nos dias de hoje. Vem também das incertezas e da falta de clareza em relação à diversidade das relações de trabalho mesmo na sociedade capitalista.

De uns, porque passaram a rotular como escravidão todas as situações e relações de trabalho que não lhes pareçam condizentes com o que subjetivamente entendem que deveriam ser as relações trabalhistas de um “bom patrão”. De outros, porque tem do assunto vaga e imprecisa noção, oriunda das fantasiosas concepções que a respeito podem ser encontradas em muitos livros didáticos.

De outros, ainda, porque julgam que desde a Princesa Isabel o problema está resolvido, não tendo, pois, o menor cabimento que se diga que há escravidão no Brasil ainda hoje. (…) No fundo, ao me pedirem um conceito , pedem-me, também, que me limite ao conceito, uma forma, sem dúvida, de livrarem-se de minhas impertinências de sociólogo que questiona conceitos, antes de usá-los. A ciência que se limita ao conceito, na verdade, permanece aprisionada nos limites do pré-conceito .

Quem pede conceito, pede clareza. Reconhece, pois, que está confuso em face de uma realidade que não pode ser capturada por definições correntes. Mas, quem pede clareza tem que se conformar com as dificuldades e críticas do processo de tornar claro aquilo que não o é; tem que se conformar com as durezas do processo de produção do conhecimento crítico.

Essa modalidade de conhecimento situa social e interpretativamente a dúvida de quem a levanta, de quem pede um conceito, para descobrir as últimas instâncias das razões da dúvida e a natureza profunda da indagação. Esse tipo de dúvida não se resolve com as interpretações de senso comum nem com “conhecimento” ideológico, modalidades acobertadoras e deturpadas de tomada de consciência dos problemas sociais. Nem, obviamente, com o desconforto ou, até mesmo, com a irritação de quem, só por isso, se considera desafiado e questionado.

A quem não está familiarizado com o quadro confuso em que estão mergulhados os que se encontram de um lado ou de outro dessa cobrança, pode parecer uma perda de tempo começar a falar de escravidão com considerações sobre quem faz a pergunta ao invés de ir diretamente à resposta.

Essa aparente perda de tempo é, no entanto, necessária. É que identificar a origem da pergunta já é parte da resposta. Sobretudo porque é necessário entender causas e circunstâncias disso que se tornou obstinada procura de escravos onde eles possam existir e, já agora, onde nem sempre existem. Aí o que está em causa não é necessariamente a escravidão propriamente dita, nem suas vítimas, mas, muitas vezes, a necessidade de realimentar continuamente as convicções ideológicas de quem se orienta por essa pauta de preocupações. O procedimento é, pois, um procedimento de cautela em favor da qualidade do trabalho de quem, com justiça e razão, se preocupa com a situação e o destino daqueles desvalidos que foram alcançados por formas coercitivas e violentas de exploração de sua força de trabalho”. 6

A necessidade da caracterização legal do que seja trabalho escravo visa justamente afastar o principal argumento dos que negam a existência de trabalho escravo no Brasil, pois o justificam sobre a existência de uma relação cultural de hierarquização entre o senhor e o camponês 7 , muitas vezes aprofundada pela miséria no campo.

“Se nascemos numa sociedade que nos ensina certos valores morais — justiça, igualdade, veracidade, generosidade, coragem, amizade, direito à felicidade — e, no entanto, impede a concretização deles porque está organizada e estruturada de modo a impedi-los, o reconhecimento da contradição entre o ideal e a realidade é o primeiro momento da liberdade e do viver. O segundo momento é à busca das brechas pelas quais possa passar o possível, isto é, uma outra sociedade que concretize no real aquilo que a nossa propõe no ideal” 8 .

Portanto, a sociedade brasileira diz claramente acerca da inadmissibilidade de aceitação de uma suposta relação cultural subordinada no campo que viole os mais basilares direitos do ser humano, ilusoriamente legitimado pela desigualdade social existente. É exigência dela, também ou principalmente dirigida ao Poder Público, que um conjunto de medidas sejam instituídas por lei para manter todos os trabalhadores rurais acima de um umbral sociológico considerado mínimo, em todas as eventualidades que venham a afetar a sua capacidade de subsistência ou de sua família, ou seja, uma rede de segurança que os impediria de viver abaixo do mínimo tolerável; bem como, a impunidade ao crime de trabalho escravo seja erradicada.

Notas de rodapé:

1. Redação antes da Lei nº 10.03/2003.

2. Infelizmente ainda é comum a concepção de “mera fatalidade” certas situações de violação aos direitos fundamentais, por exemplo: violência contra a mulher pelos maridos, violência física em crianças a título de castigo, que a criança deve ajudar (trabalhando) para as despesas da casa e que a pobreza e miséria é fruto da própria inaptidão do indivíduo ou oriunda de vontade divina.

3. MARTINS, José de Souza. “A escravidão nos dias de hoje e as ciladas da interpretação”. Sítio na internet www.cpt.org.br/artigos.

4. DODGE, Raquel Elias. Escravidão Contemporânea no Brasil: Quem Escraviza? Palestra apresentada na oficina sobre trabalho escravo, no III Fórum Social Mundial, e 25 de janeiro de 2003.

5. Artigo de Leonardo Sakamoto, em 06/12/2003, agência “carta maior” – Dossiê Trabalho Escravo.

6. Ob. Cit.

7. Bastante oportuna a citação do trecho de Bertrand Russell, quando do recebimento do Prêmio Nobel da Literatura: “A sede de poder aumenta de maneira notável pelo exercício do poder, e isso se aplica tanto aos poderes miúdos como aos poderes de personagens importantes. Na feliz época anterior a 1914, quando as senhoras abastadas podiam facilmente contratar um grande número de criados, a satisfação que elas provavam exercendo seus poderes sobre a criadagem aumentava gradativamente com a idade”.

8. Marilena Chauí. Estudo da Filosofia. São Paulo, Saravia, 1999. P. 306

Autores

  • Brave

    é advogado especialista em Direito Constitucional e em Filosofia pela Universidade Federal do Ceará, professor de Ciências Políticas da Universidade Católica de Brasília (UCB) e assessor Técnico do Senado Federal

Tags:

Encontrou um erro? Avise nossa equipe!