A balança e a espada

Os processos de conhecimento e de execução, segundo Lacombe.

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13 de abril de 2004, 12h00

A deusa Têmis carrega não só uma balança, como também uma espada. Cada uma tem o seu simbolismo próprio. A primeira representa a justiça propriamente dita. O conhecimento do caso. Para usarmos expressões processuais, na balança ocorre o processo de conhecimento. A segunda, a espada, executa a sentença, representa o processo de execução.

A Justiça não pode dispensar a balança, porque sem ela não cumpriria a sua missão fundamental, que é decidir a questão que lhe é posta pelas partes. Pode decidir mal e pode decidir bem. O que não pode é deixar de decidir. E decidir bem significa usar a razão, e não a vontade. Se quem decide apoiado na razão pode acertar ou errar, quem decide pela vontade só poderá errar. A balança representa, portanto, a razão. A espada é a força executória da sentença. Se a decisão posta em decorrência do uso da balança não for cumprida, a Justiça não terá outra alternativa senão apelar para o uso da espada. A Justiça sem a balança não poderá decidir com sabedoria, sem a espada não terá força.

E, para o completo e perfeito funcionamento da Justiça, nenhum juiz poderá se omitir e não se utilizar da espada caso sua decisão esteja sendo desrespeitada. Isso é um dever, e não uma faculdade. Como bem salientou Rui, “não há tribunais que bastem para abrigar o direito quando o dever se ausenta da consciência dos magistrados”. E complementa mais adiante: “O bom ladrão salvou-se, mas não há salvação para o juiz covarde” (Obras Completas, vol. 26, 1899, tomo 4, pág. 185 e seguintes).

Assim, se o juiz não cumpre o seu dever de forçar a obediência à sua decisão, estará desabrigando o direito e comportando-se como covarde. Em vista dessas considerações, parece estranho que um juiz possa ser acusado de abuso de autoridade ou abuso de poder por querer impor a uma autoridade administrativa o cumprimento de uma decisão sua. Quem no caso abusou do poder e incidiu em evidente má-fé processual foi o acusador. Além do que atentou contra a independência do Poder Judiciário. Se tal comportamento tivesse sido atribuído ao presidente da República, estaríamos diante da abertura de um processo de impeachment.

O que é de espantar é que a autoridade administrativa vinha sonegando provas ao juízo. E o que é ainda de espantar é que, da decisão determinando a juntada das provas, não houve recurso por parte do MP nem foi ajuizado mandado de segurança contra seu ato. Estava-se, por conseguinte, diante de matéria preclusa. O juiz poderia emitir uma ordem de busca e apreensão, determinando ao oficial de Justiça lavrar o flagrante em caso de desobediência.

Quando no exercício do cargo de juiz federal, em diversos despachos que dei expedindo ordem às autoridades administrativas, colocava um adendo: “Fica o sr. oficial de Justiça autorizado a lavrar o flagrante e requisitar força policial para efetuar a prisão em caso de desobediência”. Será que isso é abuso de autoridade? Se for, não existirá mais Justiça! Nenhum juiz terá coragem de obrigar as autoridades públicas ao cumprimento de suas decisões. Cumprirão se quiserem e, se o juiz determinar coativamente o cumprimento, acionarão o Ministério Público para processar o juiz. Os tribunais serão transformados em meras academias de debates sobre temas jurídicos. Será o fim da cidadania!

Logo após o famigerado Plano Collor -quando eu já era juiz de 2º grau-, diversas liminares em mandado de segurança foram concedidas pela primeira instância federal de São Paulo, determinando a liberação dos cruzados bloqueados. Num dos casos, a gerente de uma agência bancária rasgou o mandado judicial diante do oficial de Justiça. O flagrante foi imediatamente lavrado e a gerente encaminhada à Polícia Federal. Houve impetração de habeas corpus a favor da gerente. Foi a mim distribuído. Não só neguei a liminar, como telefonei ao juiz de primeiro grau, dizendo-lhe: “Pode mandar prender, que acabei de negar a liminar”.

Em face da negativa da liminar no habeas corpus, a liminar no mandado de segurança foi cumprida e o dinheiro liberado. Após o julgamento pelo TRF da Terceira Região, declarando a inconstitucionalidade do Plano Collor, não houve mais nenhuma resistência do Executivo. Mas, se a Justiça não tivesse na ocasião sabido exercer a sua autoridade, a história poderia ser outra.

O que está em jogo no caso desse juiz denunciado por abuso de autoridade não é a sua eventual permanência no cargo, é a própria autoridade e independência do Poder Judiciário. É a permanência desse poder como guardião dos direitos da cidadania. (Artigo publicado na Folha de S. Paulo em 13/4/04)

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