Show business

Militares americanos oferecem show business na guerra do Iraque

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13 de abril de 2004, 14h18

Relato do jornalista americano Tom Shanker, do New York Times, que acompanhou de perto as tropas americanas no Iraque, revela algumas curiosidades no dia-a-dia dos soldados que enfrentam a morte todos os dias em meio às areias escaldantes e aos morteiros lançados pelas milícias xiitas do clérigo Al-Sadr. CDs, MP3 e DVDs portáteis, antenas de satélite e computadores laptop com acesso à Internet permitem aos soldados se manter em dia com os últimos lançamentos da música, do cinema e da televisão americanos, ainda que distantes milhares de quilômetros de casa num país conflagrado por décadas de ditadura, embargo e guerras.

Após um dia de combate ou patrulha, as tropas se reúnem nas bases no final do dia, voltando a mergulhar na cultura do consumo e recuperando um pouco de seu território privado com a ajuda de um par de headphones em meio à zona de guerra. As novas tecnologias têm exercido notável impacto na vida militar, encerrando definitivamente a época em que soldados em combate só tinham acesso a notícias através dos boletins de seus comandantes superiores. Com a Internet e o acesso a satélites, um soldado pode permanecer antenado com tudo o que se passa em sua guerra, na região adjacente e no resto do mundo, sem depender da boa-vontade de seus superiores ou da censura das informações.

Oficiais superiores enviam diariamente e-mails para os comandantes de unidades avançadas, misturando ordens e determinações com música e entretenimento. Uma rádio local gera programação contínua para as tropas, ajudando a aliviar a tensão do ambiente de hostilidades, mas a maioria dos soldados prefere a privacidade de suas próprias escolhas de CDs, DVDs e filmes e o gênero mais escutado em todo o deserto é certamente o rock´n roll.

Na base militar de Kirkush, que serve para treinamento dos militares americanos servindo no leste do Iraque, perto da fronteira com o Irã, um grupo de soldados aguarda pela partida de um helicóptero Black Hawk de transporte de comandos ao som de Marilyn Manson, Eminem e Shania Twain. Quando a aeronave aciona seus motores e se eleva no ar, alguém ironicamente dispara a música “Stairway to Heaven” do saudoso grupo inglês Led Zeppelin.

As músicas se originam de um link de satélite do European Satellite Music Channel e de um computador contendo 12.8 gigabytes de músicas baixadas para serem utilizadas nos MP3 portáteis dos soldados. “Toda vez que alguém aparece com um CD novo, recebido dos EUA pelo correio militar semanal ou presenteado, a gente o carrega no computador. Dessa forma, estamos sempre atualizados por aqui.”, diz o sargento Thomas R. Mena. A CDteca dos militares americanos vai de ABBA a AC/DC, passando por Limp Biskuit e Metallica, Van Halen e ZZ Top.

Soldados aliados do Oeste da África que se juntaram às tropas americanas para obter treinamento que seus países não podem oferecer trazem as últimas novidades da música pop nigeriana. Americanos de origem chinesa e japonesa se encarregam de fornecer as novidades de Hong Kong, trazidas em cada período de dois meses de descanso que as tropas gozam depois de seis meses no front. “Nós temos o mundo inteiro debaixo de uma só barraca”, afirma o oficial Nicholas Allen da Terceira Brigada da Primeira Divisão de Infantaria. Tropas patrulhando uma área próxima da fronteira com o Kuwait terminam sua missão ao som de Bush, não o seu presidente e comandante-em-chefe, mas uma banda de grunge com o mesmo nome.

Um sargento da unidade dos Boinas Verdes das forças especiais, ali pela faixa dos 40 anos e veterano da guerra do Afeganistão em 2001/2002, que está no Iraque para treinar as novas forças de segurança iraquianas, guarda um CD do Grateful Dead, o imortal grupo americano dos loucos anos 60 ao lado de seu equipamento de mira a laser sobre um tanque. No aeroporto de Taji, guarnecido pelos Marines, ouve-se o som country de Dwight Yoakam ecoando alto de um hangar de mecânicos, sincronizado com o ruído surdo da detonação, ali perto, de munição iraquiana capturada mais cedo por um grupo de soldados.

Mas a televisão ainda é o veículo mais apreciado pelas tropas americanas em serviço no Iraque. O American Forces Network, que distribui centenas de canais para os soldados, oferece, esportes, filmes, noticiários, programas de auditório e show variados. Entre os preferidos estão “Seinfeld”, “Os Simpsons” e “Friends”. A emissora de rádio FM do canal, chamada de “Freedom Radio”, transmite diariamente de dentro de Bagdá por cerca de 12h e recebe inputs de sua sede em Riverside, na Califórnia, amplificando a nova e popular saudação entre os soldados: “Who´s your Baghdaddy?”, algo como, “Quem é seu papai na cidade?”.

O tenente-coronel Mathew Durham, oficial administrador da rede American Forces Network em Badgá afirma que o formato da rádio é “Bright Adult Contemporary”, reunindo todos os grandes sucessos internacionais da música. “Claro que temos que ter cuidado com o que tocamos num país islâmico, mas a lista é grande”, complementa ele. Os soldados em postos de patrulha, onde são proibidos headphones, estão entre os mais fiéis ouvintes da emissora militar americana. Entre músicas, eles escutam mensagens de encorajamento e serviço público, como por exemplo, deixar suas armas nas entradas de restaurantes e mesquitas, beber bastante água ao sabor das crescentes temperaturas de março e abril no deserto, escrever para suas famílias e… apresentar em dia suas declarações ao Fisco americano.

Há até um pequeno tablóide à guisa de jornal diário no front. “The Old Ironsides Daily”, algo como “O Diário dos Velhos Cascas-de-Ferro” é publicado diariamente pela Primeira Divisão Blindada do Exército e pode ser obtido tanto em papel como em formato PDF via e-mail pela Internet. A edição de março trouxe longa homenagem aos companheiros mortos em combate, informações sobre as eleições primárias nos EUA e divulgou a chegada de novos gravadores de DVDs virgens com mais capacidade.

Num dos acampamentos nos arredores da aldeia de Baquba, uma das mais constantemente atingidas por morteiros inimigos, os comandantes ordenam um blecaute total durante a noite toda. Nenhuma luz pode ser ligada e todas as portas e janelas são cobertas por panos pretos, mas por todo lado protuberam as anteninhas de satélite tal qual cogumelos no escuro, resultando na inconfundível luz azul das telas dos computadores no interior do aposento central do acampamento. A delegação que viajou com o Assistente do Secretário de Defesa Paul Wolfowitz assistiu junto com as tropas à decisão do famoso Super Bowl de futebol americano em fevereiro último, no meio do deserto em Mosul e os soldados cinéfilos assistiram ao vivo à cerimônia de entrega do Oscar antes de entrar em ação em Tikrit, cidade-natal de Saddam Hussein.

O comando central militar americano se esforça para encher as prateleiras com todas as novidades possíveis de entretenimento e diversão para suas tropas. Praticamente todos os novos lançamentos de CDs são obtidos com no máximo dois meses de atraso, em ato geralmente de cortesia das grandes gravadoras americanas. Há também os mais recentes filmes de Hollywood, a grande maioria deles pirata. Filmes como “Matrix”, “Mad Max”, “Terminator 3”, “Tomb Raider” e “Cop Land” estão entre os preferidos dos soldados mais jovens no front enquanto os oficiais preferem o CD das “Sopranos” e filmes como “U-571”, um suspense sobre a Segunda Guerra Mundial. A diferença é que para os oficiais estão liberadas notícias durante as 24h do dia. É a face viva e irreal do show business em meio a um conflito sanguinário e sem prazo para terminar.

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