Vai faltar peixe

Ibama tem de criar licença ambiental para a pesca

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  • Paulo de Bessa Antunes

    é detentor da edição 2022 do Prêmio Elisabeth Haub de Direito Ambiental e Diplomacia professor associado da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (UniRio) e presidente da Comissão de Direito Ambiental do Instituto dos Advogados Brasileiros e ex-presidente da União Brasileira da Advocacia Ambiental.

7 de abril de 2004, 17h22

Fundamentalmente, as questões relativas ao meio ambiente dizem respeito a conflitos de uso. Se dois ou mais sujeitos pretendem dar utilização diversa para uma mesma área ou recurso ambiental – uma praia, por exemplo – podemos notar que entre os vários grupos que a disputam existem interesses diversos: um grupo pretende utilizá-la para jogar frescobol, outro para jogar futebol, um terceiro pretende passear com cachorros, um outro quer pescar, alguns desejam tomar banho de mar e passear com crianças, e assim sucessivamente. Estas diferentes opções têm dificuldade de convivência, necessitando um árbitro para estabelecer as regras a serem seguidas por todas as partes.

Um dos grandes conflitos de uso dos recursos ambientais que atualmente existe no Brasil é o que diz respeito à utilização do mar territorial brasileiro e, em especial, a convivência entre as atividades de exploração e produção de petróleo e a pesca. A pesca é uma atividade que vem declinando de forma assustadora no Brasil, desde muitos anos, e os sinais de sua recuperação – ainda que lentos – se devem ao incremento da produção em águas doces e nas chamadas fazendas marinhas. A ONU estima que 70% dos estoques de peixe comercialmente importantes do mundo estão sendo super explorados. Na Cúpula Mundial sobre Desenvolvimento Sustentável (Rio + 10), realizada na África do Sul, foram firmados diversos acordos internacionais que prevêem que os governos deverão propiciar a elevação dos estoques de peixes a um nível sustentável até 2015, admitindo-se, inclusive, a decretação de proibições temporárias de pesca dessas espécies.

No Brasil, o IBAMA já proibiu pelo período de cinco anos a pesca do mero, que é uma espécie ameaçada de extinção. Igualmente, tem sido buscada uma gestão compartilhada entre a Secretaria Especial de Aqüicultura e Pesca da Presidência da República (SEAP/PR), o MMA e o IBAMA, com vistas à definição de períodos de defesa, controle e monitoramento de frota e tipos de petrechos permitidos. Outras ações de gestão compartilhadas foram discutidas visando a sua implementação, especialmente no que se refere à pesquisa, à geração de informações estatísticas e ao controle e monitoramento dessas atividades.

Segundo dados da SEAP/PR, a pesca responde por 834 mil empregos diretos e 2,5 milhões indiretos, gerando 4 bilhões de reais de receita. Os números são considerados pequenos pelo governo, que pretende ampliar a produção pesqueira, tendo para isso destinado recursos públicos para a modernização da frota pesqueira – cerca de 1,6 bilhão até 2006. Também a pesca artesanal deverá ser contemplada com projetos e programas especiais.

De todas as atividades utilizadoras dos recursos do mar, a pesca, seja industrial, seja artesanal, é a única que não está submetida ao processo de licenciamento ambiental por parte do IBAMA ou dos órgãos estaduais de controle ambiental. É curioso, pois em várias ações judiciais que têm tramitado perante os diversos tribunais brasileiros, os próprios órgãos de classe dos pescadores (Confederação Nacional de Pescadores e Federação de Pescadores do Estado do Rio de Janeiro) reconhecem o declínio da pesca como um fato incontestável, muito embora atribuam-no, sem qualquer base técnica ou científica, às atividades dos diferentes setores da indústria do petróleo, desconhecendo a sobrepesca da qual são agentes e vítimas concomitantemente.

Uma importante iniciativa foi tomada pelo Ministério Público Federal que, em medida proposta pela Procuradora da República Anelise Becker, ajuizou a Ação Civil Pública nº 2002.71.01.010012-0, em curso perante a justiça federal de Rio Grande (RS), na qual pretende compelir a União Federal e o IBAMA a adotarem o licenciamento ambiental para as atividades pesqueiras, com fundamento no artigo 10 da Lei nº 6.938/81 (Política Nacional do Meio Ambiente – PNMA). Tal ação judicial é resultante de recomendação formulada pela 4ª Câmara de Coordenação e Revisão do Ministério Público Federal para que o IBAMA implantasse o licenciamento ambiental da pesca. Como a medida recomendada não foi adotada pelo órgão ambiental, foi necessário o ajuizamento da ação civil pública, cuja tramitação, como se sabe é muito lenta.

O IBAMA, ao não reconhecer a necessidade de licenciamento ambiental da pesca, age de forma contraditória e pouco coerente, pois ele próprio, seguidas vezes, baixa normas de defeso de diferentes espécies. O licenciamento ambiental da pesca permitiria que se tivesse um controle efetivo das quantidades pescadas, do tipo de peixe, da época de atividade etc. Com isto, seria possível um planejamento capaz de assegurar a reprodução das espécies de forma adequada e, em conseqüência, assegurar a própria sobrevivência da pesca artesanal.

A própria criação da SEAP/PR, uma necessidade muito bem detectada pelo Presidente Lula, levará a um aumento do esforço de pesca e, portanto, à necessidade de controle ambiental da atividade. Relevante, no contexto, é o fato de que a Lei nº 10.683, em seu art. 23, estabelece que a pesca deve ser desenvolvida com respeito à legislação ambiental. Inexplicavelmente, o IBAMA tem se utilizado do parágrafo 1º, I do artigo 23 para se exonerar de suas obrigações quanto ao licenciamento ambiental da pesca. Olvida-se o Instituto que o licenciamento ambiental é uma coisa e o licenciamento para pesca é outra; aliás, como está previsto na própria Lei nº 6.938/81.

Evidentemente que o licenciamento da pesca artesanal deve ser realizado em bases diferentes daquele que se espera venha a ser desenvolvido para a pesca industrial. O licenciamento da pesca artesanal deveria contemplar as colônias de pesca, que teriam uma licença ambiental única para os seus integrantes, definindo-se uma quantidade máxima de pescado a ser produzido por cada uma delas em determinado período de tempo. Seriam definidos métodos, sistemas, petrechos, itinerários e outros parâmetros necessários para dotar a atividade da sustentabilidade necessária. A indústria do petróleo poderia ser uma importante aliada e parceira em tal empreendimento, pois é uma das principais interessadas na harmoniosa convivência com a pesca artesanal. Assim, as compensações que, rotineiramente, são determinadas pelo IBAMA para a concessão de licenças ambientais para a indústria do petróleo poderiam ser carreadas para a construção de um mecanismo eficiente de licenciamento ambiental da pesca artesanal, bem como para a captação dos pescadores artesanais para o exercício de atividades complementares, tais como fazendas marinhas e outras que pudessem contribuir para a sobrevivência de tão expressivo contingente de nossa população nos períodos de defeso e outras épocas de pesca proibida.

O sistema, tal como está montado atualmente, é bastante frágil, pois não atende às necessidades dos usuários dos recursos do mar nas zonas em que estão sendo desenvolvidos campos de petróleo e gás. Os constantes conflitos entre pescadores e indústria do petróleo são nocivos para todas as partes e não contribuem para uma solução aceitável da questão. Cabe ao IBAMA, como órgão ambiental responsável pela harmonização das partes no que se refere à utilização dos recursos ambientais marinhos, dar um passo adiante e estabelecer um grupo de trabalho que, envolvendo todas as partes, seja capaz de estabelecer um mecanismo de licenciamento ambiental apto a garantir a sustentabilidade dos recursos do mar.

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