Eu fico

STF garante permanência de vereadores até próxima eleição

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6 de abril de 2004, 19h47

O ministro do Supremo Tribunal Federal, Gilmar Mendes, decidiu que os vereadores de São João da Boa Vista, em São Paulo, devem permanecer no cargo até a próxima legislatura, apesar de Decreto que reduz para 13 o número de vereadores nos municípios que tenham até 100 mil habitantes.

Após serem afastados do mandato, os vereadores Rudney Fracaro, Fátimo Costa Cavini, Jair Morgabel e Marco Antônio de Souza, decidiram entrar com pedido de liminar. Eles pediram a suspensão de recurso extraordinário da Câmara Municipal que pretendia reduzir o número de cadeiras de 17 para 13.

O ministro determinou a reintegração dos vereadores às sessões da Câmara.Segundo ele, a decisão de reduzir o quadro de vereadores deve valer apenas para as próximas legislaturas e não para as que já estão em vigor.

Leia a liminar:

Para suspender recurso extraordinário

MED. CAUT. EM AÇÃO CAUTELAR 189-7 SÃO PAULO

RELATOR : MIN. GILMAR MENDES

REQUERENTE(S) : RUDNEY FRACARO E OUTRO(A/S)

ADVOGADO(A/S) : HUGO ANDRADE COSSI E OUTRO(A/S)

REQUERIDO(A/S) : MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DE SÃO PAULO

INTERESSADO(A/S) : CÂMARA MUNICIPAL DE SÃO JOÃO DA BOA VISTA

ADVOGADO(A/S) : HELLEN CRISTINA PADIAL BACKSTRON FALAVIGNA E

OUTRO(A/S)

DECISÃO: Cuida-se de Ação Cautelar, com pedido liminar, proposta por Rudney Fracaro, Fátimo Costa Cavini, Jair Morgabel e Marco Antônio de Souza, vereadores do Município de São João da Boa Vista, S.P., para dar efeito suspensivo a recurso extraordinário, interposto pela respectiva Câmara Municipal, com base no art. 102, III, “a”, da Constituição Federal, em face de acórdão da 5ª Câmara de Direito Público do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo que manteve sentença, a qual reconheceu, incidentalmente, por afronta ao art. 29, IV, “a”, da Carta Magna, a inconstitucionalidade do art. 1º do Decreto Legislativo nº 10, de 07.12.1999 – que previa o número de 17 (dezessete) cadeiras para a Câmara Municipal -, e reduziu para o número máximo de 13 (treze) cadeiras, enquanto a população não superar 100.000 (cem mil) habitantes.

Conforme noticiado nos autos, a execução dessa decisão foi suspensa por determinação do Presidente do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, em 1º.12.00, que acolheu o pedido apresentado pela Câmara Municipal de São João da Boa Vista.

Assim, realizadas as eleições de 2000, foram diplomados 17 vereadores para o mandato de 2001-2004.

No entanto, dizem os autores terem sido surpreendidos, recentemente, pela manifestação da Justiça Eleitoral de que indeferida a apelação, não mais poderiam ser considerados vereadores, estando, portanto, impedidos de participarem das sessões legislativas. Daí terem formulado o pedido de assistência litisconsorcial no recurso extraordinário.

Mesmo sabedores da jurisprudência desta Corte quanto à possibilidade da medida cautelar para concessão de efeito suspensivo somente nos casos em que o recurso extraordinário já tenha sido admitido no Tribunal de origem, sustentam a ocorrência de três motivos singulares e especiais para a concessão da tutela cautelar.

O primeiro argumento é o da existência de lacuna legislativa quanto à competência para apreciar o pedido de efeito suspensivo de recurso extraordinário antes de proferido o juízo de admissibilidade. O segundo, é o afastamento de seus mandatos em dezembro de 2003, data desde a qual não percebem os seus vencimentos, mesmo não tendo havido o julgamento definitivo da questão. O terceiro, é o de que não ocorreu supressão de instância. O pedido de efeito suspensivo foi negado no Tribunal de origem, mas os danos aos quais têm se sujeitado são irreparáveis.

Assim, alegam que foram indevidamente atingidos pela decisão objeto do recurso extraordinário, porque afastados sumariamente dos cargos, para os quais tinham sido devidamente empossados e diplomados para o mandato de quatro anos, sem que o Ministério Público tivesse impugnado por qualquer recurso, sem sequer participarem da relação jurídica processual na Ação Civil Pública.

Ao argumento de que há, “no mínimo, um provável juízo de probabilidade da tutela pretendida” ressaltam terem sido prequestionados os dispositivos constitucionais impugnados no recurso extraordinário – art. 1º, caput, (pacto federativo); art. 2º (separação dos poderes) e 29, IV, “a” (proporcionalidade entre o número de vereadores e a população).

Por fim, pedem a determinação de vigência futura dos efeitos da declaração de inconstitucionalidade do art. 1º do Decreto Legislativo nº 10, de 07.12.1999, do Município de São João da Boa Vista, S.P.

Entendo caracterizado o interesse jurídico dos autores bastante a autorizar sua admissão na relação jurídica como assistentes.


Afiguram-se presentes os pressupostos para a admissibilidade do pedido liminar.

Cuida-se, aqui, de questão idêntica àquela discutida no Recurso Extraordinário 197.917/SP, Maurício Corrêa, em que o Plenário decidiu pela inconstitucionalidade de lei orgânica municipal, que estabelecia o número de vereadores, determinando, porém, a eficácia dos efeitos para momento futuro, adotando minha sugestão. Valho-me, aqui, dos fundamentos de meu voto.

Como se pode ver, se se entende inconstitucional a lei municipal em apreço, impõe-se que se limitem os efeitos dessa declaração (pro futuro).

Limitação de efeitos no sistema difuso

Embora a Lei nº 9.868, de 10 de novembro de 1999, tenha autorizado o Supremo Tribunal Federal a declarar a inconstitucionalidade com efeitos limitados, é lícito indagar sobre a admissibilidade do uso dessa técnica de decisão no âmbito do controle difuso.

Ressalte-se que não se está a discutir a constitucionalidade do art. 27 da Lei nº 9.868, de 1999. Cuida-se aqui tão-somente de examinar a possibilidade de aplicação da orientação nele contida no controle incidental de constitucionalidade.

Para tanto, faz-se necessária, inicialmente, uma análise da questão no direito americano, que é a matriz do sistema brasileiro de controle.

É interessante notar que, nos próprios Estados Unidos da América, onde a doutrina acentuara tão enfaticamente a idéia de que a expressão “lei inconstitucional” configurava uma contradictio in terminis, uma vez que “the inconstitutional statute is not law at all” (Willoughby, Westel Woodbury. The Constitutional Law of the United States, New York, 1910, v. 1, p. 9/10; cf. Cooley, Thomas M., Treaties on the Constitutional Limitations, 1878, p. 227), passou-se a admitir, após a Grande Depressão, a necessidade de se estabelecerem limites à declaração de inconstitucionalidade (Tribe, Laurence. The American Constitutional Law, The Foundation Press, Mineola, New York, 1988). A Suprema Corte americana vem considerando o problema proposto pela eficácia retroativa de juízos de inconstitucionalidade a propósito de decisões em processos criminais. Se as leis ou atos inconstitucionais nunca existiram enquanto tais, eventuais condenações nelas baseadas quedam ilegítimas, e, portanto, o juízo de inconstitucionalidade implicaria a possibilidade de impugnação imediata de todas as condenações efetuadas sob a vigência da norma inconstitucional. Por outro lado, se a declaração de inconstitucionalidade afeta tão-somente a demanda em que foi levada a efeito, não se há que cogitar de alteração de julgados anteriores.

Sobre o tema, afirma Tribe:

“No caso Linkletter v. Walker, a Corte rejeitou ambos os extremos: ‘a Constituição nem proíbe nem exige efeito retroativo.’ Parafraseando o Justice Cardozo pela assertiva de que ‘a constituição federal nada diz sobre o assunto’, a Corte de Linkletter tratou da questão da retroatividade como um assunto puramente de política (política judiciária), a ser decidido novamente em cada caso. A Suprema Corte codificou a abordagem de Linkletter no caso Stovall v. Denno: ‘Os critérios condutores da solução da questão implicam (a) o uso a ser servido pelos novos padrões, (b) a extensão da dependência das autoridades responsáveis pelo cumprimento da lei com relação aos antigos padrões, e (c) o efeito sobre a administração da justiça de uma aplicação retroativa dos novos padrões.” (Tribe, American Constitutional Law, cit., p. 30)

Ressalte-se que Linkletter havia sido condenado com base em sistema de provas que, posteriormente, a Suprema Corte veio a considerar contrário ao princípio do due process of law. Com base nessa orientação, Linkletter pediu a revisão do seu caso, o que lhe foi negado pela Suprema Corte, forte no argumento de que a pretensão formulada não tinha fundamento constitucional (a questão dos efeitos não tinha definição constitucional) (Garcia de Enterría, Justicia Constitucional, cit., RDP 92, p. 5).

Em verdade, toda a polêmica surgiu com o caso Mapp v. Ohio 367 US 643 (1961), no qual a Suprema Corte reconheceu que, em consonância com a 4a. Emenda, a prova obtida ilegalmente não seria admissível em um juízo penal. Restou, assim, superada a doutrina estabelecida em Wolf v. Colorado, 338 US 25 (1949). Como era de se esperar, inúmeras petições de habeas corpus foram apresentadas com o objetivo de assegurar a aplicação retroativa do precedente Mapp nos casos já julgados (Cf. Sesma, Victoria Iturralde, El Precedente en el Common Law, Madri, 1995, p. 173). Daí ter afirmado o juiz Clark que as regras fixadas em Mapp tinham como objetivo desestimular as ações ilegais da polícia, proteger a privacidade das vítimas e ensejar que os órgãos federais e estaduais operassem com base nos mesmos padrões jurídicos. Conferir a Mapp efeitos retroativos, na opinião de Clark, acabaria por quebrantar a confiança que órgãos do Estado depositaram em Wolf v. Colorado e imporia uma desmedida carga de trabalho para administração da Justiça (Sesma, El Precedente, cit., p. 173).


A jurisprudência americana evoluiu para admitir, ao lado da decisão de inconstitucionalidade com efeitos retroativos amplos ou limitados (limited retrospectivity), a superação prospectiva (prospective overruling), que tanto pode ser limitada (limited prospectivity), aplicável aos processos iniciados após a decisão, inclusive ao processo originário, como ilimitada (pure prospectivity), que sequer se aplica ao processo que lhe deu origem (Palu, Oswaldo Luiz. Controle de constitucionalidade, São Paulo 2a. ed., 2001, p. 173; Medeiros, Rui. A Decisão de Inconstitucionalidade, Universidade Católica Editora, Lisboa, 1999).

Vê-se, pois, que o sistema difuso ou incidental mais tradicional do mundo passou a admitir a mitigação dos efeitos da declaração de inconstitucionalidade e, em casos determinados, acolheu até mesmo a pura declaração de inconstitucionalidade com efeito exclusivamente pro futuro (Cf. a propósito, Sesma, El Precedente, cit., p. 174 s). De resto, assinale-se que, antes do advento da Lei nº 9.868, de 1999, talvez fosse o STF, muito provavelmente, o único órgão importante de jurisdição constitucional a não fazer uso, de modo expresso, da limitação de efeitos na declaração de inconstitucionalidade. Não só a Suprema Corte americana (caso Linkletter v. Walker), mas também uma série expressiva de Cortes Constitucionais e Cortes Supremas adotam a técnica da limitação de efeitos (Cf. v.g. Corte Constitucional austríaca (Constituição, art. 140), a Corte Constitucional alemã (Lei Orgânica, § 31, 2 e 79, 1), a Corte Constitucional espanhola (embora não expressa na Constituição, adotou, desde 1989, a técnica da declaração de inconstitucionalidade sem a pronúncia da nulidade. Cf. Garcia de Enterría, Justicia Constitucional, cit., p. 5), a Corte Constitucional portuguesa (Constituição, art. 282, n. 4), o Tribunal de Justiça da Comunidade Européia (art.174, 2 do Tratado de Roma), o Tribunal Europeu de Direitos Humanos (caso Markx, de 13 de junho de 1979. Cf. Siqueira Castro, Carlos Roberto. Da Declaração de Inconstitucionalidade e seus efeitos em face das Leis nº 9.868 e 9882/99, in: Sarmento, Daniel, O Controle de Constitucionalidade e a Lei 9.868/99 (organizador), Rio de Janeiro, 2001)).

No que interessa para a discussão da questão em apreço, ressalte-se que o modelo difuso não se mostra incompatível com a doutrina da limitação dos efeitos.

Sem dúvida, afigura-se relevante no sistema misto brasileiro o significado da decisão limitadora tomada pelo Supremo Tribunal Federal no controle abstrato de normas sobre os julgados proferidos pelos demais juízes e tribunais no sistema difuso.

O tema relativo à compatibilização de decisões nos modelos concreto e abstrato não é exatamente novo e foi suscitado, inicialmente, na Áustria, tendo em vista os reflexos da decisão da Corte Constitucional sobre os casos concretos que deram origem ao incidente de inconstitucionalidade (1920-1929). Optou-se ali por atribuir efeito ex tunc excepcional à repercussão da decisão de inconstitucionalidade sobre o caso concreto (Constituição austríaca, art. 140 , n. 7, 2a. parte).

No direito americano, o tema poderia assumir feição delicada tendo em vista o caráter incidental ou difuso do sistema, isto é, modelo marcadamente voltado para a defesa de posições subjetivas. Todavia, ao contrário do que se poderia imaginar, não é rara a pronúncia de inconstitucionalidade sem atribuição de eficácia retroativa, especialmente nas decisões judiciais que introduzem alteração de jurisprudência (prospective overruling). Em alguns casos, a nova regra afirmada para decisão aplica-se aos processos pendentes (limited prospectivity); em outros, a eficácia ex tunc exclui-se de forma absoluta (pure prospectivity). Embora tenham surgido no contexto das alterações jurisprudenciais de precedentes, as prospectivity têm integral aplicação às hipóteses de mudança de orientação que leve à declaração de inconstitucionalidade de uma lei antes considerada constitucional (Cf. Medeiros, A Decisão de Inconstitucionalidade, cit., p. 743).

A prática da prospectivity, em qualquer de suas versões, no sistema de controle americano, demonstra, pelo menos, que o controle incidental não é incompatível com a idéia da limitação de efeitos na decisão de inconstitucionalidade.

Há de se reconhecer que o tema assume entre nós peculiar complexidade tendo em vista a inevitável convivência entre os modelos difuso e direto. Quais serão, assim, os efeitos da decisão ex nunc do Supremo Tribunal Federal, proferida in abstracto, sobre as decisões já proferidas pelas instâncias afirmadoras da inconstitucionalidade com eficácia ex tunc?

Um argumento que pode ser suscitado diz respeito ao direito fundamental de acesso à justiça, tal como já argüido no direito português, afirmando-se que haveria a frustração da expectativa daqueles que obtiveram o reconhecimento jurisdicional do fundamento de sua pretensão (Cf. Medeiros, A Decisão de Inconstitucionalidade, cit., p. 746).


A propósito dessa objeção, Rui Medeiros apresenta as seguintes respostas:

“– É sabido, desde logo, que existem domínios em que a restrição do alcance do julgamento de inconstitucionalidade não é, por definição, susceptível de pôr em causa esse direito fundamental (v.g., invocação do nº 4 do art. 282 para justificar a aplicação da norma penal inconstitucional mais favorável ao argüído do que a norma repristinada);

— Além disso, mostra-se claramente claudicante a representação do direito de acção judicial como um direito a uma sentença de mérito favorável, tudo apontando antes no sentido de que o artigo 20 da Constituição não vincula os tribunais a ‘uma obrigação-resultado (procedência do pedido) mas a uma mera obrigação-meio, isto é, a encontrar uma solução justa e legal para o conflito de interesse entre as partes’;

— Acresce que, mesmo que a limitação de efeitos contrariasse o direito de acesso aos tribunais, ela seria imposta por razões jurídico-constitucionais e, por isso, a solução não poderia passar pela absoluta prevalência do interesse tutelado pelo art. 20 da Constituição, postulando ao invés uma tarefa de harmonização entre os diferentes interesse em conflito;

— Finalmente, a admissibilidade de uma limitação de efeitos na fiscalização concreta não significa que um tribunal possa desatender, com base numa decisão puramente discricionária, a expectativa daquele que iniciou um processo jurisdicional com a consciência da inconstitucionalidade da lei que se opunha ao reconhecimento da sua pretensão. A delimitação da eficácia da decisão de inconstitucionalidade não é fruto de ‘mero decisionismo’ do órgão de controlo. O que se verifica é tão-somente que, à luz do ordenamento constitucional no seu todo, a pretensão do autor à não-aplicação da lei desconforme com a Constituição não tem, no caso concreto, fundamento.” (Cf. Medeiros, A Decisão de Inconstitucionalidade, cit., p. 746-747).

Essas colocações têm a virtude de demonstrar que a declaração de inconstitucionalidade in concreto também se mostra passível de limitação de efeitos. A base constitucional dessa limitação – necessidade de um outro princípio que justifique a não-aplicação do princípio da nulidade – parece sugerir que, se aplicável, a declaração de inconstitucionalidade restrita revela-se abrangente do modelo de controle de constitucionalidade como um todo. É que, nesses casos, tal como já argumentado, o afastamento do princípio da nulidade da lei assenta-se em fundamentos constitucionais e não em razões de conveniência. Se o sistema constitucional legitima a declaração de inconstitucionalidade restrita no controle abstrato, esta decisão poderá afetar, igualmente, os processos do modelo concreto ou incidental de normas. Do contrário, poder-se-ia ter inclusive um esvaziamento ou uma perda de significado da própria declaração de inconstitucionalidade restrita ou limitada.

A questão tem relevância especial no direito português, porque, ao lado do modelo abstrato de controle, de perfil concentrado, adota a Constituição um modelo concreto de perfil incidental à semelhança do sistema americano ou brasileiro. Trata-se de herança do sistema adotado pela Constituição portuguesa de 1911.

É claro que, nesse contexto, tendo em vista os próprios fundamentos legitimadores da restrição de efeitos, poderá o Tribunal declarar a inconstitucionalidade com efeitos limitados, fazendo, porém, a ressalva dos casos já decididos ou dos casos pendentes até um determinado momento (v.g., até a decisão in abstracto). É o que ocorre no sistema português, onde o Tribunal Constitucional ressalva, freqüentemente, os efeitos produzidos até à data da publicação da declaração de inconstitucionalidade no Diário da República ou, ainda, acrescenta no dispositivo que são excetuadas aquelas situações que estejam pendentes de impugnação contenciosa (Cf. Medeiros, A Decisão de Inconstitucionalidade, cit., p. 748).

Essa orientação afigura-se integralmente aplicável ao sistema brasileiro.

Assim, pode-se entender que se o STF declarar a inconstitucionalidade restrita, sem qualquer ressalva, essa decisão afeta os demais processos com pedidos idênticos pendentes de decisão nas diversas instâncias. Os próprios fundamentos constitucionais legitimadores da restrição embasam a declaração de inconstitucionalidade com eficácia ex nunc nos casos concretos. A inconstitucionalidade da lei há de ser reconhecida a partir do trânsito em julgado. Os casos concretos ainda não transitados em julgado hão de ter o mesmo tratamento (decisões com eficácia ex nunc) se e quando submetidos ao STF.

É verdade que, tendo em vista a autonomia dos processos de controle incidental ou concreto e de controle abstrato, entre nós, mostra-se possível um distanciamento temporal entre as decisões proferidas nos dois sistemas (decisões anteriores, no sistema incidental, com eficácia ex tunc e decisão posterior, no sistema abstrato, com eficácia ex nunc). Esse fato poderá ensejar uma grande insegurança jurídica. Daí parecer razoável que o próprio STF declare, nesses casos, a inconstitucionalidade com eficácia ex nunc na ação direta, ressalvando, porém, os casos concretos já julgados ou, em determinadas situações, até mesmo os casos sub judice, até a data de ajuizamento da ação direta de inconstitucionalidade. Essa ressalva assenta-se em razões de índole constitucional, especialmente no princípio da segurança jurídica. Ressalte-se aqui que, além da ponderação central entre o princípio da nulidade e outro princípio constitucional, com a finalidade de definir a dimensão básica da limitação, deverá a Corte fazer outras ponderações, tendo em vista a repercussão da decisão tomada no processo de controle in abstracto nos diversos processos de controle concreto.


Dessa forma, tem-se, a nosso ver, uma adequada solução para o difícil problema da convivência entre os dois modelos de controle de constitucionalidade existentes no direito brasileiro, também no que diz respeito à técnica de decisão.

Aludida abordagem responde a uma outra questão intimamente vinculada a esta. Trata-se de saber se o STF poderia, ao apreciar recurso extraordinário, declarar a inconstitucionalidade com efeitos limitados.

Não parece haver dúvida de que, tal como já exposto, a limitação de efeito é um apanágio do controle judicial de constitucionalidade, podendo ser aplicado tanto no controle direto quanto no controle incidental.

A limitação de efeitos no Direito brasileiro antes de 1988

Observe-se ainda que, na jurisprudência do STF pode-se identificar uma tímida tentativa, levada a efeito em 1977, no sentido de, com base na doutrina de Kelsen e em concepções desenvolvidas no direito americano, abandonar a teoria da nulidade em favor da chamada teoria da anulabilidade para o caso concreto.

Em verdade, no caso específico, considerou o Relator, Leitão de Abreu, que a matéria não comportava a aplicação da doutrina restritiva, pois, ao celebrar o negócio jurídico, o recorrido não tomara em consideração a regra posta no ato legislativo declarado inconstitucional (RTJ 82, p. 795/6). Assim, parece claro que toda argumentação desenvolvida por Leitão de Abreu, na espécie, não passa de obiter dictum.

Segundo essa concepção, a lei inconstitucional não poderia ser considerada nula, porque, tendo sido editada regularmente, gozaria de presunção de constitucionalidade, e sua aplicação continuada produziria conseqüências que não poderiam ser olvidadas. A lei inconstitucional não seria, portanto, nula ipso jure, mas apenas anulável. A declaração de inconstitucionalidade teria, assim, caráter constitutivo. Da mesma forma que o legislador poderia dispor sobre os efeitos da lei inconstitucional, seria facultado ao Tribunal reconhecer que a lei aplicada por longo período haveria de ser considerada como fato eficaz, apto a produzir conseqüências pelo menos nas relações jurídicas entre pessoas privadas e o Poder Público. Esse seria também o caso se, com a cassação de um ato administrativo, se configurasse uma quebra da segurança jurídica e do princípio da boa-fé (RE 79.343, Rel. Min. Leitão de Abreu, RTJ n. 82, p. 795).

É interessante registrar a síntese da argumentação desenvolvida por Leitão de Abreu:

“Hans Kelsen, enfrentando o problema, na sua General Theory of Law and State, inclina-se pela opinião que dá pela anulabilidade, não pela nulidade da lei inconstitucional. Consigna ele, em nota que figura à p. 160, desse livro: The void ab initio theory is not generally accepted.(Cf. for instance Chief Justice Hughes in Chicot County Drainage District v. Baxter State Bank, 308, U. S. 371 (1940)). The best formulation of the problem is to be found in Wellington et al. Petitioners, 16 Piock. 87 (Mass., 1834), at 96: ‘Perhaps, however, it may be well doubted whether a formal act of legislation can ever with strict legal propriety be said to be void; It seems more consistent with the nature of the subject, and the principles apliccable to analogous cases, to treat it as voidable’. Com base nessa orientação jurisprudencial, escreve o famoso teórico do direito: ‘A decisão tomada pela autoridade competente de que algo que se apresenta como norma é nulo ab initio, porque preenche os requisitos da nulidade determinados pela ordem jurídica, é um ato constitutivo; possui um efeito legal definido; sem esse ato e antes dele o fenômeno em questão não pode ser considerado ‘nulo’. Donde não se tratar de decisão ‘declaratória’, não constituindo, como se afigura, declaração de nulidade: é uma verdadeira anulação, uma anulação com força retroativa, pois se faz mister haver legalmente existente a que a decisão se refira. Logo o fenômeno em questão não pode ser algo nulo ab initio, isto é, o não ser legal. É preciso que esse algo seja considerado como uma força anulada com força retroativa pela decisão que a declarou nula ab initio’ (Ob. cit., p. 161). Acertado se me afigura, também, o entendimento de que se não deve ter como nulo ab initio ato legislativo que entrou no mundo jurídico munido de presunção de validade, impondo-se, em razão disso, enquanto não declarado inconstitucional, à obediência pelos destinatários dos seus comandos. Razoável é a inteligência, a meu ver, de que se cuida, em verdade de ato anulável, possuindo caráter constitutivo a decisão que decreta nulidade. Como, entretanto, em princípio, os efeitos dessa decisão operam retroativamente, não se resolve, com isso, de modo pleno, a questão de saber se é mister haver como delitos do orbe jurídico atos ou fatos verificados em conformidade com a norma que haja sido pronunciada como inconsistente com a ordem constitucional. Tenho que procede a tese, consagrada pela corrente discrepante, a que se refere o Corpus Juris Secundum, de que a lei inconstitucional é um fato eficaz, ao menos antes da determinação de inconstitucionalidade, podendo ter conseqüências que não é lícito ignorar. A tutela da boa-fé exige que, em determinadas circunstâncias, notadamente quando, sob a lei ainda não declarada inconstitucional, se estabeleceram relações entre o particular e o poder público, se apure, prudencialmente, até que ponto a retroatividade da decisão, que decreta a inconstitucionalidade, pode atingir, prejudicando-o, o agente que teve por legítimo o ato e, fundado nele, operou na presunção de que estava procedendo sob o amparo do direito objetivo” (RE 79.343, Rel. Min. Leitão de Abreu, RTJ n. 82, p. 791/795).


Essa posição não provocou qualquer mudança no entendimento anterior relativo à nulidade ipso jure (RE 93.356, Rel. Min. Leitão de Abreu, RTJ 97, p. 1.369). E, em verdade, é possível até que não fosse apta a provocar qualquer mudança. É que o próprio relator, Leitão de Abreu, ao julgar o RE 93.356, em 24 de março de 1981, destacou, verbis:

“Nos dois casos, a tese por mim sustentada pressupunha a existência de situação jurídica formalmente constituída, com base em ato praticado, de boa-fé, sob a lei que só posteriormente veio a ser declarada inconstitucional. Ora, como assinala, com precisão o parecer da Procuradoria-Geral da República, não é esse o caso dos autos, pois que o poder público não chegou a reconhecer ao recorrente o direito ao cômputo do tempo de serviço, a que reporta”.

Orientação semelhante já havia sido adotada no caso mais famoso, tendo realçado que não havia falar-se de proteção de boa-fé, pois restara claro que, ao concluir o negócio jurídico, não tomara o recorrido em consideração a regra posta no ato legislativo posteriormente declarado inconstitucional (RE 79.343, Rel. Min. Leitão de Abreu, RTJ 82, p. 791 (795/796)).

Assim, talvez seja lícito dizer que Leitão de Abreu limitou-se a propor uma reflexão sobre o tema da limitação dos efeitos, no caso concreto, a ser aplicada em alguma questão apropriada. Nessa parte, as considerações por ele trazidas equivalem a simples obiter dicta. Ressalte-se, porém, que, se aceita a tese esposada por Leitão, ter-se-ia a possibilidade de limitação de efeitos da decisão no próprio controle incidental ou da decisão in concreto. Em outras palavras, o tribunal poderia declarar a inconstitucionalidade, incidentalmente, com eficácia restrita, o que daria ensejo à aplicação da norma inconstitucional no caso concreto. Tanto quanto é possível depreender da argumentação desenvolvida por Leitão de Abreu, a opção por uma declaração de inconstitucionalidade com efeito limitado decorreria de critérios de conveniência ou de política judiciária, tal como admitido no direito americano.

Diferentemente da posição externada por Leitão de Abreu, entendo que o princípio da nulidade enquanto cláusula não-escrita continua a ter plena aplicação entre nós.

Não se nega, pois, o caráter de princípio constitucional ao princípio da nulidade da lei inconstitucional. Entende-se, porém, que tal princípio não poderá ser aplicado nos casos em que se revelar absolutamente inidôneo para a finalidade perseguida (casos de omissão; exclusão de benefício incompatível com o princípio da igualdade), bem como nas hipóteses em que a sua aplicação pudesse trazer danos para o próprio sistema jurídico constitucional (grave ameaça à segurança jurídica).

Assim, configurado eventual conflito entre o princípio da nulidade e o princípio da segurança jurídica, que, entre nós, tem status constitucional, a solução da questão há de ser, igualmente, levada a efeito em um processo de complexa ponderação.

Desse modo, em muitos casos, há de se preferir a declaração de inconstitucionalidade com efeitos restritos à insegurança jurídica de uma declaração de nulidade, como demonstram os múltiplos exemplos do direito comparado e do nosso direito.

A aceitação do princípio da nulidade da lei inconstitucional não impede, porém, que se reconheça a possibilidade de adoção, entre nós, de uma declaração de inconstitucionalidade alternativa. É o que demonstra a experiência do direito comparado, acima referida. Ao revés, a adoção de uma decisão alternativa é inerente ao modelo de controle de constitucionalidade amplo, que exige, ao lado da tradicional decisão de perfil cassatório com eficácia retroativa, também decisões de conteúdo outro, que não importem, necessariamente, na eliminação direta e imediata da lei do ordenamento jurídico.

Acentue-se, desde logo, que, no direito brasileiro, jamais se aceitou a idéia de que a nulidade da lei importaria na eventual nulidade de todos os atos que com base nela viessem a ser praticados. Embora a ordem jurídica brasileira não disponha de preceitos semelhantes aos constantes do § 79 da Lei do Bundesverfassungsgericht, que prescreve a intangibilidade dos atos não mais suscetíveis de impugnação, não se deve supor que a declaração de nulidade afete, entre nós, todos os atos praticados com fundamento na lei inconstitucional. É verdade que o nosso ordenamento não contém regra expressa sobre o assunto, aceitando-se, genericamente, a idéia de que o ato fundado em lei inconstitucional está eivado, igualmente, de iliceidade (Cf., a propósito, RMS 17.976, Rel. Min. Amaral Santos, RTJ 55, p. 744). Concede-se, porém, proteção ao ato singular, em homenagem ao princípio da segurança jurídica, procedendo-se à diferenciação entre o efeito da decisão no plano normativo (Normebene) e no plano do ato singular (Einzelaktebene) mediante a utilização das chamadas fórmulas de preclusão (cf. Ipsen, Jörn, Rechtsfolgen der Verfassungswidrigkeit von Norm und Einzelakt, Baden-Baden, 1980, p. 266 e s. Ver, também, Mendes, Gilmar, Jurisdição Constitucional, São Paulo, 1999, p. 271).


Assim, os atos praticados com base na lei inconstitucional que não mais se afigurem suscetíveis de revisão não são afetados pela declaração de inconstitucionalidade.

Vislumbra-se uma exceção expressa a esse entendimento na sentença condenatória penal, uma vez que aqui inexiste prazo, fixado pela legislação ordinária, para a propositura da revisão. Nos termos do art. 621 do Código de Processo Penal, a revisão pode ser proposta a qualquer tempo se a sentença condenatória for contrária a texto expresso da lei penal. Esse fundamento abrange, inequivocamente, a sentença penal condenatória proferida com base na lei inconstitucional (HC 45.232, Rel. Min. Themístocles Cavalcanti, RTJ 44, p. 322 e s).

Essa constatação mostra também que a preservação dos efeitos dos atos praticados com base na lei inconstitucional passa por uma decisão do legislador ordinário. É ele quem define, em última instância, a existência e os limites das fórmulas de preclusão, fixando ipso jure os próprios limites da idéia de retroatividade contemplada no princípio da nulidade.

Como ressaltado, a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal procede à diferenciação entre o plano da norma (Normebene) e o plano do ato concreto (Einzelaktebene) também para excluir a possibilidade de anulação deste em virtude da inconstitucionalidade do ato normativo que lhe dá respaldo.

Admite-se que uma das causas que pode dar ensejo à instauração da ação rescisória no âmbito do processo civil — violação a literal disposição de lei (art. 485, V, do CPC) — contempla, também, a inconstitucionalidade de uma lei na qual se fundou o juiz para proferir a decisão transitada em julgado (RMS 17.976, Rel. Min. Amaral Santos, RTJ 55, p. 744 e s.; RE 86.056, Rel. Min. Rodrigues Alckmin, DJ 01.07.77).

Todavia, a rescisão de sentença proferida com base em uma lei considerada inconstitucional somente pode ser instaurada dentro do prazo de dois anos, a contar do trânsito em julgado da decisão (CPC, arts. 485 e 495).

No modelo consagrado pelo § 79, (3), da Lei do Bundesverfassungsgericht, admite-se a possibilidade de que a execução de sentença calcada em lei inconstitucional seja impugnada mediante embargos à execução (CPC alemão, § 767).

Inicialmente, a impugnação de sentença trânsita em julgado, no sistema brasileiro, somente haveria de se verificar por via de ação rescisória.

Em julgado de 13 de setembro de 1968, explicitou-se essa orientação:

“A suspensão da vigência da lei por inconstitucionalidade torna sem efeito todos os atos praticados sob o império da lei inconstitucional. Contudo, a nulidade da decisão judicial transitada em julgado só pode ser declarada por via de ação rescisória, sendo impróprio o mandado de segurança (…)”(RMS 17.076, Rel. Min. Amaral Santos, RTJ nº 55, p. 744).

Esse entendimento foi reiterado posteriormente, enfatizando-se que a execução judicial de uma decisão transitada em julgado não pode ser obstada com a oposição de embargos, uma vez que a nulidade dessa decisão deve ser aferida do âmbito da ação rescisória (RE 86.056, Rel. Min. Rodrigues Alckmin, DJ 01.01.77). Em acórdão mais recente, ressaltou-se que “a execução (…) está amparada no respeito à coisa julgada, que se impõe ao Juízo executante, e que impede que, sobre ela (e até que venha a ser regularmente desconstituída a sentença que lhe deu margem), tenha eficácia o acórdão posterior desta Corte” (RCL 148, Rel. Min. Moreira Alves, RTJ 109, p. 463).

A Medida Provisória nº 2.180-35, de 24 de agosto de 2001, introduziu regra segundo a qual, para os fins de execução judicial, “considera-se inexigível o título judicial fundado em lei ou ato normativo declarados inconstitucionais pelo Supremo Tribunal Federal ou em aplicação ou interpretação tidas por incompatíveis com a Constituição Federal”. (art. 741, parágrafo único do CPC; art. 836, parágrafo único, CLT).

Assim sendo, ressalvada a hipótese de uma declaração de inconstitucionalidade com limitação de efeitos (art. 27, Lei nº 9.868, de 1999), a declaração de inconstitucionalidade (com eficácia ex tunc) em relação a sentenças já transitadas em julgado poderá ser invocada, eficazmente, tanto em ação rescisória, como nos embargos à execução.

Às vezes, invoca-se diretamente fundamento de segurança jurídica para impedir a repercussão da decisão de inconstitucionalidade sobre as situações jurídicas concretas.

Nessa linha tem-se asseverado a legitimidade dos atos praticados por oficiais de justiça investidos na função pública por força de lei posteriormente declarada inconstitucional. No RE 79.620, da relatoria de Aliomar Baleeiro, declarou-se ser “válida a penhora feita por agentes do Executivo, sob as ordens dos juízes, nos termos da lei estadual de São Paulo s/nº, de 3.12.71, mormente se nenhum prejuízo disso adveio para o executado” (DJ 13.12.74; Cf., também, RE 78.809, Rel. Min. Aliomar Baleeiro, DJ 11.10.74). Orientação semelhante foi firmada no RE 78.594, da relatoria de Bilac Pinto, assentando-se que, “apesar de proclamada a ilegalidade da investidura do funcionário público na função de oficial de justiça, em razão da declaração de inconstitucionalidade da lei estadual que autorizou tal designação, o ato por ele praticado é válido” (DJ 04.11.74).


Em outros termos, razões de segurança jurídica podem obstar à revisão do ato praticado com base na lei declarada inconstitucional.

Registre-se ainda, por amor à completude, que a jurisprudência do STF contempla, ainda, uma peculiaridade no que se refere aos efeitos da decisão que declara a inconstitucionalidade da lei concessiva de vantagens a segmentos do funcionalismo, especialmente aos magistrados. Anteriormente já havia o STF afirmado que “a irredutibilidade dos vencimentos dos magistrados garante, sobretudo, o direito que já nasceu e que não pode ser suprimido sem que sejam diminuídas as prerrogativas que suportam o seu cargo” (RE 105.789, Rel. Min. Carlos Madeira, RTJ 118, p. 301).

Por essa razão, tal garantia superaria o próprio efeito ex tunc da declaração de inconstitucionalidade da norma (RE 105.789, Rel. Min. Carlos Madeira, RTJ 118, p. 301). Decisão publicada em 08.04.1994, também relativa à remuneração de magistrados, retrata entendimento no sentido de que a “retribuição declarada inconstitucional não é de ser devolvida no período de validade inquestionada da lei declarada inconstitucional — mas tampouco paga após a declaração de inconstitucionalidade” (RE 122.202, Rel. Min. Francisco Rezek, DJ 08.04.94).

Essa tentativa, um tanto quanto heterodoxa, de preservar as vantagens pecuniárias já pagas a servidores públicos, com base numa lei posteriormente declarada inconstitucional, parece carecer de fundamentação jurídica consistente em face da doutrina da nulidade da lei inconstitucional. Ela demonstra, ademais, que o Tribunal, na hipótese, acabou por produzir uma mitigação de efeitos com base em artifícios quase que exclusivamente retóricos. Mais apropriado seria reconhecer que, nos casos referidos, a retroatividade plena haveria de ser afastada com fundamento no princípio da segurança jurídica, que, como se sabe, também entre nós é dotado de hierarquia constitucional.

A limitação de efeitos após o advento da Constituição de 1988

Não se afirme que, sob a Constituição de 1988, o STF teria rejeitado a possibilidade de adotar a técnica de decisão com efeitos limitados.

De forma direta, a questão da limitação dos efeitos foi colocada perante o STF, inicialmente na ADI 513, proposta contra dispositivo da Lei nº 8.134, de 1990, que instituía índice de correção aplicável a imposições tributárias anteriormente fixadas (art. 11, parágrafo único). Célio Borja cuidou, fundamentalmente, de indagar acerca da eventual ocorrência de “excepcional interesse social” que legitimasse o afastamento do princípio da nulidade da lei inconstitucional, verbis:

“Alegação de só poder ter efeito ex nunc a decisão que nulifica lei que instituiu ou aumentou tributo auferido pelo tesouro e já aplicado em serviços ou obras públicas. Sua inaplicabilidade à hipótese dos autos que não cogita, exclusivamente, de tributo já integrado ao patrimônio público, mas, de ingresso futuro a ser apurado na declaração anual do contribuinte e recolhido posteriormente. Também não é ela atinente a eventual restituição de imposto pago a maior, porque está prevista em lei e terá seu valor reduzido pela aplicação de coeficiente menos gravoso.

Não existe ameaça iminente à solvência do tesouro, à continuidade dos serviços públicos ou a algum bem política ou socialmente relevante, que justifique a supressão, in casu, do efeito próprio, no Brasil, do juízo de inconstitucionalidade da norma, que é a sua nulidade. É de repelir-se, portanto, a alegada ameaça de lacuna jurídica ameaçadora (bedrohliche Rechtslucke)”. (ADI 513, Rel. Min. Célio Borja, RTJ 141, p. 739).

Nesses termos, ainda que Célio Borja tenha, no caso concreto sob exame, negado a ocorrência dos pressupostos aptos a afastar a incidência do princípio da nulidade da lei inconstitucional, não negou ele a legitimidade de proceder-se a uma tal ponderação.

É verdade, na ADI 1.102, julgada em 5 de outubro de 1995, Maurício Corrêa tornou manifesta sua preocupação com o problema:

“Creio não constituir-se afronta ao ordenamento constitucional exercer a Corte política judicial de conveniência, se viesse a adotar sistemática, caso por caso, para a aplicação de quais os efeitos que deveriam ser impostos, quando, como nesta hipótese, defluísse situação tal a recomendar, na salvaguarda dos superiores interesses do Estado e em razão da calamidade dos cofres da Previdência Social, se buscasse o dies a quo, para a eficácia dos efeitos da declaração de inconstitucionalidade, a data do deferimento da cautelar.

(…)

Ressalvada a minha posição pessoal quanto aos efeitos para a eficácia da decisão que, em nome da conveniência e da relevância da segurança social, seriam a partir da concessão da cautelar deferida em 9 de setembro de 1994, e acolhendo a manifestação do Procurador-Geral da República, julgo procedentes as Ações Diretas de Inconstitucionalidade nos 1.102-2, 1.108-1 e 1.116-2, para, confirmando a liminar concedida pela maioria, declarar a inconstitucionalidade das expressões ‘empresários’ e ‘autônomos’ contidas no inciso I do artigo 22 da Lei no 8.212, de 25 de julho de 1991.” (ADI 1.102, Rel. Min. Maurício Corrêa, DJ 17.11.95)


É expressivo, a propósito da limitação dos efeitos, o voto de Sepúlveda Pertence, verbis:

“De logo – a observação é de Garcia de Enterría – a conseqüente eficácia ex tunc da pronúncia de inconstitucionalidade gera, no cotidiano da Justiça Constitucional, um sério inconveniente, que é o de levar os tribunais competentes, até inconscientemente, a evitar o mais possível a declaração de invalidade da norma, à vista dos efeitos radicais sobre o passado.

O caso presente, entretanto, não é adequado para suscitar a discussão.

O problema dramático da eficácia ex tunc da declaração de inconstitucionalidade surge, quando ela vem surpreender uma lei cuja validade, pelo menos, era ‘dada de barato’, e de repente, passados tempos, vem a Suprema Corte a declarar-lhe a invalidez de origem. Não é este o caso: a incidência da contribuição social sobre a remuneração de administradores, autônomos e avulsos vem sendo questionada desde a vigência da Lei 7.787, e creio que, nas vias do controle difuso, poucas terão sido as decisões favoráveis à Previdência Social. (…)

Sou em tese favorável a que, com todos os temperamentos e contrafortes possíveis e para situações absolutamente excepcionais, se permita a ruptura do dogma da nulidade ex radice da lei inconstitucional, facultando-se ao Tribunal protrair o início da eficácia erga omnes da declaração. Mas, como aqui já se advertiu, essa solução, se generalizada, traz também o grande perigo de estimular a inconstitucionalidade”. (ADI 1.102, Rel. Min. Maurício Corrêa, DJ 17.11.95).

Entendeu-se, portanto, quando do julgamento da ADI 1.102, que, embora aceitável em tese a discussão sobre a restrição de efeitos, o caso não se mostrava adequado, tendo em vista que modelo legal adotado vinha sendo sistematicamente impugnado no Judiciário, inclusive no âmbito do próprio Supremo Tribunal Federal.

Observe-se que, em decisão de 23 de março de 1994, no julgamento do HC 70.514 (Rel. Sydney Sanches, DJ 27.06.97), teve o STF oportunidade de ampliar a já complexa tessitura das técnicas de decisão no controle de constitucionalidade, admitindo que lei que concedia prazo em dobro para a Defensoria Pública era de ser considerada constitucional enquanto esses órgãos não estivessem devidamente habilitados ou estruturados.

Assim, o Relator, Sydney Sanches, ressaltou que a inconstitucionalidade do § 5º do art. 5º da Lei nº 1.060, de 5 de fevereiro de 1950, acrescentado pela Lei nº 7.871, de 8 de novembro de 1989, não haveria de ser reconhecida, no ponto em que confere prazo em dobro, para recurso, às Defensorias Públicas, “ao menos até que sua organização, nos Estados, alcance o nível da organização do respectivo Ministério Público” (HC 70.514, Rel. Min. Sydney Sanches, DJ 27.06.97).

Da mesma forma pronunciou-se Moreira Alves, como se pode depreender da seguinte passagem de seu voto, no julgamento do HC 70.514:

“A única justificativa, Sr. Presidente, que encontro para esse tratamento desigual em favor da Defensoria Pública em face do Ministério Público é a de caráter temporário: a circunstância de as Defensorias Públicas ainda não estarem, por sua recente implantação, devidamente aparelhadas como se acha o Ministério Público.

Por isso, para casos como este, parece-me deva adotar-se a construção da Corte Constitucional alemã no sentido de considerar que uma lei, em virtude das circunstâncias de fato, pode vir a ser inconstitucional, não o sendo, porém, enquanto essas circunstâncias de fato não se apresentarem com a intensidade necessária para que se tornem inconstitucionais.

Assim, a lei em causa será constitucional enquanto a Defensoria Pública, concretamente, não estiver organizada com a estrutura que lhe possibilite atuar em posição de igualdade com o Ministério Público, tornando-se inconstitucional, porém, quando essa circunstância de fato não mais se verificar”.

Afigura-se, igualmente, relevante destacar o voto de Sepúlveda Pertence, que assim feriu a questão no mesmo Habeas Corpus:

“No Habeas Corpus 67.930, quando o Tribunal afirmou a subsistência, sob a Constituição de 88, da legitimação de qualquer do povo, independentemente de qualificação profissional e capacidade postulatória, para a impetração de habeas corpus, tive a oportunidade de realçar essa situação de fato da Defensoria Pública.

E, por isso, ao acompanhar o eminente Relator acentuei que, dada essa pobreza dos serviços da Assistência Judiciária, e até que ela venha a ser superada, a afirmação da indispensabilidade do advogado, para requerer habeas corpus, que seria o ideal, viria, na verdade, a ser um entrave de fato, à salvaguarda imediata da liberdade.

Agora, em situação inversa, também esse mesmo estado de fato me leva, na linha dos votos até aqui proferidos, com exceção do voto do Ministro Marco Aurélio — a quem peço vênia —, a acompanhar o eminente Relator e rejeitar a prejudicial de inconstitucionalidade rebus sic stantibus”.


Ressalvou-se, portanto, de forma expressa, a possibilidade de que o Tribunal pudesse vir a declarar a inconstitucionalidade da disposição em apreço, uma vez que a afirmação sobre a legitimidade da norma assentava-se em uma circunstância de fato que se modifica no tempo.

Posteriormente, em 19 de maio de 1998, no Recurso Extraordinário Criminal nº 147.776, da relatoria de Sepúlveda Pertence, o tema voltou a ser agitado de forma pertinente. A ementa do acórdão revela, por si só, o significado da decisão para atual evolução das técnicas de controle de constitucionalidade:

“Ministério Público: Legitimação para promoção, no juízo cível, do ressarcimento do dano resultante de crime, pobre o titular do direito à reparação: C. Pr. Pen. art. 68, ainda constitucional (cf. RE 135.328): processo de inconstitucionalização das leis.

1. A alternativa radical da jurisdição constitucional ortodoxa entre a constitucionalidade plena e a declaração de inconstitucionalidade ou revogação por inconstitucionalidade da lei com fulminante eficácia ex tunc faz abstração da evidência de que a implementação de uma nova ordem constitucional não é um fato instantâneo, mas um processo, no qual a possibilidade de realização da norma da Constituição — ainda quanto teoricamente não se cuide de preceito de eficácia limitada — subordina-se muitas vezes a alterações da realidade fáctica que a viabilizem.

2. No contexto da Constituição de 1988, a atribuição anteriormente dada ao Ministério Público pelo art. 68 C. Pr. Penal — constituindo modalidade de assistência judiciária — deve reputar-se transferida para a Defensoria Pública: essa, porém, para esse fim, só se pode considerar existente, onde e quando organizada, de direito e de fato, nos moldes do art. 134 da própria Constituição e da lei complementar por ela ordenada: até que — na União ou em cada Estado considerado —, se implemente essa condição de viabilização da cogitada transferência constitucional de atribuições, o art. 68 C. Pr. Pen. será considerado ainda vigente: é o caso do Estado de São Paulo, como decidiu o plenário no RE 135.328.” (DJ 19.06.98)

Revela-se expressiva, para a análise do tema em discussão nestes autos, a seguinte passagem do voto de Pertence:

“O caso mostra, com efeito, a inflexível estreiteza da alternativa da jurisdição constitucional ortodoxa, com a qual ainda jogamos no Brasil: consideramo-nos presos ao dilema entre a constitucionalidade plena e definitiva da lei ou a declaração de sua inconstitucionalidade com fulminante eficácia ex tunc; ou ainda, na hipótese de lei ordinária pré-constitucional, entre o reconhecimento da recepção incondicional e a da perda de vigência desde a data da Constituição.

Essas alternativas radicais — além dos notórios inconvenientes que gera — faz abstração da evidência de que a implementação de uma nova ordem constitucional não é um fato instantâneo, mas um processo, no qual a possibilidade da realização da norma da Constituição — ainda quando teoricamente não se cuide de um preceito de eficácia limitada —, subordina-se muitas vezes a alterações da realidade fáctica que a viabilizem.

É tipicamente o que sucede com as normas constitucionais que transferem poderes e atribuições de uma instituição preexistente para outra criada pela Constituição, mas cuja implantação real pende não apenas de legislação infraconstitucional, que lhe dê organização normativa, mas também de fatos materiais que lhe possibilitem atuação efetiva.

Isso o que se passa com a Defensoria Pública, no âmbito da União e no da maioria das Unidades da Federação.

Certo, enquanto garantia individual do pobre e correspondente dever do Poder Público, a assistência judiciária alçou-se ao plano constitucional desde o art. 141, § 35, da Constituição de 1946 e subsistiu nas cartas subseqüentes (1967, art. 150, § 32; 1969, art. 153, § 32) e na Constituição em vigor, sob a forma ampliada de ‘assistência jurídica integral’ (art. 5.o, LXXIV).

Entretanto, é inovação substancial do texto de 1988 a imposição à União e aos Estados da instituição da Defensoria Pública, organizada em carreira própria, com membros dotados da garantia constitucional da inamovibilidade e impedidos do exercício privado da advocacia.

O esboço constitucional da Defensoria Pública vem de ser desenvolvido em cores fortes pela LC 80, de 12.1.94, que, em cumprimento do art. 134 da Constituição, ‘organiza a Defensoria Pública da União, do Distrito Federal e dos Territórios e prescreve normas gerais para sua organização nos Estados’. Do diploma se infere a preocupação de assimilar, quanto possível, o estatuto da Defensoria e o dos seus agentes aos do Ministério Público: assim, a enumeração dos mesmos princípios institucionais de unidade, indivisibilidade e independência funcional (art. 3.o); a nomeação a termo, por dois anos, permitida uma recondução, do Defensor Público Geral da União (art. 6.o) e do Distrito Federal (art. 54); a amplitude das garantias e prerrogativas outorgadas aos Defensores Públicos, entre as quais, de particular importância, a de ‘requisitar de autoridade pública e de seus agentes exames, certidões, perícias, vistorias, diligências, processos, documentos, informações, esclarecimentos e providências necessárias ao exercício de suas atribuições’ (arts. 43, X; 89, X e 128, X).


A Defensoria Pública ganhou, assim, da Constituição e da lei complementar, um equipamento institucional incomparável — em termos de adequação às suas funções típicas —, ao dos agentes de outros organismos públicos — a exemplo da Procuradoria de diversos Estados —, aos quais se vinha entregando individualmente, sem que constituíssem um corpo com identidade própria, a atribuição atípica da prestação de assistência judiciária aos necessitados.

Ora, no direito pré-constitucional, o art. 68 C. Pr. Pen. — ao confiá-lo ao Ministério Público —, erigiu em modalidade específica e qualificada de assistência judiciária o patrocínio em juízo da pretensão reparatória do lesado pelo crime.

Estou em que, no contexto da Constituição de 1988, essa atribuição deva efetivamente reputar-se transferida do Ministério Público para a Defensoria Pública: essa, porém, para esse fim, só se pode considerar existente, onde e quando organizada, de direito e de fato, nos moldes do art. 134 da própria Constituição e da lei complementar por ela ordenada: até que — na União ou em cada Estado considerado —, se implemente essa condição de viabilização da cogitada transferência constitucional de atribuições, o art. 68 C. Pr. Pen. será considerado ainda vigente.

O caso concreto é de São Paulo, onde, notoriamente, não existe Defensoria Pública, persistindo a assistência jurídica como tarefa atípica de Procuradores do Estado.

O acórdão — ainda não publicado — acabou por ser tomado nesse sentido por unanimidade, na sessão plenária de 1.6.94, com a reconsideração dos votos antes proferidos em contrário.

Ora, é notório, no Estado de São Paulo a situação permanece a mesma considerada no precedente: à falta de Defensoria Pública instituída e implementada segundo os moldes da Constituição, a assistência judiciária continua a ser prestada pela Procuradoria-Geral do Estado ou, na sua falta, por advogado”.

Fica evidente, pois, que o STF deu um passo significativo rumo à flexibilização das técnicas de decisão no juízo de controle de constitucionalidade, introduzindo, ao lado da fórmula apodítica da declaração de inconstitucionalidade com equivalência de nulidade, o reconhecimento de um estado imperfeito, insuficiente para justificar a declaração de ilegitimidade da lei ou bastante para justificar a sua aplicação provisória. Expressiva nesse sentido é a observação de Pertence, ao destacar que “o caso mostra, com efeito, a inflexível estreiteza da alternativa da jurisdição constitucional ortodoxa, com a qual ainda jogamos no Brasil: consideramo-nos presos ao dilema entre a constitucionalidade plena e definitiva da lei ou a declaração de sua inconstitucionalidade com fulminante eficácia ex tunc; ou ainda, na hipótese de lei ordinária pré-constitucional, entre o reconhecimento da recepção incondicional e a da perda de vigência desde a data da Constituição.” Daí observar, ainda, os reflexos dessa orientação no plano da segurança jurídica, ao enfatizar que essas “alternativas radicais — além dos notórios inconvenientes que gera — faz abstração da evidência de que a implementação de uma nova ordem constitucional não é um fato instantâneo, mas um processo, no qual a possibilidade da realização da norma da Constituição — ainda quando teoricamente não se cuide de um preceito de eficácia limitada —, subordina-se muitas vezes a alterações da realidade fáctica que a viabilizem” (RECrim 147.776, Rel. Min. Sepúlveda Pertence, DJ 19.06.98).

É inegável que a opção desenvolvida pelo STF inspira-se diretamente no uso que a Corte Constitucional alemã faz do “apelo ao legislador”, especialmente nas situações imperfeitas ou no “processo de inconstitucionalização”. Nessas hipóteses, avalia-se, igualmente, que, tendo em vista razões de segurança jurídica, a supressão da norma poderá ser mais danosa para o sistema do que a sua preservação temporária.

Não há negar, ademais, que aceita a idéia da situação “ainda constitucional”, deverá o Tribunal, se tiver que declarar a inconstitucionalidade da norma, em outro momento, fazê-lo com eficácia restritiva ou limitada. Em outros termos, o “apelo ao legislador” e a declaração de inconstitucionalidade com efeitos limitados ou restritos estão muito próximos do prisma conceitual ou ontológico.

Essas considerações demonstram que razões de segurança jurídica podem revelar-se aptas a justificar a não-aplicação do princípio da nulidade da lei inconstitucional.

Nesses termos, resta evidente que a norma contida no art. 27 da Lei 9.868, de 1999, tem caráter fundamentalmente interpretativo, desde que se entenda que os conceitos jurídicos indeterminados utilizados – segurança jurídica e excepcional interesse social – se revestem de base constitucional. No que diz respeito à segurança jurídica, parece não haver dúvida de que encontra expressão no próprio princípio do Estado de Direito consoante, amplamente aceito pela doutrina pátria e alienígena. Excepcional interesse social pode encontrar fundamento em diversas normas constitucionais. O que importa assinalar é que, consoante a interpretação aqui preconizada, o princípio da nulidade somente há de ser afastado se se puder demonstrar, com base numa ponderação concreta, que a declaração de inconstitucionalidade ortodoxa envolveria o sacrifício da segurança jurídica ou de outro valor constitucional materializável sob a forma de interesse social (Cf., a propósito do direito português, Medeiros, A Decisão de Inconstitucionalidade, cit., p. 716).


Observe-se que sequer o argumento de que a existência de uma decisão alternativa acabaria por debilitar a aplicação da norma constitucional há de ter acolhida aqui. Como observa Garcia de Enterría, se não se aceita o pronunciamento prospectivo, não se declara a inconstitucionalidade de um número elevado de leis, permitindo que se crie um estado de greater restraint (Cf., Garcia de Enterría, Justicia Constitucional, cit., p. 13). Tudo indica, pois, que é a ausência de uma técnica alternativa à simples declaração de nulidade que pode enfraquecer a aplicação da norma constitucional.

Portanto, o princípio da nulidade continua a ser a regra também no direito brasileiro. O afastamento de sua incidência dependerá de um severo juízo de ponderação que, tendo em vista análise fundada no princípio da proporcionalidade, faça prevalecer a idéia de segurança jurídica ou outro princípio constitucionalmente relevante manifestado sob a forma de interesse social relevante. Assim, aqui, como no direito português, a não-aplicação do princípio da nulidade não se há de basear em consideração de política judiciária, mas em fundamento constitucional próprio.

O caso concreto

No caso em tela, observa-se que eventual declaração de inconstitucionalidade com efeito ex tunc ocasionaria repercussões em todo o sistema vigente, atingindo decisões que foram tomadas em momento anterior ao pleito que resultou na atual composição da Câmara Municipal: fixação do número de vereadores, fixação do número de candidatos, definição do quociente eleitoral. Igualmente, as decisões tomadas posteriormente ao pleito também seriam atingidas, tal como a validade da deliberação da Câmara Municipal nos diversos projetos e leis aprovados.

Anoto que, a despeito do caráter de cláusula geral ou conceito jurídico indeterminado que marca o art. 282 (4), da Constituição portuguesa, a doutrina e jurisprudência entendem que a margem de escolha conferida ao Tribunal para a fixação dos efeitos da decisão de inconstitucionalidade não legitima a adoção de decisões arbitrárias, estando condicionada pelo princípio de proporcionalidade.

A propósito, Rui Medeiros assinala que as três vertentes do princípio da proporcionalidade têm aplicação na espécie (adequação, necessidade e proporcionalidade em sentido estrito).

Peculiar relevo assume a proporcionalidade em sentido estrito na visão de Rui Medeiros:

“A proporcionalidade nesta terceira vertente tanto pode ser perspectivada pelo lado da limitação de efeitos como pelo lado da declaração de inconstitucionalidade. Tudo se reconduz, neste segundo caso, a saber se à luz do princípio da proporcionalidade as conseqüências gerais da declaração de inconstitucionalidade são ou não excessivas. Impõe-se, para o efeito, ponderação dos diferentes interesses em jogo, e, concretamente, o confronto entre interesses afectado pela lei inconstitucional e aqueles que hipoteticamente seriam sacrificados em conseqüência da declaração de inconstitucionalidade com eficácia retroactiva e repristinatória.

Todavia, ainda quanto a esta terceira vertente do princípio da proporcionalidade, não é constitucionalmente indiferente perspectivar o problema das conseqüências da declaração de inconstitucionalidade do lado da limitação de efeitos ou do lado da própria declaração de inconstitucionalidade. A declaração de inconstitucionalidade com eficácia ex tunc tem, manifestamente prioridade de aplicação. Todo o sistema de fiscalização de constitucionalidade português está orientado para a expurgação de normas inconstitucionais. É, aliás, significativa a recusa de atribuição de força obrigatória geral às decisões de não inconstitucionalidade. Não basta, pois, afirmar que “o Tribunal Constitucional deve fazer um juízo de proporcionalidade, cotejando o interesse na reafirmação da ordem jurídica — que a eficácia ex tunc da declaração plenamente potencia – com o interesse na eliminação do factor de incerteza e de insegurança – que a retroactividade, em princípio, acarreta (Acórdão do Tribunal Constitucional nº 308/93)”. É preciso acrescentar que o Tribunal Constitucional deve declarar a inconstitucionalidade com força obrigatória geral e eficácia retroactiva e repristinatória, a menos que uma tal solução envolva o sacrifício excessivo da segurança jurídica, da eqüidade ou de interesse público de excepcional relevo” (Medeiros, A Decisão de Inconstitucionalidade, cit., p. 703/704).

Na espécie, não parece haver dúvida de que um juízo rigoroso de proporcionalidade recomenda a preservação do modelo legal existente na atual legislatura. É um daqueles casos notórios, em que a eventual decisão de caráter cassatório acabaria por distanciar-se ainda mais da vontade constitucional.

A propósito, recorde-se a decisão do Bundesverfassungsgericht de 22 de maio de 1963, que revela exemplo clássico do processo de inconstitucionalização (Verfassungswidrigwerden) em virtude de uma mudança nas relações fáticas. Ressaltou-se, nesse acórdão, que, em virtude da significativa alteração na estrutura demográfica das diferentes unidades federadas, a divisão dos distritos eleitorais, realizada em 1949 e preservada nas sucessivas leis eleitorais, não mais atendia às exigências demandadas do princípio de igualdade eleitoral (BVerfGE 16, 130 s.) (Lei Fundamental, art. 38). O Tribunal absteve-se, porém, de pronunciar a inconstitucionalidade sob a alegação de que tal situação não podia ser constatada na data da promulgação da lei (setembro de 1961) (BVerfGE 16, 130 (141/142)). O Bundesverfassungsgericht logrou infirmar, assim, a ofensa ao art. 38 da Lei Fundamental. Conclamou-se, porém, o legislador “a empreender as medidas necessárias à modificação dos distritos eleitorais, com a redução da discrepância existente para patamares toleráveis”.

Essa exortação do Tribunal foi atendida com a promulgação da Lei de 14 de fevereiro de 1964 (Gesetz zur Änderung des Bundeswahlgesetzes).

Assinale-se que esse caso estava marcado por peculiar dilema. Caso o Bundesverfassungsgericht tivesse declarado a inconstitucionalidade da lei que disciplinava a divisão dos distritos eleitorais, ter-se-ia de reconhecer a invalidade das últimas eleições parlamentares e, por conseguinte, a ilegitimidade do Parlamento e do próprio Governo. Nessa hipótese, inexistiria órgão com legitimidade para promulgar uma nova lei eleitoral, uma vez que a legislatura anterior já se havia encerrado (Lei Fundamental, art. 39, parágrafo 1º, 2º período) e a disposição sobre o estado de necessidade legislativa (Gesetzgebungsnotstand) não se mostrava aplicável à situação em apreço (Lei Fundamental, art. 81) (Rupp v. Brüneck, Darf das Bundesverfassungsgericht an den Gesetzgeber appellieren?, 1970, p. 372; Schlaich, Klaus, Das Bundesverfassungsgericht, 1985, p. 182; Gusy, Christoph, Parlamentarischer Gesetzgeber und Bundesverfassungsgericht, Berlim, 1985, p. 211).

Na espécie, concedo o efeito suspensivo ao recurso extraordinário, ad referendum do Pleno, e determino sejam os autores reintegrados aos cargos de vereadores da Câmara Municipal de São João da Boa Vista, S.P., até o julgamento final da questão.

Oficiem-se, com urgência, ao Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo e ao Presidente da Câmara Municipal de São João da Boa Vista, S.P.

Publique-se.

Brasília, 6 de abril de 2004.

Ministro GILMAR MENDES

Relator

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