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Jucesp é competente para fiscalizar atividade de leiloeiro

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6 de abril de 2004, 15h59

A Junta Comercial do Estado de São Paulo (Jucesp) é competente para tratar da fiscalização e da punição da atividade dos leiloeiros no Estado. Essa competência foi reafirmada em julgamento da questão, pelo plenário da Junta.

A decisão, unânime, foi baseada no voto do relator Alberto Murray Neto, da 3ª Turma da Juscesp. Em seu relatório, Murray Neto questionou: “Se as Juntas Comerciais têm o condão de registrar e cancelar as matrículas dos leiloeiros, quem tem o poder/dever de fiscalizá-los na esfera administrativa?” Em seguida, reafirmou a competência do órgão.

O plenário também deliberou que passará a ser livre o número de leiloeiros em São Paulo. Ou seja, desde que o cidadão preencha os requisitos legais para exercer tal ofício, poderá fazê-lo. Nesse caso, a Jucesp não pode limitar um número máximo de leiloeiros.

O presidente da Jucesp, Marcelo Manhães de Almeida, deve assinar Portaria tornando as regras oficiais na próxima semana.

Leia a íntegra do relatório:

RELATÓRIO

Coube a mim, na qualidade de Vogal da Junta Comercial do Estado de São Paulo (“JUCESP”), relatar o presente processo, no intuito de analisar a competência ou não das Juntas Comerciais com relação ao exercício da fiscalização e punição dos leiloeiros.

Assim, vejamos:

A profissão dos leiloeiros no Brasil está regulamentada pelo Decreto Nº 21.981/32. Esse Decreto estabeleceu, distintamente, que cabia aos órgãos do Registro do Comércio (a) matricular e cancelar os registros desses profissionais, e (b) fiscalizar sua atividade profissional.

A Lei Nº 4.726/65 (que regulamentou os registros públicos no Brasil até a edição da Lei Nº 8.934/94, que revogou completamente a anterior), convalidou a competência das Juntas Comerciais com relação à atividade dos leiloeiros, no que tange a matrícula, o cancelamento e a fiscalização desse tipo de profissional.

Portanto, enquanto vigorou a lei de registros públicos mercantis de 1.965, não pairavam dúvidas sobre a atribuição legal das Juntas Comerciais quanto aos leiloeiros.

Controvérsias surgiram quando foi promulgada a Lei Nº 8.934/95 que, como visto acima, revogou completamente a Lei Nº 4.726/65.

A Lei de 1.995 trata da questão dos leiloeiros em seu artigo 32. Esse diploma legal, embora ratifique que cabe às Juntas Comerciais matricular e cancelar os registros de leiloeiros, nada dispõe sobre a competência desses mesmos órgãos sobre fiscalizá-los e puni-los, no âmbito administrativo.

Se as Juntas Comerciais têm o condão de registrar e cancelar as matrículas dos leiloeiros, quem tem o poder/dever de fiscalizá-los na esfera administrativa?

Aqueles que negam a competência das Juntas Comerciais para fiscalizar a atividade dos leiloeiros baseiam sua argumentação, em linhas gerais, no fato de que os artigos 17 e 18 do Decreto 21.981/32 foram tacitamente derrogados pelo artigo 52 da Lei Nº 4.726/65. Nesse passo, também alegam que, na medida em que a Lei Nº 8.934/94, revogou, expressa e completamente a Lei Nº 4.726/65, a competência das Juntas Comerciais sobre os leiloeiros seria, unicamente, aquela que encontra respaldo no artigo 32 do supra citado Diploma-Legal, regulamentado pelo Decreto Nº 1.800/96. Isto é, segundo esse entendimento, cabe às Juntas Comerciais, unicamente, proceder à matrícula dos leiloeiros e cancelá-las. Fiscalizar e impor sanções a esses profissionais não seria competência dos Órgãos do Registro do Comércio.

Data máxima vênia, em minha opinião, não é esse o melhor entendimento da questão.

A questão da hierarquia das leis nem sempre é vista de forma adequada. Muito se lê que leis federais se sobrepõem às leis estaduais e essas, por sua vez, às leis municipais. Ou, ainda, que leis federais ordinárias posteriores revogam, pura e simplesmente, leis ordinárias anteriores, quando tratarem de matérias afins, sempre e quando isso ocorrer.

No entanto, essa argumentação é deveras simplista. Nem sempre a correlação entre as leis se dá dessa maneira. Nem sempre isso ocorre.

No direito brasileiro, as únicas normas jurídicas que, seguramente, prevalecem sobre as demais, são aquelas que emanam da Constituição Federal. Essas, sim, têm primazia sobre todas as outras. Quanto às demais, normas jurídicas chamadas infraconstitucionais, não pode simplesmente prevalecer o dogma de que há entre elas uma hierarquia absoluta, estática, sob pena de se estar incorrendo em equívoco. Miguel Reale assevera, referindo-se à hierarquia das leis, que “Essa exclusão, ou primazia, somente existe em função dos distintos campos de competência.” (in Introdução à Ciência do Direito, Miguel Reale, editora Saraiva). Na mesma obra, o Emérito Jurista ensina que as normas jurídicas “não são fatos isolados, mas sim modelos dinâmicos que se implicam e se correlacionam, dispondo-se num sistema, no qual umas são subordinantes e outras subordinadas, umas primárias e outras secundárias, umas principais e outras subsidiárias ou complementares, segundo ângulos e perspectivas que se refletem nas diferenças de qualificação verbal.”


Ora, o Decreto 21.981/32 tratou, unicamente, de inserir no ordenamento jurídico nacional a figura do leiloeiro, bem como regulamentá-la, estabelecendo, entre outras coisas, que as Juntas Comerciais são competentes para matricular, fiscalizar, punir e cancelar a matrícula desse tipo de profissional.

Já as Leis Nº 4.726/65 e 8.934/96 tratam, exclusivamente, da questão dos registros públicos empresariais. Não há, portanto, entre elas, sobreposição de competências. Versam sobre matérias distintas.

Quanto à natureza de suas disposições, as leis podem ser substantivas ou adjetivas (processuais).

André Franco Montoro assim definiu as leis quanto à natureza de suas disposições:

“Leis substantivas são as que definem relações jurídicas ou criam direitos. É o caso das disposições do Código Civil, Comercial ou Penal.

Leis adjetivas ou processuais – que abrangem o Direito Judiciário – são as que regulam o modo ou o processo para fazer cumprir as leis substantivas.

Como diz JOÃO MENDES, “leis substantivas são aquelas que podem existir, ou ao menos ser concebidas, sem outras leis que tendam a fazê-las observar; leis adjetivas são aquelas que não podem existir ou ser concebidas, sem outras leis que elas tendem a fazer observar” (in Lições Preliminares de Direito, André Franco Montoro, editora Revista dos Tribunais).

Em suma, as leis substantivas são aquelas que servem para inserir em nosso ordenamento jurídico o direito material, que independe da existência de qualquer outra lei anterior.

O Decreto 21.981/32 é uma lei de disposição substantiva, que foi editada para inserir a profissão do leiloeiro no ordenamento jurídico brasileiro e estabelecer os mecanismos do exercício e fiscalização dessa profissão.

Por outro lado, tanto a Lei Nº 4.726/65, bem como aquela que a revogou por completo, a Lei Nº 8.934/94, são leis que servem para estabelecer mecanismos de exercício de direitos materiais já existentes, exclusivamente relacionados aos atos do registro do comércio. São, portanto, Diplomas Legais de natureza adjetiva.

Leis adjetivas não servem para revogar leis substantivas.

Por isso, nem a Lei Nº 4.726/65 e nem, posteriormente, a Lei Nº 8.934 revogaram os dispositivos do Decreto Nº 21.981/32.

A coexistência de ambos os diplomas legais é possível, devendo, assim, ocorrer.

Ademais, se resta pacificado que cabe às Juntas Comerciais matricular e cancelar a matrícula dos leiloeiros, parece-me óbvio que também é competência dos órgãos do registro empresarial fiscalizar a atividade destes.

Não faria qualquer sentido lógico-jurídico dar às Juntas Comerciais o poder de matricular e, principalmente, cancelar as matrículas dos leiloeiros, se não tivessem elas, também, competência legal para fiscalizá-los.

A lei não contém palavras inúteis. Por que poderiam as Juntas Comerciais legalmente cancelar as matrículas dos leiloeiros, sem que pudessem elas, concomitantemente, fiscalizá-los e puni-los?

Se tivesse sido a intenção do legislador afastar das Juntas Comerciais a questão dos leiloeiros, assim o teria feito por completo.

Numa primeira análise, cancelar uma matrícula de leiloeiro pode ocorrer se o próprio leiloeiro assim desejar. E isso é óbvio, pois ninguém é obrigado a exercer em caráter perpétuo determinada profissão. É um direito do interessado solicitar o cancelamento de sua matrícula, por livre e espontânea vontade. Não haveria necessidade de disposição legal para isso. Se alguém não deseja mais ser leiloeiro, basta assim querer. Não é necessário que uma lei “autorize” as Juntas Comerciais a “cancelar” os registros de um determinado leiloeiro que não mais deseja praticar o seu ofício.

Por isso, o alcance da lei que deu competência às Juntas Comerciais para “cancelar a matrícula” dos leiloeiros não se referiu à hipótese acima mencionada, qual seja, em que o próprio leiloeiro deseja afastar-se de sua atividade. Repito, para isso não seria necessária disposição de lei.

Quando a lei confere às Juntas Comerciais competência legal para “cancelar a matrícula” dos leiloeiros, essa prerrogativa, claramente, refere-se a uma outra hipótese. Com toda a certeza, refere-se à possibilidade que os órgãos do Poder Público (Executivo) têm de declarar nulo, dar sem efeito, suprimir, eliminar, excluir do quadro de leiloeiros um profissional que tenha infringido normas de procedimentos e de aplicação de penas aplicáveis aos leiloeiros e dispostas no Decreto Nº 21.981/32, que nunca foram modificadas por nenhum outro Diploma-Legal.

E se a lei, inequivocamente, confere às Juntas Comerciais o poder de excluir e eliminar do quadro de leiloeiros determinado profissional por infração ao Decreto de 1.932, é porque têm elas, logicamente, o poder e o dever de fiscalizá-los.


Repito, a lei não contém palavras inúteis. E, portanto, a lei não diria que as Juntas Comerciais têm o poder de cancelar as matrículas dos leiloeiros se, no seu bojo, não tivesse também inserida a competência para fiscalizar. É patente que somente pode cancelar (excluir, eliminar, afastar, suprimir), quem pode fiscalizar.

Embora largamente cediço, faz-se necessário repisar que a interpretação perfunctória da lei, levando-se em conta exclusivamente os seus aspectos meramente gramaticais, não é a mais adequada. Corre-se o risco de não aplicá-la corretamente; de não dar à norma jurídica o alcance que ela contém, desejado pelo legislador. Por isso, nunca é demais reiterar que a interpretação da lei deve sempre ir além dos seus aspectos formais, não há de ser simplesmente lógica, mas teleológica. E é exatamente isso que se deve fazer no caso da competência legal das Juntas Comerciais no tocante à questão dos leiloeiros.

Essas são as lições de Tércio Sampaio Ferraz Júnior a esse respeito: “Já as técnicas teleológicas, que parte das conseqüências para o sistema, procuram evitar possíveis conflitos e incompatibilidades, à medida que elas se apresentam, repensando as noções e as normas em função das situações. Deste modo, enquanto a atitude analítica procura soluções olhando as situações a partir das normas, a atitude teleológica visa o mesmo objetivo, olhando as normas a partir das situações. Ressalta, ainda o mesmo Mestre que “… Assim, em nome da busca de uma solução mais eqüitativa para um conflito, é possível reinterpretar um elemento do conteúdo de uma norma não à letra, mas num sentido alargado ou restrito, conforme as exigências da decisão justa. … Pois bem: a coordenação de todas essas técnicas dentro de uma Dogmática de estilo hermenêutico, se faz, justamente, em função de uma teleologia que controla o sistema jurídico, tendo em vista as conseqüências. Há um sentido normativo a ser determinado, o qual implica a captação dos fins para os quais a norma é construída. A percepção dos fins não é imanente a cada norma tomada isoladamente, mas exige uma visão ampliada da norma dentro do ordenamento. A concepção do ordenamento como um todo…” (in Função Social da Dogmática Jurídica, Tércio Sampaio Ferraz Júnior, editora Revista dos Tribunais) (todos os negritos são meus).

O ato de cancelar é o último passo, o mais grave, contundente, é a decisão derradeira decorrente um devido processo legal a que todos os cidadãos têm direito antes de sofrer qualquer punição legal.

Não existe punição sem prévio processo. Portanto, não existe o poder de cancelar a matrícula dos leiloeiros por parte das Juntas Comerciais, se antes não tiver havido o devido processo legal, tendo sido concedido ao leiloeiro o direito de ampla defesa. Ora, se houve punição (cancelamento da matrícula), é porque houve processo. Se houve processo, é porque alguém, com competência legal para fazê-lo, o instaurou. E se esse ente instaurou o processo, é porque, logicamente, tem competência legal não somente para punir o leiloeiro, mas, antes disso, para fiscalizá-lo.

Diz o Professor Alexandre de Moraes: “O devido processo legal tem como colorários a ampla defesa e o contraditório, que deverão ser assegurados aos litigantes, em processo judicial ou administrativo, e aos acusados em geral, conforme texto constitucional expresso (art. 5o, LV). Assim, embora no campo administrativo não exista necessidade de tipificação estrita que subsuma rigorosamente a conduta à norma, a capitulação do ilícito administrativo não pode ser tão aberta a ponto de impossibilitar o direito de defesa, pois nenhuma penalidade poderá ser imposta, tanto no campo judicial, quanto nos campos administrativos ou disciplinares, sem a necessária amplitude de defesa (in Direito Constitucional, Alexandre de Moraes, editora Atlas) (os negritos são meus).

Portanto, não poderão as Juntas Comerciais exercer a faculdade prevista em lei de punir os leiloeiros (cancelar suas matrículas), sem antes instaurar o devido processo legal. E se instauram o processo, é porque têm o poder de fiscalização. Não pode ser outra a interpretação. O poder outorgado ao Órgão Público de cancelar (eliminar), dissociado do poder de fiscalizar é inconcebível, juridicamente ilógico. Um não existe sem o outro.

Que também não se argumente que na falta de disposição legal específica para o tema, não podem, as Juntas Comerciais, instaurar processos administrativos contra leiloeiros.

Ora, se a JUCESP tem plena competência legal para fiscalizar e, administrativamente, punir os leiloeiros, na falta de norma específica, impõe-se o princípio da inexcusabilidade jurídica. Isto é “a autoridade administrativa e judicial devem resolver todos os casos propostos na esfera de sua competência.” (in Decadência e Prescrição no Direito Tributário, Eurico Marcos Diniz de Santi, editora Max Limond).

Portanto, na falta de norma específica para que a Jucesp defina o desenrolar dos processos administrativos de fiscalização e eventual punição dos leiloeiros, a administração pode (e, aliás, tem o dever de) criar suas próprias regras para tal, baseando-se no ordenamento jurídico vigente, especialmente, mas não se limitando, nas leis que tratam do registro mercantil do País e, também, no Decreto Estadual que instituiu o Regimento Interno da Junta Comercial do Estado de São Paulo. O que não pode, em absoluto, é a administração pública excusar-se de exercer as atribuições claríssimas que a lei lhe impõe.

Finalizando, cabe ressaltar que as decisões do Departamento Nacional do Registro do Comércio (“DNRC”) não são vinculantes. São apenas orientativas. As Juntas Comerciais têm liberdade para julgar os casos que são trazidos à sua apreciação de maneira como achar mais apropriada. O DNRC é, apenas, no que tange a essa questão, uma esfera superior no âmbito do julgamento administrativo, que poderá ou não reformar a decisão das Juntas Comerciais. Mas, repita-se e enfatize-se, as decisões do DNRC não são vinculantes. Absurdo seria dizer o contrário, pois se esse suposto vínculo não existe sequer nas esferas judiciais, não seria nessa esfera administrativa específica que a chamada “súmula vinculante” deveria prevalecer. Aliás, é salutar que as Juntas Comerciais nem sempre julguem de acordo com a orientação prévia do DNRC. Esse confronto saudável de idéias promove o debate, fomenta a discussão e, inclusive, pode fazer com que o próprio DNRC reveja as suas posições.

Por fim, anexo à presente o excelente trabalho elaborado pelo Ilustre Advogado paulista, Dr. Gustavo Dean Gomes, cujo brilhantismo o faz merecedor de ser anexado a este processo.

Por tudo quanto foi exposto, concluo que permanecem válidas as regras que outorgam às Juntas Comerciais o poder legal de fiscalizar e, se for o caso, punir os leiloeiros.

Esse é o meu Relatório.

Sala das Sessões, 29 de março de 2004.

Alberto Murray Neto

Vogal

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