Conflito de terras

Somente lei não soluciona impasse de questões indígenas

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5 de abril de 2004, 10h17

A questão da posse e da demarcação das terras indígenas voltou a ser objeto de discussão especialmente em face da eclosão de vários conflitos e acirramento de outros em vários Estados de Federação, inclusive aqui em Mato Grosso do Sul.

São muitas e divergentes as opiniões a respeito dessa questão e cada um costuma apresentar a sua solução, mas quase sempre fundada no direito de propriedade, decorrente de uma titulação outorgada pelo Estado.

Penso que questão não deve ser enfrentada apenas com base no dispositivo constitucional que garante o direito de propriedade, pois isso além de não solucionar o impasse, certamente terá o condão de alimentar novos conflitos e acirrar aqueles já existentes.

A política integracionista que desde os primeiros momentos da descoberta do Brasil vem se tentando implementar no Brasil, tem sido fonte de equívocos e muitas injustiças são cometidas contra os indígenas, quase sempre tratados de maneira discriminatória, na medida em que historicamente o Estado, apesar de colocá-los sob regime de tutela(1), a eles não tem dado, como é seu dever, a devida assistência e proteção, o que tem originado muitos conflitos como aqueles pela posse e demarcação de suas terras, garantia constitucional até hoje não cumprida e que ao longo da história não tem passado de uma mera promessa do constituinte e do legislador. (2)

Os povos indígenas histórica e sistematicamente vêm sendo discriminados não apenas no Brasil(3), mais aqui especialmente(4).

Desde o início de sua intervenção nas Américas, os conquistadores e colonizadores tentaram destruir as culturas dos povos indígenas e transformar sua história a uma pré-história sem importância(5). Por conseguinte, a conquista do continente, na realidade foi uma conquista de riquezas. E para poder concretizar esse intento, os conquistadores e colonizadores tiveram que enfraquecer a resistência dos povos indígenas ocupando seus territórios e sua memória praticamente destruindo suas tradições, na medida em que os exploraram e até mesmo escravizaram a sua mão-de-obra, o que, diga-se de passagem, até hoje ocorre em algumas regiões, inclusive aqui no Brasil.

Com razão, portanto, Paulo Suess(6) ao afirmar que os primeiros colonizadores seguiram geograficamente os caminhos abertos pelos conquistadores qualificando o passado religioso dos povos indígenas de idolatria, enfermidade ou mentira dos demônios, com o evidente objetivo de destruir o passado histórico, as tradições e os valores culturais desses povos. Por isso, pode-se dizer, sem nenhum exagero, que para os povos indígenas, a conquista e a exploração de suas terras e de seu território pelos colonizadores não foi o começo de sua história – que começou 40 mil anos a.C. com os migrantes que vieram da Ásia para o continente americano –, mas uma nevasta “intervenção estrangeira” nesta história que foi agredida, saqueada, reduzida e praticamente destruída ao longo de 500 anos. Mas mesmo assim, ante tanta violência, graças a sua cultura sobrevivem, resistem contra a morte e lutam pela vida até hoje.

No Brasil, esse processo de conquista e destruição não foi e nem é diferente, bastando para se constatar esse fato, se vê o que foi feito com os indígenas aqui em Mato Grosso do Sul, despojados de suas terras, aldeiados ou colocados em pequenas reservas sem nenhum cuidado e respeito com a sua origem antropológica e identidade étnica ou cultural, passando-se a seguir a fase da exploração de sua mão-de-obra, inclusive com a participação de órgãos que deveriam tutelá-los, sem quaisquer direitos garantidos aos demais trabalhadores(7). Aliás, chegou-se mesmo a firmar “Pactos”, com participação de órgãos que deveriam dá proteção aos trabalhadores indígenas, que proclamavam expressamente a exclusão dos mesmos das normas de proteção do trabalho por conta exclusiva da identidade ou origem étnica desses trabalhadores, arregimentados nas reservas ou aldeias sem nenhum respeito às normas de proteção e fiscalização do trabalho indígena, o que constitui verdadeira afronta aos princípios albergados pela Suprema Carta, especialmente aqueles constantes dos arts. 5º, 231 e 232, bem como às Convenções 107, 111 e 169 da Organização Internacional do Trabalho, das quais o Brasil é signatário, demonstrando assim, o descaso e o desrespeito aos direitos desses trabalhadores.

Em que pese encontrar-se expresso na Constituição brasileira que o Brasil constitui um Estado Democrático de Direito tendo como princípios fundamentais a não discriminação e a valorização social do trabalho, no campo da realidade prática, esses princípios nem sempre são observados ou sequer lembrados, inclusive por algumas decisões judiciais.

No que se refere à questão das terras indígenas o art. 22, da Lei 6.001, de 19 de dezembro de 1973, estabelece que cabe aos indígenas a posse permanente das terras que habitam e o direito ao usufruto exclusivo das riquezas naturais e de todas as utilidades nelas existentes.


Essa garantia foi elevada à dignidade constitucional por força do art. 231 e seus §§ 1º e 2º do Texto de 1988, ao tempo em que, no art. 67, do ADCT, o constituinte concedeu à União o prazo de cinco anos para a conclusão da demarcação dessas terras.

Passados mais de quinze anos da promulgação da Carta, a determinação do constituinte simplesmente ainda não foi cumprida continuando a ser ignorada, o que tem motivado vários conflitos entre indígenas e aqueles que se valendo de um título de propriedade que lhes foi outorgado pelo Estado, passaram a ocupar várias dessas áreas ali produzindo, gerando riquezas e trabalho, inclusive para muitos trabalhadores indígenas. Estes, por sua vez, valendo-se da garantia legal e constitucional têm se apossados dessas áreas, muitas vezes com violência e destruição, outras tantas fomentados por movimentos sociais nem sempre as mais legítimas, para tentar forçar o cumprimento da garantia, o que deságua no Judiciário, colocando muitas vezes esse Poder em situação difícil, pois não dispõe de instrumentos legais eficazes para resolver esses conflitos históricos e de grande dimensão social.

É preciso, pois, que o Poder Executivo, responsável pelo cumprimento da garantia constitucional tome consciência do seu dever histórico no sentido de concretizar a demarcação das terras indígenas, evitando, assim, a eclosão de novos conflitos e o acirramento daqueles já existentes.

Entretanto, não pode perder vista que a terra – Pachamama, terra-mãe do aimará, da área andina –, não é apenas um meio de produção, de geração de riquezas a qualquer custo. Ao contrário, é um lugar da memória coletiva do povo, da sua história, do seu lazer e trabalho, onde celebra os seus rituais de vida e morte, especialmente de vida. Por isso, os povos indígenas, as sociedades indígenas autônomas, com sua cultura de subsistência, distinguem-se da sociedade nacional especialmente pela questão da terra. Pela origem da sua apropriação – posse primária, original, natural e não pelo título de compra e venda como equivocadamente afirmam alguns desavisados –, pelo uso prático – subsistência –, estrutural – propriedade coletiva – e pela visão religiosa – terra sagrada.

A terra para os povos indígenas, por ser um dom divino para todos, constitui um direito natural. Por isso, não se consideram – ao contrário daqueles que a têm em razão de uma titulação decorrente de um contrato de compra e venda –, proprietários de sua terra, mas posseiros coletivos na criação divina, por isso, para esse povos, na questão da terra convergem todas as questões parciais de sua libertação e resistência: as questões políticas, sociais, econômicas e religiosas.

A luta pela terra é um lugar privilegiado de uma evangelização integral e de uma solidariedade entre todos os oprimidos. Portanto, o alcance da luta dos povos indígenas pela terra vai muito além de meras reivindicações étnicas, não podendo ser visto pelo âmbito do direito de propriedade decorrente da titulação decorrente de um pacto de compra e venda, como até aqui tem sido vista pela sociedade e por algumas autoridades estatais responsáveis pela pacificação ou pelo menos pela resolução legal dos conflitos envolvendo indígenas e proprietários rurais. Trata-se, ao contrário, da instauração de uma nova lógica nas relações dos homens entre si e com a natureza, relações essas que não podem permitir, como de fato não permitem, fazer da terra-mãe de todos uma escrava, de mera fonte de geração de riqueza a qualquer custo em benefício de alguns, ou apenas daqueles que dispõe de um título outorgado pelo Estado, muitas vezes de forma ilegítima.

Assim, urge que o Estado, responsável constitucionalmente pela segurança e paz sociais, adote providências no sentido de pacificar os muitos conflitos hoje existentes pela terra, especialmente nas áreas em que esses conflitos envolvem indígenas e proprietários de terras que por força do preceito constitucional são consideradas terras indígenas. Porém, não é razoável aceitar-se a invasão, o vandalismos, a destruição do patrimônio daqueles que de boa-fé e pagando o preço estabelecido pelo Estado, receberam deste um título tornando a área adquirida socialmente produtiva, gerando riqueza e trabalho não apenas para si, mas também aqueles que para ele laboram.

É preciso alterar, urgentemente, a legislação de modo a permitir que a desapropriação das áreas de conflitos, quando admitida e obedecido o devido processo legal, seja antecedida de prévia e justa indenização não apenas das benfeitorias, mas também da própria área adquirida de boa-fé mediante um preço estabelecido pelo próprio Estado que, a bem da verdade, se não é o único, com certeza é o maior responsável por esses conflitos, na medida em que deixou de cumprir o seu dever constitucionalmente imposto.


Com certeza todos esses conflitos são fruto de uma história de conquista que ainda não terminou e parece está longe de chegar ao seu fim, pois a sociedade continua colonizadora, achando que certa pessoas, por pertencerem a esta ou aquela etnia são boas, superiores, civilizadas, “aculturadas”, enquanto alguns porque que se parecem conosco, porque usam roupas e conseguem falar o português porque a isso foram obrigados como única forma de sobrevierem, são considerados melhores que os outros que assim não se conduzem, portanto, civilizados. Porém, serão imediata e novamente tratados como “selvagens, violentos”, quando ousarem lutar pelos seus direitos, como se viu em várias manifestações escritas e verbas divulgadas pela mídia a respeito das ocupações de propriedades rurais por indígenas ocorridas em vários Estados da Federação, inclusive aqui em Mato Grosso do Sul, evidenciando o caráter ideológico, preconceituoso e discriminatório com que a questão das terra indígenas ainda é tratada em nosso País, o que evidentemente não está correto.

Precisamos refletir melhor sobre esta questão e resolvê-la de modo definitivo, pois sua relevância social não permite mais seja postergada em nome de interesses econômicos, da falta de recursos ou ainda de instrumentos legais. Cabe ao Executivo a missão constitucional de demarcar as terras indígenas para que todos possam conviver em harmonia com respeito aos direitos e as diferenças de cada um. É assim que funciona uma democracia. E proclamando-se o Brasil um Estado democrático e direito, não pode tangenciar ou violar esse postulado.

Notas de Rodapé

(1) Tutela essa que tem características específicas, pois é o próprio Estado quem impõe, por força de norma por ele mesmo ditada e por ele próprio exercida, ou como lembra Dalmo de Abreu Dallari, “no regime de tutela comum, a nomeação de um tutor se faz com a intervenção judicial e o Ministério Público fiscaliza o exercício da tutela, podendo, inclusive, pedir a destituição do tutor. No regime de tutela especial estabelecido para os índios não há a intervenção judicial, pois a própria lei já indicou o tutor, que é um órgão vinculado ao Poder Executivo Federal e cuja responsabilidade também escapa ao controle judicial (…). Desse modo, o exercício da tutela fica, inevitavelmente, condicionado a política indigenista do Poder Federal”. In: O Índio; sua capacidade jurídica e suas terras. Parecer apresentado à FUNAI em 09.09.78. São Paulo: 1978.

(2) De acordo com o disposto no art. 231 do Texto de 88, são reconhecidos aos índios os direitos originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam, cumprindo a União demarcá-las, estabelecendo o art. 67 do ADCT o prazo de cinco anos contado da promulgação da Carta, para que essa demarcação fosse concluída. Todavia, até o momento o comando constitucional continua simplesmente sendo ignorado pelo Poder Público. Essa omissão tem gerado novos e acirrado antigos conflitos entre indígenas e ocupantes de diversas áreas enquadradas na hipótese prevista no § 1º do aludido preceito constitucional, confirmando, assim, a omissão e o descaso do Estado para com a questão indígena e o desrespeito aos direitos desses povos. O direito do índio à terra em que vive é o princípio geral de direito ao qual se subordinam todas as demais normas relativas ao indígena do Brasil, inclusive aquelas que regulam as relações de trabalho com essa categoria de trabalhadores, pois é da terra que eles retiram o seu sustento. E esse princípio, entre nós, apesar de ter assento constitucional, tem se tornado impossível de implementação no campo da realidade em virtude de uma política integracionista de dominação e discriminação. O indigenismo em vigor tem nítido caráter de dominação colonialista e, nesse sentido, o País tem mantido práticas que ainda se justificam ideologicamente em um passado colonial de discriminação desses povos. COELHO DOS SANTOS, Silvio. Sociedades indígenas e dominação do Estado. In: O Índio perante o direito. COELHO DOS SANTOS, Silvio (Coord). Florianópolis: Editora da UFSC, 1982, p. 19.

(3) De acordo com José Carlos Moreira da Silva Filho (Da “invasão da América aos sistemas penais de hoje: o discurso da “inferioridade” latino-americana), os conquistadores espanhóis embora tenham falado até certo ponto bem dos índios, não o fizeram aos próprios índios, na medida em que sequer reconheciam a sua condição de sujeitos, a sua alteridade. Para ele, houve na verdade uma intencional e direcionada ação para a destruição dos índios. E essa ação foi executada com base em três tipos de estratégias: a) a primeira tentativa destruidora foi constituída pelo direto assassinato dos índios mediante guerra de massacre, como se vê da narração de Las Casas (Brevíssima relação da destruição das Índias: o paraíso destruído: a sangrenta história da conquista da América espanhola. Trad. Heraldo Barbuy, 5, ed. Porto Alegre: L&PM, 1991, p. 32); b) uma segunda estratégia de extermínio foi a escravidão. Assim – lembra o jurista –, além da matança direta, os índios tombaram também, e em muito maior número, sob a escravidão a que foram submetidos, inclusive no Brasil; e c) a terceira modalidade de ação destruidora, menos consciente, era a transmissão de doenças, que exterminou e ainda continua exterminando, uma quantidade incomensurável de índios. Lembra, ainda, que um dos motivos dessa atitude e que certamente continua em prática, aqui também no Brasil, foi e continua sendo, o desejo de enriquecimento, ou seja, a cobiça e a apropriação das riquezas das terras ocupadas pelos povos indígenas. In: WOLKMER, Antonio Carlos (Org.). Fundamentos de História do Direito. Belo Horizonte. Del Rey, 2002, p. 279-327.

(4) Entre nós, a tentativa de escravização dos índios, no início da colonização e lamentáveis episódios como a tentativa de impedir o Cacique Mário Juruna de ausentar-se do País para participar de Congresso Mundial sobre os direitos dos povos indígenas, no período de ditadura militar, e os inaceitáveis incidentes ocorridos por ocasião das comemorações dos 500 anos do descobrimento do Brasil ainda ecoam em nossas mentes a nos envergonhar perante as demais nações.

(5) SUESS, Paulo. Evangelizar a partir dos projetos históricos dos outros: ensaios de messiologia. São Paulo: Paulus, 1995, p. 19.

(6) SUESS, Paulo. Ob. cit, p. 22.

(7) O que ocorreu com os indígenas das reservas Jaguapirú e Bororó em Dourados e da Aldeia de Caarapó e Ambambai, em Mato Grosso do Sul é um exemplo vivo desse terrível fato. Nessas Reservas e Aldeias convivem indígenas de várias etnias com culturas, línguas e tradições diferentes, o que tem sido fonte de problemas sérios como suicídios de jovens e adolescentes, certamente provocados por vários fatores, mas também o decorrente do choque cultural.

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