Abril vermelho

Invasões propostas pelos Sem-Terra enfraquecem a reforma agrária

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5 de abril de 2004, 11h32

A ameaça de um “abril vermelho”, marcado por invasões de terras, produtivas ou não, feita pelo líder do movimento dos sem-terra João Pedro Stedile, constitui um equívoco político e estratégico que, acima de tudo, enfraquece a causa que pretende patrocinar.

Nenhum gesto reacionário seria tão eficaz quanto uma declaração desse teor, que assusta a sociedade, estimula os radicais do outro lado (os que não querem a reforma agrária) e ameaça a paz social. A Ordem dos Advogados do Brasil, sem se envolver em sectarismos ideológicos, tem sido historicamente solidária aos movimentos sociais.

Sua bandeira é a da justiça e da cidadania, sempre em busca de ampliação de direitos e inclusão social. A causa da reforma agrária tem, portanto, nosso apoio e já tivemos a oportunidade, no governo passado, de mediar, em momento de maior tensão política, negociação entre Estado e MST. Como operadores do direito, no entanto, partimos de uma convicção de teor dogmático: fora da lei não há salvação -é o caos e a violência, que em momento nenhum da história, aqui ou em qualquer parte, levaram a uma solução positiva.

Consideramos legítima a pressão política dos movimentos sociais sobre o Estado e até certo ponto compreensíveis alguns excessos verbais, no calor da polêmica. Mas mesmo esses excessos têm limite, e a incitação à violência o extrapola. Ignorar isso é repetir velhos erros do passado, que infelicitaram o país e o levaram a retrocessos lamentáveis. Há 40 anos, radicalismos do tipo perpetrado por João Pedro Stedile levaram o país a um golpe militar e a duas décadas de obscurantismo político. Já se passaram duas décadas do início da redemocratização e ainda estamos recolhendo os cacos daquele período.

O MST é uma entidade que expressa o anseio legítimo de milhões de trabalhadores rurais brasileiros por uma causa urgente, sempre depreciada pela elite governante. A reforma agrária já constava das prioridades do projeto de país intentado pelo patriarca da Independência, José Bonifácio de Andrada e Silva, há 182 anos. Ele propunha o fim da escravidão conjugado à reforma agrária, mas sua proposta foi vencida pelos interesses reacionários, dos grandes proprietários rurais, que mantiveram a escravidão por mais 66 anos e o modelo fundiário especulativo e concentracionista até os dias de hoje.

Ainda carregamos as cicatrizes políticas e sociais daquela trágica opção da elite governante brasileira. E o MST é um dos retratos mais nítidos dessa tragédia social. É inconcebível que, num país com as dimensões territoriais do Brasil, com imensas extensões inabitadas, haja luta por terras. Mas há. E a reforma agrária requer mais que a vontade política de distribuí-las. Há ritos legais a serem observados e há necessidade de recursos para assentar as famílias. Não basta dar terras.

É preciso proporcionar condições para que se tornem produtivas e rentáveis. E isso não tem o automatismo que alguns sugerem. Mas também não pode se perpetuar nos meandros burocráticos. As lideranças do MST conhecem bem esse processo. Têm o mérito de ter incluído a reforma agrária na agenda política do governo passado, levando o atual a mantê-la. Conseguiram a simpatia e o apoio da sociedade brasileira e não podem comprometê-los agora com gestos despropositados, que derivem para a ilegalidade. Se o fizerem, comprometem o patrimônio político que construíram.

Nosso apelo é para que não se desviem da lei. E nossa advertência à elite governante brasileira é a de que não é mais possível conter os anseios por mudanças na economia. Sem conteúdo social, a democracia é apenas abstração jurídica, e não o regime da maioria. Não enquanto ela, a maioria, continuar ao relento, à mercê de lideranças radicais, dispostas a destampar, num gesto súbito, a panela de pressão. Que o episódio sirva de reflexão a ambos os lados.

* Artigo publicado no jornal Folha de S. Paulo

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