Declínio geral

Três Poderes e agências de propaganda perderam limites éticos

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1 de abril de 2004, 20h00

Três fatos recentes indicam estar havendo um esgarçamento do tecido ético com o qual se costura a sociedade: o episódio do Zeca Pagodinho, a falsidade da propaganda das hortas familiares pelo governo e a afronta ao Supremo Tribunal Federal por alguns parlamentares membros da CPI da Pirataria.

Na luta publicitária entre cervejas, houve uma deslealdade. No caso, a um produto do qual se fazia promoção, com a escusa de ser um amor de verão. Tempos atrás, dizia-se, no litoral de São Paulo, que o amor de verão não subia a serra, por ser uma paixão efêmera, por natureza de curta duração. Não havia, contudo, deslealdade e muito menos movida por interesses comerciais, como se noticiou largamente na imprensa a respeito da mudança de paladar do cervejeiro.

O estranho é que ainda se indague se está o artista certo ou errado. E a empresa promotora da nova propaganda só a veiculou por imaginar uma sociedade invertebrada sem critérios éticos, que aceita tudo por dinheiro. Seria como admitir a fé em outro novo profeta indicado por um beijo de Judas.

A ausência de limites éticos brota evidente, também, quando se faz do engodo uma forma de comunicação entre o Poder Público e a população, na propaganda oficial do programa de agricultura familiar, filmada, no entanto, em empresa rural, transformando-se, a soldo, os empregados particulares do empreendimento agrícola em pequenos proprietários beneficiados pelo governo. A propaganda se fez por igualmente imaginar que a sociedade aceita tudo. Se a “Folha” não tivesse flagrado a fraude estaríamos todos alegremente fraudados.

Mais grave ainda foi o desrespeito a nossa Suprema Corte afrontando-se decisão do ministro Cezar Peluso, no sentido de impedir o expediente por meio do qual se valeu anteriormente a CPI da Pirataria para superar uma proibição imposta pela Justiça.

Em novembro de 2003, um investigado, proprietário de um shopping na rua 25 de março, em São Paulo, que seria ouvido pela CPI, solicitou ao Supremo Tribunal Federal que lhe fosse garantida a tutela à sua imagem, proibindo-se a veiculação nos meios de imprensa televisada da sessão em que seria interrogado, visando prevenir eventual abuso de exposição na mídia. Foi concedida a medida cautelar. No entanto, a CPI valeu-se da própria rede de TV para emitir as imagens e cenas das quais, já públicas, serviram-se as televisões abertas comerciais.

Na oportunidade de ser novamente ouvido, o interrogado solicitou ser estendida a proibição também com relação à TV Câmara e à TV Senado, o que foi deferido. Os parlamentares acharam-se lesionados no exercício de suas elevadas funções, que são antes investigar e não dar publicidade a essas investigações, pois a correta apuração não exige que existam divulgações proibidas pela Justiça.

Entenderam haver uma limitação ao trabalho de comunicação da Casa Legislativa. No entanto, se há uma ordem judicial da Suprema Corte em defesa de um direito individual, há de ser respeitada.

Erraram os parlamentares em quebrar a autoridade judicial do Supremo, ao permitir a transmissão pela TV Câmara da sessão na qual houve graves ofensas ao interrogado, o que é inadmissível mesmo que seja culpado. O plenário do Supremo Tribunal Federal, por sua vez, também não soube se impor, deixando de reforçar a ordem antes emitida e de reagir à afronta.

Há uma crise ética quando a sociedade revela-se indefesa ou indiferente frente à fraude, quando os poderes da República instalam a insegurança jurídica, fazendo-se tabula rasa da prevalência das decisões da Justiça, a ponto de se aventar, com base na imunidade parlamentar, que o digno ministro Peluso teria outro interesse que não a preservação de um direito em conformidade com a Constituição, ao proibir que os holofotes fossem acionados.

Dessa forma, tudo estaria permitido, até veiculação de ofensas a um ministro do Supremo.

Quando os três Poderes e os órgãos de propaganda perdem a consciência dos limites éticos, está mais que na hora de parar para pensar ou repensar que país nós queremos.

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