O Ministério Público Federal recomendou à Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) que revogue a resolução que estabelece que determinados lixos hospitalares, como fetos e restos humanos, não precisam mais ser tratados e podem ser jogados em aterros sanitários.
Segundo o MPF, a norma desrespeita princípios constitucionais e resoluções do Conselho Nacional de Meio Ambiente (Conama), segundo as quais esse tipo de lixo deve ser incinerado ou esterilizado.
A procuradora da República Denise Neves Abade afirma na recomendação que "a nova classificação dos resíduos de saúde pretendida pela Anvisa pode criar situações extremamente graves, não só para o meio ambiente saudável como para o próprio controle de infecções e endemias, o que é diametralmente oposto à própria missão legal da autarquia".
Pela resolução da Anvisa, poderão ser jogados em aterros resíduos hospitalares como: bolsas contendo sangue ou hemocomponentes com volume residual superior a 50 ml; tecidos, membros e órgãos do ser humano, que não tenham mais valor científico ou legal ou não tenham sido reclamados por familiares; fetos de até 25 cm de comprimento; carcaças animais e resíduos provenientes de pacientes que contenham agentes suspeitos de apresentar relevância epidemiológica.
A recomendação é um instrumento que o Ministério Público tem na esfera cível para pedir que um prestador de serviço público ou empresa de relevância pública respeitem princípios legais e constitucionais. É uma forma amigável de compelir o recomendado a cumprir a determinação legal, evitando uma ação jurídica, que pode ser a conseqüência do não cumprimento da recomendação. (MPF)
Leia a recomendação nº 22/2003:
O MINISTÉRIO PÚBLICO FEDERAL, pela Procuradora da República signatária, no exercício de suas funções institucionais e legais, em especial os artigos 1°, 2°, e 6°, inciso VII, alíneas "a" e "b" e inciso XIV, alínea "g" da Lei Complementar n° 75/93 e o artigo 129, inciso II, da Constituição da República, vem expor e recomendar ao Excelentíssimo Senhor Presidente da Agência Nacional de Vigilância Sanitária - ANVISA e aos dd. Membros da Diretoria Colegiada da autarquia o que segue:
CONSIDERANDO que tramita no Ministério Público Federal, o expediente n.° 1.34.001.002708/2003-11, referente ao conteúdo da Resolução n° 33 da ANVISA - Agência Nacional de Vigilância Sanitária, que estabelece novas diretrizes para a gestão de resíduos hospitalares e sua destinação final;
CONSIDERANDO que no expediente acima mencionado, por meio de dados recebidos do Conselho Estadual do Meio Ambiente do Estado de São Paulo - CONSEMA, constatou-se a inobservância por parte da ANVISA das normas constitucionais e legais existentes para gestão de resíduos sólidos hospitalares ao publicar a Resolução RDC n° 33;
CONSIDERANDO que a Constituição Federal brasileira albergou os princípios da prevenção, da precaução e da responsabilidade do agente poluidor, ao determinar, no artigo 225, V, que, para assegurar a efetividade do direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, bem de uso comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida, é dever do poder público controlar a produção e emprego de substâncias que comportem risco para a vida, para a qualidade de vida e para o meio ambiente;
CONSIDERANDO que a Constituição Federal brasileira dispõe ser competência comum da União, Estados, Distrito Federal e Municípios a proteção do meio ambiente e o combate à poluição em qualquer de suas formas, conforme o artigo 23, VI;
CONSIDERANDO que para suprir uma política nacional de resíduos sólidos, bem como de normas gerais e de âmbito nacional, visando não apenas o correto gerenciamento dos resíduos, mas, principalmente, a redução da sua geração, há mecanismos normativos de âmbito nacional, notadamente as Resoluções do Conselho Nacional de Meio Ambiente - CONAMA;
CONSIDERANDO que o artigo 6o da Lei 6.938/81 fixou a atribuição do Conselho Nacional do Meio Ambiente para estudar e propor diretrizes de políticas governamentais para o meio ambiente e os recursos naturais e deliberar sobre normas e padrões compatíveis com o meio ambiente ecologicamente equilibrado e essencial à sadia qualidade de vida;
CONSIDERANDO que a Resolução n° 5/93, estabeleceu padrões de qualidade ambiental em relação aos resíduos dos serviços de saúde, em consonância com a NBR 1004 (ABNT), classificando-os em quatro grupos: A - Risco Biológico (sangue e hemoderivados, dentre outros); B - Risco Químico (drogas e resíduos farmacêuticos); C - Risco Radioativo; e D - Comum (os resíduos não enquadrados nos demais grupos);
CONSIDERANDO que, por essa norma, o CONAMA recomenda a destruição dos materiais enquadrados nos grupos A e B, através de incineração ou esterilização a vapor, de forma a anular suas características físicas, químicas e biológicas; bem como o cumprimento das normas do CNEN (Conselho Nacional de Energia Nuclear) quanto aos resíduos radioativos do grupo C; e a disposição dos demais materiais do grupo D em aterros sanitários;
CONSIDERANDO que a Resolução n° 283/01 permitiu excepcionalmente a possibilidade de disposição dos resíduos do grupo A e B, sem tratamento, em áreas remotas ou de fronteira, desde que obedecendo a critérios técnicos dos órgãos ambientais;
CONSIDERANDO que Resolução CONAMA n° 316/02 estabelece parâmetros para o tratamento do resíduo sólido de saúde;
CONSIDERANDO que na Resolução 33/03 da ANVISA estabelece-se padrões bastante inferiores aos anteriormente determinados nas normas ambientais, prevendo, por exemplo, que resíduos como a) bolsas contendo sangue ou hemocomponentes com volume residual superior a 50 ml; b) peças anatômicas (tecidos, membros e órgãos) do ser humano, que não tenham mais valor científico ou legal, e/ou quando não houver requisição prévia pelo paciente ou seus familiares; c) fetos com peso menor que 500 gramas ou estatura menor que 25 centímetros ou idade gestacional menor que 20 semanas; d) carcaças, peças anatômicas e vísceras de animais provenientes de estabelecimentos de tratamento de saúde animal; e) todos os resíduos provenientes de paciente que contenham ou sejam suspeitos de conter agentes que apresentem relevância epidemiológica e risco de disseminação; dentre outros, não mais precisarão ser tratados, bastando que sejam jogados em aterros sanitários;
CONSIDERANDO que a ANVISA não pode desobrigar os estabelecimentos de saúde dos deveres já anteriormente estabelecidos constitucional e legalmente, quais sejam, incinerar ou esterilizar os resíduos de saúde classificados nos grupos A e B;
CONSIDERANDO que o art. 6º da Lei 9.782/99 estabelece que a ANVISA "terá por finalidade institucional promover a proteção da saúde da população, por intermédio do controle sanitário da produção e da comercialização de produtos e serviços submetidos à vigilância sanitária, inclusive dos ambientes, dos processos, dos insumos e das tecnologias a eles relacionados, bem como o controle de portos, aeroportos e de fronteiras";
CONSIDERANDO que a nova classificação dos resíduos de saúde sólidos pretendida pela ANVISA pode criar situações extremamente graves, não só para o meio ambiente saudável como para o próprio controle de infecções e endemias, o que é diametralmente oposto à própria missão legal da autarquia;
CONSIDERANDO que havendo conflito aparente entre normas ambientais e de saúde pública de mesma hierarquia o mesmo deve ser resolvido, primeiramente, pela interpretação constitucional, que favorece o direito ao meio ambiente sadio e impõe ao poder público e à coletividade preservá-lo para as presentes e futuras gerações, conforme o já mencionado art. 225, caput, da Constituição Federal, sendo inconstitucionais quaisquer normas que não respeitem aos preceitos da norma fundamental;
CONSIDERANDO que a Lei 6.938/81, que determina as normas de política nacional de meio amb iente, expressamente prevê, em seu artigo 2o, I e V que deverão ser atendidos os princípios de ação governamental na manutenção do equilíbrio ecológico, considerando o meio ambiente como um patrimônio público a ser necessariamente assegurado e protegido e o controle e zoneamento de atividades potencial ou efetivamente poluidoras, e que tal lei têm ascendência hierárquica sobre qualquer Resolução que com ela não se coadune;
CONSIDERANDO que o princípio de resolução de conflitos aparentes de normas é pela aplicação da norma mais restritiva, que são, no caso concreto, as Resoluções do CONAMA mencionadas;
CONSIDERANDO que a norma exarada pela ANVISA conspira contra a preservação do meio ambiente e da saúde da coletividade, princípios básicos abraçados pela República Federativa Brasileira e que, por afrontar as normas que lhe são hierarquicamente superiores, não deve ser recepcionada pelo ordenamento jurídico brasileiro;
CONSIDERANDO que compete ao Ministério Público Federal zelar pelo respeito, por parte dos órgãos e autarquias públicas, da Constituição, das leis e dos tratados internacionais dos quais a República seja parte; bem como promover os meios necessários para a proteção do meio ambiente;
Resolve o Ministério Público Federal em São Paulo RECOMENDAR, com fundamento no art. 6°, inciso XX, da Lei Complementar n° 75/93, ao Presidente da Agência Nacional de Vigilância Sanitária - ANVISA e aos dd. Membros da Diretoria Colegiada da autarquia, que promovam as medidas necessárias de caráter administrativo e material, no exercício regular de suas atribuições, para que seja de fato revogada a Resolução RDC N° 33 ANVISA.
Assinalo, nos termos do artigo 6°, inciso XX, da Lei Complementar 75/93, o prazo de 30 (trinta) dias para resposta à presente recomendação.
Dê-se cópia da presente recomendação ao CONAMA - Conselho Nacional de Meio Ambiente, aos respectivos CONSEMAS existentes nos Estados da Federação e às Secretarias Estaduais do Meio Ambiente.
São Paulo, 25 de agosto de 2003
DENISE NEVES ABADE
Procuradora da República
Comentários de leitores
1 comentário
Fernando Gomes ()
Gostaria de parabenizar a Ilustre representante do MPF pela brilhante fundamentação da recomendação. Observa-se a preocupação com a maior fundamentação: Garantia da vida da presente e futuras gerações, pela consciência de que somos parte integrante do meio ambiente; não mero expectadores ou detentores de direitos em detrimento dos demais seres componentes da biosfera. Fernando Gomes
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