Divulgação de seqüestro

Liberdade de imprensa pode ser limitada em casos de seqüestro

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31 de março de 2002, 15h22

Dentre os princípios que iluminam o novo Direito Constitucional, ganha cada vez mais relevo, inclusive na jurisprudência do Supremo Tribunal Federal, o princípio da proporcionalidade.

É possível vislumbrar duas funções distintas desempenhadas pelo referido princípio no sistema normativo. Na primeira delas, o princípio da proporcionalidade configura instrumento de salvaguarda dos direitos fundamentais contra a ação limitativa que o Estado impõe a esses direitos.

De outro lado, o princípio em exame também cumpre a relevante missão de funcionar como critério para solução de conflitos de direitos fundamentais, através de juízos comparativos de ponderação dos interesses envolvidos no caso concreto.

Esta função é ressaltada por PAULO BONAVIDES (1), in verbis:

“Uma das aplicações mais proveitosas contidas potencialmente no princípio da proporcionalidade é aquela que o faz instrumento de interpretação toda vez que ocorre antagonismo entre direitos fundamentais e se busca daí solução conciliatória, para a qual o princípio é indubitavelmente apropriado. As cortes constitucionais européias, nomeadamente o Tribunal de Justiça da Comunidade Européia, já fizeram uso freqüente do princípio para diminuir ou eliminar a colisão de tais direitos.”

A seguir, com a finalidade de facilitar a análise do tema sugerido, apresentarei uma proposta de classificação das modalidades de colisão de direitos fundamentais.

Conflito aparente de normas e colisão real de direitos

Antes, porém, cabe uma observação. Considerando-se que não há hierarquia entre as diversas normas constitucionais e que o sistema jurídico é um todo harmônico, o conflito entre aquelas é apenas aparente. Assim, por exemplo, não há conflito, no plano normativo, entre as normas que garantem o direito à liberdade de imprensa e o direito à intimidade. Porém, no plano fático, a incidência delas sobre uma dada situação pode gerar uma colisão real entre os mencionados direitos constitucionais.

Outro não é o entendimento de J.J. GOMES CANOTILHO (2), que distingue concorrência de direitos fundamentais e colisão de direitos fundamentais. Na lição do constitucionalista luso, a primeira categoria existe quando um comportamento do mesmo titular preenche os pressupostos de fato de vários direitos fundamentais. Por exemplo: a publicação de um artigo literário põe em contato o direito à liberdade de imprensa e o direito à manifestação do pensamento. Por sua vez, “considera-se existir uma colisão autêntica de direitos fundamentais quando o exercício de um direito fundamental por parte do seu titular colide com o exercício do direito fundamental por parte de outro titular. Aqui não estamos perante um cruzamento ou acumulação de direitos (como na concorrência de direitos) , mas perante um ‘choque’ , um autêntico conflito de direitos” (3).

Modalidades de colisão de direitos fundamentais

Uma vez que não existem direitos fundamentais absolutos, surgindo uma situação na qual se apresentem em posições antagônicas, impõe-se proceder à compatibilização entre os mesmos, mediante o emprego do princípio da proporcionalidade. O princípio permitirá, por meio de juízos comparativos de ponderação dos interesses envolvidos no caso concreto, harmonizá-los através da redução proporcional do âmbito de aplicação de ambos (colisão com redução bilateral) ou de um deles apenas (colisão com redução unilateral), se inviável a primeira providência.

Outrossim, em alguns casos de colisão, a realização de um dos direito fundamentais em confronto é reciprocamente excludente do exercício do outro. Nesta hipótese, o princípio da proporcionalidade indica qual o direito que, na situação concreta, está ameaçado de sofrer a lesão mais grave caso venha a ceder ao exercício do outro, e, por isso, merece prevalecer, excluindo a realização deste (colisão excludente).

Quanto à possibilidade de prevalência de um direito sobre o outro, importa registrar o entendimento de J.J. GOMES CANOTILHO (4):

“Os exemplos anteriores apontam para a necessidade de as regras do direito constitucional de conflitos deverem construir-se com base na harmonização de direitos, e, no caso, de isso ser necessário, na prevalência (ou relação de prevalência) de um direito ou bem em relação a outro (D1 P D2). Todavia, uma eventual relação de prevalência só em face das circunstâncias concretas se poderá determinar, pois só nestas condições é legítimo dizer que um direito tem mais peso do que o outro (D1 P D2)C, ou seja, um direito (D1) prefere (P) outro (D2) em face das circunstâncias do caso (C)” (os grifos constam no original).

Colisão com redução bilateral

No pertinente à colisão com redução bilateral, existe viabilidade de exercício conjunto dos direitos fundamentais, por via de um processo limitativo de ambos. Referido método, quando possível de ser aplicado, prefere aos demais, porquanto contempla tratamento uniforme aos direitos em colisão. Sua incidência é freqüente nos conflitos de vizinhança, como, v.g., na hipótese em que o Juiz fixa horário para realização de obras em um prédio, conciliando o direito de propriedade e o direito ao sossego.


Colisão com redução unilateral

Na colisão com redução unilateral, é possível o exercício conjugado dos direitos fundamentais, por intermédio da relativização de apenas um deles, sem a qual o outro direito poderia restar completamente aniquilado. É o que sucede, v.g., com a tutela antecipada e com os demais provimentos jurisdicionais de urgência. Nesses casos, reduz-se o âmbito de aplicação do art. 5º, LV, o qual é observado apenas em segundo plano (contraditório diferido), depois de assegurada a efetividade do processo (art. 5º, XXXV, da Lei Fundamental).

Colisão excludente

Na colisão excludente, em que a realização concomitante dos direitos em colisão, conforme visto, é impossível, vez que o exercício de um deles exclui o do outro, incumbe perquirir qual direito fundamental expõe-se, no caso concreto, a um perigo de lesão mais grave.

Em recente decisão, publicada no Informativo STF nº 257, referente ao caso da cantora mexicana Glória Trevi, que ganhou imensa repercussão na imprensa, torna-se possível reconhecer um caso de colisão excludente. Este Colendo Tribunal julgou procedente reclamação para deferir a realização do exame de DNA com a utilização do material biológico da placenta retirada da extraditanda.

Infere-se, dos fundamentos da decisão, que o STF, “fazendo a ponderação dos valores constitucionais contrapostos” (princípio da proporcionalidade), considerou a possibilidade de uma lesão mais grave ao direito à honra e à imagem dos servidores e da Polícia Federal, atingidos pela declaração de a extraditanda haver sido vítima de estupro carcerário, divulgada pelos meios de comunicação, do que ao direito à intimidade e à vida privada da extraditanda, visto que o exame de DNA pode ser realizado sem invasão da integridade física da extraditanda ou de seu filho (RCL 2.040-DF, rel. Min. Néri da Silveira, 21.2.2002).

Colisão de direitos fundamentais e tutela inibitória

A despeito do prestígio alcançado pelo princípio da proporcionalidade como critério para solução de conflito de direitos fundamentais, algumas hipóteses de colisão, quais sejam, as que versam sobre direitos de conteúdo não patrimonial, continuavam sem receber tratamento adequado, porquanto o processo tradicional, plasmado na sentença de condenação, revelava-se incapaz de assegurar uma tutela específica desses direitos. Conforme ressaltou LUIZ GUILHERME MARINONI (5):

“Os direitos de personalidade são marcados por serem direitos com conteúdo e função não patrimonial. Além desta característica básica, tais direitos são definidos por quase sempre conflitarem com outros direitos igualmente dignos de tutela. Assim, por exemplo, o direito à imagem pode conflitar com o direito à liberdade de imprensa. Tais direitos em outras palavras, são dotados de uma conflituosidade intrínseca, deixando ao juiz o delicado problema relativo à resolução do conflito entre dois direitos, que deve ser eliminado através da aplicação do princípio da proporcionalidade.

Em outro plano, pode-se dizer que os direitos de personalidade dependem de obrigações continuativas de não fazer, ou de obrigações de fazer infungíveis ou dificilmente passíveis de execução através das formas tradicionais da execução forçada.

Os direitos de personalidade não podem ser garantidos adequadamente por uma espécie de tutela que atue somente após a lesão ao direito. Admitir que tais direitos apenas podem ser tutelados através da técnica ressarcitória é o mesmo que dizer que é possível a expropriação destes direitos, transformando-se o direito ao bem em direito à indenização. Não é preciso lembrar que uma tal espécie de expropriação seria absurda quando em jogo direitos invioláveis do homem, assegurados constitucionalmente”.

Destarte, segundo o escólio de MARINONI, tais direitos necessitam de um tipo de tutela jurisdicional que atue: a) preventivamente, prevenindo a prática do ilícito (6); b) especificamente, porque destinada a garantir o exercício integral do direito, segundo as modalidades originariamente fixadas pelo direito material (7); c) coercitivamente, ou seja, através da imposição de meios coercitivos capazes de convencer o obrigado a não fazer ou a cumprir uma obrigação de fazer infungível (8). A esta espécie de tutela, dá-se o nome, por influência do Direito italiano, de tutela inibitória ou tutela de inibição do ilícito.

Tal constatação não se faz apenas em termos de política legislativa, mas resulta de imperativo constitucional, consubstanciado no art. 5º, XXXV, da Constituição, de acordo com o qual ” a lei não excluirá da apreciação do Judiciário lesão ou ameaça de lesão a direito”. Nas precisas palavras de Luiz Guilherme Marinoni (9):

“Ora, se determinados direitos, por suas peculiaridades próprias, somente podem ser tutelados através da tutela inibitória, não há como se negar a extensão deste tipo de tutela às hipóteses dela carentes. Negar a tutela inibitória para os direitos que não podem ser adequadamente tutelados através da técnica ressarcitória é negar atuação concreta à norma constitucional”.


Se os argumentos acima expendidos já viabilizavam o emprego da tutela inibitória na colisão de direitos, agora, com a nova regulação do art. 461 do CPC, promovida pela Lei nº 8.952/94, o sistema de resolução de conflitos de direitos fundamentais acha-se completo, material e formalmente, mediante a interação do princípio da proporcionalidade com a tutela inibitória.

Efetivamente, o citado dispositivo legal assegura, nas ações que tenham por objeto o cumprimento de obrigação de fazer ou não fazer, a concessão da tutela específica, prevendo, em seu parágrafo 5º, diversas medidas coercitivas para tanto. Outrossim, admite a imposição de multa diária ao réu, independentemente de pedido do autor, se for suficiente ou compatível com a obrigação. Por fim, o parágrafo 3º do mesmo artigo, prevê a antecipação da tutela inibitória, nos casos em que é relevante o fundamento da demanda e há justificado receio de ineficácia do provimento final.

Tutela inibitória para impedir divulgação de seqüestro

Ultimamente tem-se indagado sobre qual deve ser o papel dos meios de comunicação de massa diante de um caso de seqüestro, quando a família da vítima não autoriza a divulgação do fato.

A questão comporta uma colisão de direitos fundamentais: direito à liberdade de imprensa e direito à informação X direito à vida e direito à intimidade. Sendo assim, a solução exige a aplicação dos métodos antes descritos.

Fazendo a ressalva de que o emprego do princípio da proporcionalidade, mediante os métodos de resolução de conflito de direitos fundamentais, deve ser feito à luz das circunstâncias do caso concreto, entendo que, na hipótese, aplica-se a colisão com redução unilateral, vez que é possível o exercício conjugado dos direitos fundamentais em questão, por intermédio da relativização do direito à liberdade de imprensa, sem a qual o direito à vida correria sério perigo.

Isso se torna possível através da vedação à divulgação do fato, enquanto não encerrado, limitando-se o direito à liberdade de imprensa, com o que se evitaria um desfecho trágico para o seqüestrado, possibilitando-se sua publicação após o término do seqüestro. Em suma: o direito à liberdade de imprensa não seria excluído, mas tão-só colocado em segundo plano.

Desta forma, impõe-se admitir a possibilidade do pedido de tutela inibitória, na espécie, visando impedir a divulgação do caso, inclusive, se necessário for, através de ordem de busca e apreensão de jornais, revistas, periódicos e fitas, bem como por meio de imposição de multa ou quaisquer outras medidas adequadas e suficientes, ex vi do disposto no art. 461, parágrafo 5º, do CPC.

De observar-se, entretanto, que mesmo após o desfecho do caso, a divulgação poderá ser eventualmente impedida via tutela inibitória. De fato, far-se-á necessário analisar as circunstâncias do caso para solucionar uma nova colisão, desta vez entre os direitos à liberdade de imprensa e à informação e o direito à intimidade. Para tanto, o juiz levará em conta fatores como a prisão ou não dos seqüestradores, a periculosidade dos mesmos, a existência de ameaças, os abusos sofridos pela vítima, etc., o que poderá conduzir a uma colisão com redução bilateral (permissão para divulgação limitada) ou excludente (do direito à liberdade de imprensa ou do direito à intimidade).

O entendimento acima esposado coaduna-se com o Projeto de Lei n.º 5253/2001, em trâmite perante o Congresso Nacional, o qual dispõe que todo veículo de comunicação de massa, tal como, rádio, televisão, jornais e revistas de qualquer natureza, só poderão divulgar e noticiar casos de seqüestro, quando a família da vítima autorizar.

Lamentavelmente, porém, o projeto em tela recebeu, em 05/12/2001, parecer pela rejeição na Comissão de Ciência e Tecnologia, Comunicação e Informática (CCTCI) da Câmara dos Deputados. Consta, no voto do Relator, o Deputado Marçal Filho (11), in verbis:

“A Constituição de 1988 dedicou capítulo específico à comunicação social que se fundamenta na liberdade de manifestação do pensamento, de criação, de expressão e de informação. Para que não paire dúvidas sobre esse conceito, o texto constitucional estabelece em seu art. 220, parágrafo 1º, que “nenhuma lei conterá dispositivo que possa constituir embaraço à plena liberdade de informação jornalística…, observado o disposto no art. 5º, IV, V, X, XIII e XIV.

A proposta que ora examinamos, ao condicionar a divulgação de notícias sobre seqüestros nos meios de comunicação de massa a prévia autorização, restringe, a nosso ver, a liberdade de informação jornalística.

A aprovação dessa iniciativa pode constituir perigoso precedente para que se criem outras limitações com alegações diversas de defesa da privacidade, da intimidade, da honra e da imagem das pessoas envolvidas nas mais diversas situações. Para coibir eventuais abusos cometidos pelos veículos de comunicação, o texto constitucional já assegura direito de indenização para os casos em que os cidadãos sintam-se prejudicados pela veiculação de notícias a eles relacionadas.

Fazemos estas observações, porém, sem deixar de entender que, eventualmente, a divulgação de notícias de seqüestros pelos meios de comunicação pode prejudicar as vítimas ou seus familiares. Na realidade, somos adeptos do pensamento do autor. Os últimos acontecimentos têm mostrado que a publicação desses fatos, colocaram em risco os seqüestrados e atrapalharam as investigações policiais. Ocorre, porém, que a Constituição Federal não permite fazer a restrição preconizada pelo projeto.

Por estes motivos, nosso voto é pela rejeição de Projeto de Lei nº 5253, de 2001″.

Com a devida vênia, discordo do ilustre deputado. A fundamentação apresentada encontra-se totalmente divorciada dos novos postulados que iluminam a teoria da colisão de direitos fundamentais, cujo pressuposto básico assenta na inexistência de direitos constitucionais absolutos e na necessidade de tutela específica dos direitos fundamentais de conteúdo não patrimonial.

Aliás, a exegese segundo a qual não se pode obstar a veiculação de notícias ofensivas à honra, à imagem, à vida privada e à intimidade das pessoas, resolvendo-se a violação em perdas e danos, a par de contrariar frontalmente o princípio da proporcionalidade, por sugerir que o indivíduo deva aguardar inerte a violação de seu direito para só após buscar proteção, que, de resto, não será específica, sequer se compadece com os métodos tradicionais de hermenêutica, por desprezar a interpretação sistemática dos artigos que asseguram a liberdade de imprensa e o direito à informação em conjugação com a norma que garante o acesso ao Judiciário em caso de lesão ou ameaça de lesão a direito (Constituição Federal, art. 5º,XXXV), razões pelas quais há de ser rechaçada pela Câmara dos Deputados.

Em remate, reputo necessário advertir que as circunstâncias do caso concreto podem indicar que a divulgação do seqüestro, independentemente da autorização da família e mesmo antes de seu desfecho, não represente perigo grave de lesão aos direitos à vida, à intimidade e à vida privada, situação em que a regulamentação proposta poderá ser afastada pelo juiz.

Notas

(1) Curso de Direito Constitucional, 9a edição, Malheiros, 2000, p. 386.

(2) Direito Constitucional e Teoria da Constituição, 3a edição, Almedina, 1999, p.1189.

(3) Op. cit., p. 1191.

(4) Op. cit. ,p. 1.194.

(5) Questões do Novo Processo Civil Brasileiro, 1a edição, Juruá Editora, 1999, p.171

(6) Op. cit., p. 164.

(7) Op. cit., p. 169.

(8) Op. cit., p. 174.

(9) Op. cit., p. 177.

(10) O termo é empregado, aqui, em sentido amplo, abrangendo o seqüestro propriamente dito – art. 148 do CP – e a “extorsão mediante seqüestro”, tipificada no art. 159 do CP)

(11) www.camara.gov.br/Internet/sileg/Prop_Detalhe.asp?id=32824 (capturado em 07/03/2002).

Revista Consultor Jurídico 31 de março de 2002.

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