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Participantes de reality shows podem barrar divulgação de cenas

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22 de março de 2002, 17h35

Viraram febre no Brasil os reality shows. Casa dos Artistas e Big Brother são diariamente acompanhados por milhões de espectadores, com cidadãos sendo filmados 24 horas por dia em situações constrangedoras. A partir da entrada em cena, a intimidade dos participantes é simplesmente extirpada, como se de fato não existisse.

Tais modalidades de programas despertam, contudo, algumas questões jurídicas. É que o inciso X do artigo 5º da Constituição Federal trata como invioláveis a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das pessoas, assegurado o direito a indenização pelo dano material ou moral decorrente de sua violação. Será permitido ao cidadão, através de contrato particular, renunciar a direitos constitucionalmente tidos como invioláveis? Os participantes de referidos programas podem futuramente ingressar com ação de indenização por dano moral, em virtude de alguma situação constrangedora divulgada em rede nacional de televisão?

Um raciocínio superficial poderia levar a conclusão de que nitidamente há a possibilidade de renúncia a direitos fundamentais, citando-se, como exemplos triviais, o militar, o funcionário, o estudante, que ingressam em certas relações especiais de poder, submetendo-se voluntariamente à diminuição de seus direitos fundamentais.

Não é assim. Há, em verdade, determinados permissivos constitucionais à restrição de direitos fundamentais, que se processam apenas mediante lei e nos casos expressamente previstos na Constituição. Não que a vontade individual se sobreponha às proibições constitucionais, nem que as relações jurídicas especiais – p. ex. o militar – legitimem uma renúncia a direitos fundamentais. O que ocorre é que há alguns casos específicos de restrição de direitos fundamentais, regidos por leis e princípios constitucionais que protegem juridicamente os cidadãos que se submetem a tais regimes especiais.

Nestes casos, chamados pelo renomado constitucionalista português J. J. Gomes Canotilho de relações especiais de poder, a exemplo dos presos, dos funcionários públicos e dos militares, é indispensável que, para a restrição ou diminuição dos direitos fundamentais, o respectivo fundamento para tanto esteja na Constituição.

Importa que o estatuto legal que regulamente tais regimes especiais encontre fundamento na Constituição Federal. Segundo Canotilho, “as restrições de direitos fundamentais justificadas com base numa relação especial, mas sem fundamento na Constituição, serão, consequentemente, inconstitucionais”. Assim, por exemplo, a proibição ao militar para filiação a partido político e também à sindicalização, é válida porque encontra fundamento na Constituição (artigo 142, IV e V).

Quaisquer outras restrições a direitos fundamentais que não encontrem fundamento na Constituição serão, portanto, inconstitucionais. Exemplo dos mais práticos é o de que o cidadão não pode – pelo menos no mundo da licitude – renunciar ao décimo terceiro salário ou ao piso salarial; não pode renunciar à vida, em um contrato que tenha com fim a morte; enfim, há situações de irrenunciabilidade de direitos.

Em tese, portanto, poder-se-ia falar em inconstitucionalidade dos contratos firmados entre as emissoras de televisão e os participantes dos reality shows, porque propostos a violar direitos irrenunciáveis como a intimidade e a vida privada; dito de outro modo, tais contratos não teriam força legal para afetar os direitos fundamentais dos cidadãos que os assinaram, induzindo à simplista conclusão de que qualquer dos participantes de referidos programas poderia, ao término do contrato, ingressar com ação de indenização por dano moral e à imagem.

A conclusão também não parece ser a mais adequada, porque afinal de contas tais pessoas expressamente aceitaram a situação. Para um acerto maior necessário partir de um ponto básico, delineado por Canotilho, de que os direitos fundamentais são, em sua totalidade, irrenunciáveis: “Dizer que as liberdades básicas são inalienáveis é o mesmo que dizer que qualquer acordo entre cidadãos que prescinda de uma liberdade básica ou a viole, mesmo que esse acordo possa ser racional e voluntário, é nulo ab initio, isto é, não tem qualquer força legal nem afeta as liberdades básicas de qualquer cidadão”.

Todavia o próprio autor reconhece que há a possibilidade de uma autolimitação voluntária ao exercício de um direito num caso concreto (afastando-se a renúncia absoluta). Nestes casos, em que o cidadão voluntariamente limita algum direito fundamental seu (porque a renúncia geral aos direitos fundamentais é inadmissível) através de um contrato – que é o caso dos reality shows -, há que se ressalvar que tais contratos estão permanentemente sob reserva de revogação.

Dito de outra forma, o contratante que aceitou momentaneamente a violação de um direito fundamental seu – que é justamente o caso dos participantes de referidos shows em relação ao direito à intimidade -, pode, a qualquer tempo, revogar unilateralmente o contrato, fazendo cessar de imediato todas as condições anteriormente ajustadas. Não se pode falar em ato jurídico perfeito, porque se está a tratar de direitos fundamentais invioláveis, e também porque tais contratos não encontram fundamento na lei e muito menos na Constituição.

Isso significa dizer que qualquer dos participantes da Casa dos Artistas ou do Big Brother Brasil, surpreendido em alguma situação de constrangimento, pode imediatamente rescindir o contrato, através de notificação à emissora, impedindo a veiculação das imagens. Para tanto há os instrumentos jurídicos adequados, a exemplo das tutelas inibitórias.

Caso não haja tempo para a efetivação da tutela preventiva e mesmo contra a vontade do cidadão a emissora, baseada no contrato, veicule a imagem repugnada, caberá ação de indenização por dano moral.

Revista Consultor Jurídico 22 de março de 2002.

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