Legismania pátria

Advogado critica artigos do Projeto de Lei Anti-Spam

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9 de março de 2002, 16h48

Ao terminar a leitura do Projeto de Lei nº 6.210, de 2002, (que limita o envio de mensagem eletrônica não solicitada [“spam”], por meio da Internet), de autoria do deputado Ivan Paixão, conscientizamo-nos da dura realidade brasileira: há uma efetiva compulsão em legislar sobre o já legislado. Se atentarmos aos fatos, veremos que pouco há a legislar. Entrementes o poder legiferante insiste.

O artigo 216-A do CP (1), é um exemplo recente da legismania pátria. Até o seu advento, a questão do assédio sexual, consoante boa doutrina e talentosa jurisprudência, era tida como abarcada pelo tipo penal previsto pelo artigo 146, também do CP. Mas fez-se “nova Lei” que, em vez de ampliar o “novo direito”, restringiu-o, eis que limita a tipicidade ao ambiente de trabalho.

Se de acordo com o artigo 146 do CP o assédio sexual poderia se configurar em qualquer situação, já de acordo com o artigo 216-A ele terá que decorrer, necessariamente, de uma relação de trabalho. O fato de a penalização ser maior (dois anos), nada muda, pois de acordo com o artigo 89, da Lei nº 9.099/95 (2), é possível a suspensão condicional da pena, como no crime de constrangimento ilegal.

O projeto de Lei sub examen confirma nossas palavras, eis que trata de matéria já regulada pelos Códigos Civil e de Defesa do Consumidor. Além disso, sua inspiração é decorrente de fontes alienígenas que sequer legais são. Fosse pouco tudo isso, ele colide frontalmente com o Código de Defesa do Consumidor.

Feitas essas breves considerações, partamos para a análise do PL em questão.

artigo 1º – Esta lei dispõe sobre as limitações ao envio de mensagens eletrônicas não solicitadas (“spam”), por meio da Internet, originadas ou destinadas a computadores instalados no País.

artigo 2º – Considera-se mensagem eletrônica não solicitada (“spam”), para os efeitos desta lei, a mensagem eletrônica recebida por meio de rede de computadores, sem consentimento prévio do destinatário, e que objetive a divulgação de produtos, marcas, empresas ou endereços eletrônicos, ou a oferta de mercadorias ou serviços, gratuitamente ou mediante remuneração.

O objetivo desses dois primeiros artigos não foi alcançado em sua plenitude, eis que seu autor admitiu que o spam somente pode se dar através da Internet ou da “rede de computadores”. Poderia ser mais técnico e se referir a meios telemáticos (3).

Já que a aparente intenção do PL em discussão é a proteção contra correspondências não solicitadas, ¿por que não ser mais amplo tratar do problema do junk fax (ou fax não solicitado)?

Quanto a definição de spam (a mensagem eletrônica recebida sem consentimento prévio do destinatário), concordamos.

artigo 3º – Toda mensagem eletrônica não solicitada deverá atender aos seguintes princípios:

I – a mensagem poderá ser enviada uma única vez, vedada a repetição a qualquer título sem o prévio consentimento do destinatário;

II – a mensagem deverá conter, no cabeçalho e no primeiro parágrafo, uma identificação clara de que se trata de mensagem não solicitada;

III – o texto da mensagem conterá a identificação do remetente e um endereço eletrônico válido; e

IV – será oferecido um procedimento simples para que o destinatário opte pelo não recebimento de outras mensagens do mesmo remetente.

§ único. É vedado o envio de mensagem eletrônica não solicitada a quem tiver se manifestado ao remetente contra seu recebimento.

O inciso I foi inspirado na resolução de 21 de novembro de 2001 da Comunidade Comum Européia, onde se instituiu o sistema de recebimento opt-out (ter que manifestar o desejo de não receber o malfadado e-mail), o qual, por sua vez, foi inspirado nos projetos de dos senadores Torricelli e Murkowsky, ambos da América nortista.

Entretanto, esse dispositivo colide, frontalmente, com o Código de Defesa do Consumidor, o qual, em seu artigo 43, § 2º, dispõe que “a abertura de cadastro, ficha, registro e dados pessoais e de consumo deverá ser comunicada por escrito ao consumidor, quando não solicitada por ele”. Caso não haja solicitação do destinatário (eis que aí a mensagem passa a ser autorizada) seus dados somente poderão estar em uma e-mailing list irregularmente. Essas considerações se aplicam, igualmente,m ao § único do artigo 3º.

Os incisos II, III e IV, do artigo 3º, foram moldados nos escritórios da TRUSTe, uma empresa que, teoricamente, envolve-se em movimentes em prol das liberdades civis, na Califórnia (EUAN). Essa empresa, com o objetivo de “moralizar” a prática do spamming pretende emitir selos certificadores, nos moldes adotados pelo PL em análise. Ali temos que:

Every e-mail sent by a Trusted Sender-certified company will display a unique seal in the top right corner of the e-mail message, by which consumers can verify that the message is:

Legitimate: from a company that is verifiably compliant with program guidelines based on fair information practice principles and e-mail best practices.

Genuine: the subject line of the e-mail accurately reflects the content of the e-mail.

Accountable: consumers can bring privacy-related problems to TRUSTe’s dispute resolution program, a proven tool that has helped thousands of consumers resolve their disputes.

Responsible: the e-mail provides information allowing the recipient to easily request that they not receive future e-mail from the sender. (4)

Ponderemos, outrossim, se, por acaso, o spammer disfarçar seu caráter comercial, infringirá o disposto pelo artigo 36 do Código de Defesa do Consumidor, que determina que “a publicidade deve ser veiculada de tal forma que o consumidor, fácil e imediatamente, a identifique como tal”. E não nos olvidemos do bom e velho artigo 159 do Código Civil (5) que também nos favorece.

artigo 4º – Todo usuário de rede de computadores que utilizar serviço de correio eletrônico tem o direito de identificar, bloquear e optar por não receber mensagens eletrônicas não solicitadas.

§ 1º O destinatário pode exigir do seu provedor de acesso ou de correio eletrônico, ou do provedor do remetente, o bloqueio de mensagens não solicitadas, desde que informado o endereço eletrônico do remetente.

§ 2º É obrigação do provedor atender às solicitações de que trata o parágrafo anterior em prazo não superior a vinte e quatro horas, vedada a cobrança de taxas de qualquer natureza.

§ 3º Não será responsabilizado pelo recebimento indevido de mensagem eletrônica não solicitada o provedor de acesso ou de serviço de correio eletrônico que tenha se utilizado, de boa fé, de todos os meios a seu alcance para bloquear a transmissão ou recepção da mensagem.

O caput do artigo 4º nada esclarece além de consagrar o direito de usar filtros antispam. Isso se nos soa o mesmo que consagrar o direito de se utilizar alarmes antifurto em carros… Seus parágrafos. Igualmente tratam de obviedades que já têm solução no mundo jurídico.

artigo 5º – As infrações aos preceitos desta lei sujeitarão o infrator à pena de multa de até oitocentos reais por mensagem enviada, acrescida de um terço na reincidência.

Esse artigo, por certo, buscou, inspiração na Lei Federal da América nortista que regulamenta as transmissões de faxes comerciais não solicitados (junk fax), vigente desde 24 de janeiro de 1994.

Todavia, mais uma vez mirando nossos olhos para o Código do Consumidor, vemos que suas prerrogativas discutidas

O artigo 39, inciso iii, do Código de Defesa do Consumidor, diz que “é vedado ao fornecedor de produtos ou serviços enviar ou entregar ao consumidor, sem solicitação prévia, qualquer produto, ou fornecer qualquer serviço”.

Contudo…¿um e-mail pode ser considerado um produto? Entendemos que sim, haja vista que tudo que não é fruto da Natureza, necessariamente é resultado de processo de trabalho humano (físico ou intelectual). É conseqüência da ação (por vezes inação), da elaboração, da organização ou da permissão de quem coordena a produção, que pode ser o próprio agente ou um terceiro a quem ele se subordina.

Por não ser fruto da Natureza, o e-mail deve ser considerado um produto, pois que é resultado de um trabalho que tem custos e ônus avaliáveis (tanto para quem o remete quanto para aqueles que o recebem – ou por desejo ou por imposição).

Ademais, o § 1º do artigo 3º do CDC é taxativo quando determina que “produto é qualquer bem, móvel ou imóvel, material ou imaterial”. E não poderia ser diferente.

Portanto, o spam por ser um produto (que pode se prestar para oferta de mercadoria ou serviço) viola o disposto pelo artigo 39, inciso iii, do Código de Defesa do Consumidor (6), haja vista que o spammer não pode enviá-lo ao cidadão/consumidor sem sua prévia solicitação, ainda mais em se considerando que quem arca com os seus custos não é quem o envia, mas quem o recebe.

Conclusão:

Em vez de punir os abusos dos spammers, a presente Lei mais se preocupa em institucionalizá-lo, em nítido prejuízo à comunidade internáutica brasileira. ¡Saudações!

Notas de Rodapé:

1 – artigo 216-A. Constranger alguém com o intuito de obter vantagem ou favorecimento sexual, prevalecendo-se o agente da sua condição de superior hierárquico ou ascendência inerentes ao exercício de emprego, cargo ou função.

Pena – detenção, de 1 (um) a 2 (dois) anos.

(Entrou em vigor aos 16 de maio de 2001.)

2 – a Lei nº 9.099/95 implementou as disposições da Constituição de 1988, criando os Juizados Especiais, para o julgamento e a execução de causas cíveis de menor complexidade e infrações penais de menor potencial ofensivo.

3 – Telemática é a ciência que trata da manipulação e utilização da informação através do uso combinado de computador e meios de telecomunicação.

4 – Cf. In http://www.truste.org/about/TrustedSenderReleaseFINAL.html

5 – Aquele que, por ação ou omissão voluntária, negligência, ou imprudência, violar direito, ou causar prejuízo a outrem, fica obrigado a reparar o dano. A verificação da culpa e a avaliação da responsabilidade regulam-se pelo dosposto neste Código, artigos 1.518 a 1.523 e 1.537 a 1.553.

6 – artigo 39 – É vedado ao fornecedor de produtos ou serviços (III) enviar ou entregar ao consumidor, sem solicitação prévia, qualquer produto, ou fornecer qualquer serviço.

Veja também notícia sobre a criação da F.A.S. – Frente Anti-Spam.

Revista Consultor Jurídico, 9 de março de 2002.

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