Abolitio Criminis

Luiz Flávio Gomes critica decisão do STJ sobre lança-perfume

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8 de março de 2002, 14h47

No sistema jurídico-penal brasileiro um determinado produto ou substância só pode ser considerado “droga” se está relacionado pelo órgão público competente (hoje é a Agência Nacional de Vigilância Sanitária). Se a substância está na lista é “criminosa”. Se não está ou se for retirada da lista deixa de ser criminosa.

Em 07.12.00 a Anvisa publicou a Resolução nº 104, de 06.12.2000, e retirou o cloreto de etila (lança-perfume) da Lista F2 (substâncias entorpecentes ou psicotrópicas), colocando-o na Lista D2 (Insumos químicos precursores, que não são proibidos, senão apenas controlados pelo Ministério da Justiça). Em outras palavras: eliminou o caráter criminoso do cloreto de etila, por uma semana. Porque em 15.12.00 voltou a proibição.

Em termos penais isso significa que no período de 07.12.2000 a 14.12.2000 houve sua descriminalização, isto é, abolitio criminis, que apaga todos os efeitos penais do delito e tem eficácia retroativa, alcançando todos os fatos precedentes.

A republicação da Resolução 104 alterou completamente o texto anterior. Logo, é uma verdadeira lei nova. Sendo mais severa, vale tão-somente para fatos ocorridos a partir dela. A republicação evidentemente não tem eficácia retroativa porque é prejudicial aos réus.

Nossa conclusão: todos os fatos envolvendo lança-perfume ocorridos no nosso país até 14.12.2000 estão completamente fora de qualquer conseqüência jurídico-penal relacionada com a Lei de Tóxicos. Pode eventualmente a conduta configurar contrabando, caso se comprove a importação do produto. Mas droga ilícita não pode ser considerada (até 14.12.00).

Várias decisões do TJ-SP já reconheceram essa tese: HC n. 348.499-3/5, rel. Segurado Braz, j. 19.06.01, in Boletim IBCCRIM, n. 109, dez./01; TJSP, HC n. 343.466.3/9-00, Silva Pinto, voto n. 12.789, in Boletim IBCCRIM, n. 105, ano 9, ago./01. O presidente do STF, Min. Marco Aurélio, já concedeu inúmeras liminares no mesmo sentido: cf. por exemplo STF, HC n. 81.136-1/SP, rel. Min. Marco Aurélio, j. 07.07.01, liminar, DJU de 08.08.01, p. 19, e Boletim IBCCRIM, n. 108, nov./01.

Acórdão recentíssimo do STJ (REsp 299.659, Quinta Turma, j. 18.02.02), entretanto, refutou esse entendimento salientando ter ocorrido erro material na primeira publicação da Resolução 104, falta de urgência etc..

Múltiplas razões jurídicas revelam o desacerto dessa decisão. Parte-se da premissa de que houve erro material na primeira publicação da Resolução (que se deu em 07.12.00). Ora, a nova publicação de um texto para corrigir erro material de lei anterior (e a resolução 104 tem força de lei, aliás, lei penal, porque cuidou de complemento de norma penal em branco) está disciplinada na LICC, art. 1º, § 3º e 4º, que dizem o seguinte: “Se, antes de entrar a lei em vigor, ocorrer nova publicação de seu texto, destinada a correção, o prazo deste artigo e dos parágrafos anteriores começará a correr da nova publicação”; “As correções a texto de lei já em vigor consideram-se lei nova”.

A Resolução 104 foi publicada pela primeira vez em 07.12.00; entrou em vigor na mesma data da sua publicação; foi republicada em 15.12.00; a correção não se publicou antes da sua vigência; ao contrário, depois dela; logo, é lei nova; lei penal nova mais severa, como ensinamos aos estudantes de direito, desde o primeiro ano, não retroage.

Um acórdão do TJ-SP (HC 339.463-3), apesar disso, chegou a dizer equivocadamente que a republicação referida tem efeito retroativo. Essa afirmação conflita integralmente com o texto constitucional (art. 5º, inc. XL), que diz que a lei penal nova só retroagirá se beneficiar o agente.

Se a correção publicada em 15.12.00 é lei nova, só poderia retroagir se fosse benéfica. Total descompasso existe entre o acórdão e a Constituição brasileira. Aliás, o acórdão citado está em desacordo também com toda doutrina penal a respeito desse ponto, que não é nova: vem de 1764 (quando Beccaria escreveu seu Dei delitti e delle pene).

A decisão do diretor-presidente da Anvisa, de outro lado, teria sido ad referendum da Diretoria Colegiada, que depois acabou modificando o primeiro entendimento. Embora ad referendum, não se pode questionar a eficácia jurídica da primeira publicação. O Diretor-Presidente tinha e tem poderes para publicar resoluções, em casos de urgência. Em seus considerandos foi dito que se tratava de matéria urgente.

Não se pode esquecer que as resoluções da Anvisa quando modificam a lista das substâncias entorpecentes possuem caráter “penal”. Não se trata de uma resolução “qualquer”. Como ato administrativo pode-se conceber que se tratava de uma decisão “ad referendum”. Como ato legislativo-penal isso é inconcebível. Não existe lei penal ad referendum, não existe lei penal provisória (essa é a razão da proibição de medida provisória em matéria penal, nos termos do art. 62, I, “b”, da CF).

Não existe, de outro lado, lei penal condicionada (seja incriminatória, seja descriminalizadora). Todas as leis penais (decretos, resoluções etc.), uma vez publicadas, passam a produzir efeitos jurídicos. Para se retirar a eficácia do seu comando normativo é preciso provar erro ou vício na manifestação da vontade de quem tinha poder para editá-la.

Uma lei não aprovada pelo Congresso mas publicada não tem valor jurídico porque a inconstitucionalidade dela é manifesta (é o que ocorreu com o parágrafo único da Lei 9.639/98) (cf. RE 262.604-SP, Sepúlveda Pertence, j. 19.02.02, Informativo STF n. 257, de 27.02.02, p. 3). Se tivesse havido coação contra o diretor-presidente da Anvisa poder-se-ia imaginar a nulidade de todos os efeitos da Resolução 104. Mas não é o caso.

Revista Consultor Jurídico, 8 de março de 2002.

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    é mestre em direito penal pela Faculdade de Direito da USP, professor doutor em direito penal pela Universidade Complutense de Madri (Espanha) e diretor-presidente da Rede de Ensino LFG.

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