Dívida externa

Política econômica globalizada prejudica brasileiros

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7 de março de 2002, 18h38

Os homens são iguais em natureza, em direitos e em deveres. Sempre atento às conquistas da ciência e da técnica, o homem trabalha na construção de uma vida melhor. Persegue diuturnamente a busca de novos caminhos e de soluções de futuro a um mundo novo de Paz e de Justiça, onde prevaleça o direito à cidadania, ao trabalho, ao salário, o respeito à dignidade humana.

Os Salmos, o de nº 127 como o de nº 115 (16) nos dão uma visão do direito de usufruir das riquezas produzidas pelo trabalho, tendo que retirar o sustento do suor do próprio rosto: “Do trabalho de tuas mãos viverás” (Sl 127), como também lhe é assegurado usufruir as riquezas produzidas na terra: “Os Céus são do Senhor, mas a terra, Deus a deu aos filhos do homem” (Sl 115.16). Foi-se o tempo em que o trabalho era considerado castigo. O entendimento que prevalente é no sentido de que é um bem inalienável, uma dádiva, uma benesse, um leniente necessário à valorização e dignificação da pessoa humana.

Na Idade Média também era prevalente o entendimento da valorização apenas do Criador e não a criatura. É o pensamento humanista renascentista, que se voltou à valorização do homem, procurando uma nova forma de pensar a vida e as coisas. E, buscando inspiração na civilização dos gregos e romanos (Antigüidade Clássica), fez renascer a cultura e o conhecimento mais profundo dos povos antigos, fazendo desabrochar a vida sob as suas formas — um fluxo de vitalidade que fez vibrar a humanidade européia, transformando a vida, da inteligência, dos sentidos, do saber e da arte, ainda sobre o sistema monárquico que vigiu na Europa até meados do século XIX.

Depois foi substituído pelo sistema republicano que foi impulsionado pelo seu ideário assentado em uma nova organização social e política, com divisão de poderes harmônicos entre si (legislativo, executivo e judicial), como também no estabelecimento de direitos e garantias individuais, quer políticas, quer civis. O sistema republicano deu origem à formação de um bloco social constituído para gerir os negócios públicos, segundo uma estratégia desenvolvimentista e pragmática, que acabou por beneficiar uma burguesia que iria prosperar através da especulação e dos negócios de importação e exportação.

Dados os conflitos de interesses entre os detentores de capital e os que não o tinham, mormente em decorrência da teoria marxista, que criticava a essência do Capitalismo, que ao procurar aumentar os seus lucros, diminuía o rendimento dos trabalhadores, como decorrência da exploração de sua força de trabalho, que se dava através da apropriação da mais valia.

A teoria marxista foi desenvolvida por Karl Marx, que afirmava que o lucro não se realiza por meio da troca de mercadorias e que os trabalhadores não recebem o valor correspondente a seu trabalho. E, sim, na realidade, apenas um salário de subsistência, que é o mínimo a assegurar a manutenção e reprodução do próprio trabalho necessário à produção.

A decadência do liberalismo econômico que se implantou com o sistema republicano fez surgir a necessidade de fazer-se frente a esse ideário socialista (mais valia). Implantou-se então o conhecido Estado do Bem-Estar Social, já no final do século XIX, uma legislação social que acolheu diversos princípios protetivos ao trabalhador, que na lição de Eduardo Couture significou um procedimento lógico para corrigir as desigualdades, criando-se outra desigualdade.

Visando a solução desse conflito entre o capital e o trabalho, surgiu então o direito do trabalho, que ao abdicar dos antigos e liberais dogmas civilistas da autonomia privada e da pacta sunt servanda, tornou-se um ramo jurídico autônomo, com o objetivo primordial de dirimir os conflitos entre patrões e empregados, dissimulando e minimizando a oposição social entre duas classes, a dos proprietários e a massa dos que nada têm.

Criou-se com isso mecanismos de compensação, através de uma proteção jurídica, em que Montalvo Correira, justifica tratar-se de: “um meio defensivo da classe burguesa que preferiu limitar as injustiças e proteger o trabalhador com o objetivo de conservar as vantagens do sistema capitalista que se encontrava ameaçado na virada do século”. (José Affonso Dallegrave Neto, in Prevalência do negociado sobre o legislado, in Jornal O Estado do Paraná, Caderno de Direito e Justiça, 03-03-02).

Com a falência do sistema socialista que então era praticado no Leste Europeu, o sistema capitalista ganhou novo impulso, já agora, sem aqueles conhecidos riscos ameaçadores que o regime socialista antes lhe impunha. Passo contínuo, passou, a monopolizar e dominar a economia mundial, quer auxiliado pelo progresso, quer pela evolução dos novos conhecimentos científicos e tecnológicos a seu dispor.

Os ideais neoliberalistas do capital transnacional prevalente foram resumidos num receituário próprio, que passou a ser conhecido como “Consenso de Washington” (Livre circulação de bens, de serviços e de trabalhadores, privatização, queda das barreiras alfandegárias, facilitação ao capital especulativo internacional, flexibilização e desregulamentação de direitos sociais e trabalhistas, de integração da economia nacional ao mundo globalizado), que foi utilizado largamente para seduzir os governantes dos países e em especial os dos ditos emergentes, visando que abrissem, sem quaisquer reservas, suas fronteiras ao processo de globalização econômica, sob promessa de o assim fazendo, estariam adentrando num mundo de riquezas e de farturas.


O sonho dessa abertura indiscriminada, sem quaisquer reservas, durou pouco, já que os países ricos são os que mais impõem barreiras alfandegárias para proteger sua indústria interna que venha a perder competitividade no mercado internacional, como ocorreu, por exemplo, agora nos EUA, com a questão do aço. Esta política do governo Bush que nega vigência à política do livre mercado tão exaltado, está levando a própria União Européia a coordenar uma ação conjunta dos países prejudicados, dentre os quais, Japão, a China, a Coréia do Sul e o Brasil, contra a decisão do governo americano de sobretaxar importações de aço, junto à Organização Mundial do Comércio (OMC).

A dura realidade dos efeitos nefastos desse processo econômico mundialmente concentrador mostra que esses países tomadores de empréstimos internacionais para que possam continuar honrando seus compromissos assumidos, se tornaram refém da política econômica que lhes é imposta, sendo obrigados a adotar a política exigida pelo Banco Mundial e ou pelo FMI no sentido da obrigatoriedade da geração de superávits orçamentários, que assegurem o pagamento dos encargos da dívida com os países cedentes dos empréstimos internacionais.

Sem necessidade de referir-se à situação caótica da Argentina, tomemos apenas o caso do Brasil, que somente no segundo mandato de governo FH irá gastar os valores equivalentes a R$ 405,361 bilhões em pagamentos de juros e amortizações da dívida pública. Deste total, R$ 289,5 bilhões foram pagos entre 1999 e 2001 e outros R$ 115,8 bilhões estão previstos no Orçamento de 2002 (Jornal Hoje em Dia, Belo Horizonte, Segunda-Feira 25/2).

O atrelamento a essa política econômica de privilegiar o capital internacional especulativo impõe ao país o insuportável peso de uma dívida externa opressiva. Como decorrência, o Estado deixa de atender à sua finalidade primordial das necessidades de seus cidadãos, ao cortar verbas do orçamento como o investimento no processo educacional necessário a cada cidadão e em infra-estrutura, inviabilizando até a construção das obras necessárias à compensação da falta de atendimento público às necessidades dos mais pobres.

Na contramão, não tem o país uma política voltada a taxar as grandes fortunas ou os ganhos do capital especulativo. Pelo contrário. Nos últimos dias, vimos noticiados pela imprensa, o presidente do Banco Central intervindo diretamente junto ao Congresso Nacional, para que na discussão da PEC 407/01 (prorrogação da CPMF até 2004), se poupasse o capital financeiro de pagar a referida taxa, mas, igualmente, não pleiteou isenção para os trabalhadores assalariados, mesmo os que recebem salário de subsistência.

Examinando esse assunto, o Sr. Paulo Gil Introini, presidente do Sindicato dos Auditores fiscais (Inifisco-Sindical), critica veementemente o sistema tributário brasileiro e a falta de uma política de combate à sonegação: “Temos um governo dos poderosos, dos ricos, com a tributação orientada para desonerar as rendas do capital e sobrecarregar o trabalho e o consumo, gerar recordes de arrecadação para garantir o superávit primário e pagar os juros da dívida” (Jornal do Diap, nº 178).

Ainda no ano de 1992, quando se realizou no Rio de Janeiro a ECO-92 (Conferência Mundial sobre o Meio Ambiente), os pensadores, estudiosos da necessidade da preservação da vida, diante das constantes e sucessivas agressões ao meio ambiente, que o degrada, propuseram a aprovação do que passou a ser conhecido como Protocolo de Kyoto, visando que o mundo adotasse uma mentalidade de mudança com o uso das novas tecnologias à disposição do capital especulativo mundialmente globalizado, visando assegurar, assim, ao Planeta Terra um desenvolvimento sustentado, sem o que, a degradação ambiental colocará o planeta num rumo sem retorno, tornando, de tal modo, de má qualidade a água e o ar que a raça humana consome. E, como conseqüência, com a saúde cada vez mais combalida, começará a ser dizimada irremediavelmente.

A preservação do meio ambiente tem que ser uma preocupação mundial, respeitando-se o direito à vida. O aquecimento global, de acordo com a maioria dos cientistas, é causado pela emissão de gases-estufa industriais, podendo derreter o gelo das calotas polares, inundando boa parte das regiões ao nível do mar.

Apesar disso, os EUA, atendendo aos interesses econômicos de sua indústria — que é considerada a mais poluente, das poluentes — negaram-se a assinar o Protocolo de Kyoto. O Presidente Bush (um texano que teve sua campanha financiada por multinacionais do petróleo) considera os objetivos de Kyoto incompatíveis com o crescimento econômico do seu país, cuja indústria depende da energia proveniente de óleo, gás natural e carvão mineral.

Ao invés de reduzir as descargas dos gases de efeito estufa, o que Bush propõe é uma desaceleração do aumento dessas emissões, atrelada ao crescimento do PIB. Um argumento legítimo, segundo a opinião dos opositores a essa política. Se os EUA não fossem o maior emissor desses gases no planeta. Se não fosse o país mais rico do mundo que contribui, sozinho, com quase 25% das 6,6 bilhões de toneladas de carbono lançadas todo ano na atmosfera por atividades humanas, ainda se poderia entender sua postura de não assinar o tratado de preservação ambiental mundial.


Não bastasse isso, na contramão da meta do protocolo, os EUA já aumentaram suas descargas de gás carbônico em 11% desde 1990.

A situação é caótica. Os efeitos nefastos do aquecimento climático provocado pela emissão de gases na atmosfera é tão desastroso, que os cientistas já prevêem que as pequenas ilhas do Pacífico afundarão entre as ondas, fazendo desaparecer as pequenas nações ali existentes. Tal previsão levou o primeiro-ministro Koloa Talake da nação do Pacífico Sul, representando seus 10 mil habitantes, a afirmar que vai processar os Estados Unidos e a Austrália, devido à desistência de assinarem o Protocolo de Kyoto, estabelecido em 1997 (O Globo, 06.03.02).

Ao invés de uma globalização que pudesse privilegiar a solidariedade entre os homens, a adoção desse modelo econômico de privilegiar o capital especulativo, ocasionam os problemas do desemprego, que são agravados, como decorrência dos efeitos negativos da globalização econômica (João Paulo II, “Igreja na América”, 20), em que famílias inteiras vivem a angústia de serem atingidas por esse drama. Desmontam-se as conquistas dos trabalhadores, “flexibilizam-se” seus direitos.

Os conflitos gerados com essa política mundialmente globalizada se estende atualmente aos países considerados ricos. Exemplo disso é o que está ocorrendo na a Itália, em que a “terceira via” inglesa ao propor uma aliança com o governo Berlusconi para flexibilizar o mercado de trabalho na Europa, a par de contribuir para o desmonte dos princípios protetores do direito do trabalho e de aumentar em muito o poder já quase incontrastável do capital levam os trabalhadores, mais de 300 mil manifestantes à rua.

Diante do clamor público, o governo neoliberal de Berlusconi, já admite estar disposto a revisar o projeto de lei destinado a flexibilizar os procedimentos de demissão. Na Itália, há que se repisar, existia uma garantia legal legislativa, que impedia que os trabalhadores fossem despedido sem que houvesse uma justificação plausível dentro dos permissivos legais, diferentemente do que ocorre no Brasil em que não existe qualquer proibição de despedida, bastando para tanto que o empregador pague as verbas rescisórias de lei.

Esse conflito entre os dois mundos, o do capital e o do trabalho, lembra a famosa imagem projetada por Waldemar Boff sobre o debate então ocorrido em Basiléia, Suíça, em 08.12.99, entre Leonardo Boff, teólogo da libertação e defensor histórico dos direitos dos oprimidos e Daniel Vasella, presidente mundial da Novartis, um mega-conglomerado da indústria químico-farmacêutica, tendo como mediador como mediador, Klaus Leisinger, um notável professor e tenaz batalhador do desenvolvimento sustentável, ao descrever: “Naquela noite, senti que tinha havido um grande encontro das águas. As águas turvas e profundas do sofrimento dos pobres e excluídos encontravam-se com as águas salgadas e turbulentas da batalha da produção e do mercado. Lembrei-me do encontro do Rio Solimões com o Rio Negro que depois vão engrossar o Rio Amazonas. No início as águas barrentas correm paralelas às águas claras, vendo-se nitidamente a linha que divide um rio do outro. Depois, mais adiante, há manchas enormes de águas turvas surgindo dentro do corpo das águas claras. Finalmente, as águas misturam-se de tal sorte que esquecem sua cor e sua história, para irmanadas encetarem sua caminhada rumo ao oceano comum. E quando o Amazonas, imenso e poderoso, chega ao encontro do Oceano Atlântico há inicialmente um embate espumarento que morre num abraço amoroso”.(Novos Horizontes de uma Civilização Global).

Também examinando esse mesmo cenário do conflito entre o capital e o trabalho, o lúcido professor da Universidade de Tóquio, Akihiko Tanaka, divide o mundo pós-Guerra Fria em três esferas: a esfera Caótica, a esfera Moderna e a esfera da Nova Idade Média. O critério para a sua classificação é o grau de maturidade da democracia e da economia de mercado. Akihiko discute a interdependência de várias forças, comparando o mundo contemporâneo — em que corporações, ONGs e outras instituições não-governamentais dos países industrialmente avançados, que controlam diretamente o desenvolvimento da comunidade internacional — com a Idade Média, quando os senhores feudais, a Igreja e os burgos exerciam o poder multilateralmente. (Akihiko Tanaka in Nova Idade Média, Nihon Keizai Shimbun-sha, 1996).

Fernando Catroga, escritor português é defensor de uma política educacional global que vise à construção de um Homem Novo ao longo de gerações, como uma garantia de uma nova ordem societária, pressupondo uma alteração total no plano institucional. Uma verdadeira revolução no plano institucional, especialmente como produtora e reprodutora dos novos ritos e valores da dignidade humana, baseados na ciência, na moral e na educação cívico-solidária. E num altruísmo socializante que necessita de ser pedagogicamente alimentado e cultivado desde a infância, onde a escola e a educação, como espaço de uma nova sociabilidade, desempenhem um elo, um elemento essencial, à preservação e garantia da vida. (Catroga, autor citado, O Republicanismo em Portugal, Coimbra, Coleção Estudos – 15, Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra).

Assim, como Leonardo Boff e tantos outros pensadores humanistas da modernidade, defensores da prevalência do social em detrimento do mero interesse particular do lucro, entendemos deva ser o homem, o ser humano, a medida de todas as coisas, urgindo, pois, a unificação das forças vivas de cada nação para num trabalho unitário construamos um Estado Nacional que tenha como compromisso a promoção da solidariedade entre os cidadãos do mundo.

Um Estado que seja detentor de uma estrutura orgânica educacional completa do homem, onde prevaleça a Justiça, a Paz, perseguindo a retomada e o aceleramento de um desenvolvimento econômico sustentado e atendimento às necessidades gerais de seus cidadãos. Um buscar e assegurar a todos o pleno emprego, dignificando-se assim a pessoa humana, criando-se um mundo novo e possível, onde não haja desesperançados, desiludidos e excluídos.

Revista Consultor Jurídico, 7 de março de 2002.

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