Dever público

Justiça manda Estado dar assistência a autistas em São Paulo

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7 de março de 2002, 21h14

A 6ª Vara da Fazenda Pública, de São Paulo, em decisão de mérito, determinou que o governo paulista proporcione tratamento especializado, educação e assistência a todos os autistas do Estado, independentemente de idade. Caso descumpra a decisão, o Estado deve pagar multa diária de R$ 50 mil.

O pedido foi feito pelos promotores de Justiça João Luiz Marcondes Júnior e César Pinheiro Rodrigues. Os promotores pertencem ao Grupo de Atuação Especial da Saúde Pública e da Saúde do Consumidor (Gaesp) — Órgão de Execução do Ministério Público do Estado de São Paulo.

De acordo com o entendimento adotado, o autismo é uma incapacidade complexa do desenvolvimento mental que tipicamente aparece durante os três primeiros anos de vida, é o resultado de um desarranjo neurológico que afeta o funcionamento do cérebro.

É uma doença crônica que se caracteriza por lesar ou diminuir o ritmo do desenvolvimento normal de uma criança, a qual apresenta reações anormais quando deparam com sensações como ouvir, ver, tocar, degustar, etc. Costuma-se dizer que os autistas vivem em um mundo interior, particular, praticamente indevassável.

Contudo, por desconhecerem o fato de que essas pessoas podem ter até habilidades especiais, além do que detêm grande poder de recuperação, as famílias mais humildes os tratam como deficientes mentais, isolando-os em “cercadinhos” ou submetendo-os a tratamento degradante.

Já havia uma ação individual pedindo assistência a um autista. O governo contestou apresentando algumas unidades que poderiam dar atendimento a essas pessoas.

Dentro do processo, foi verificado que, diferentemente do que disse o governo, as entidades citadas não ofereciam tratamento especializado aos autistas.

A Justiça deixou a cargo do Estado a melhor forma de solucionar a sua deficiência — seja criando unidades específicas para essa finalidade, seja por convênio ou com parcerias com a iniciativa privada.

Por desfrutar do benefício de duplo grau de jurisdição, o Estado ainda pode recorrer ao Tribunal de Justiça.

Veja a íntegra da ação que resultou na decisão da Justiça

EXCELENTÍSSIMO SENHOR DOUTOR JUIZ DE DIREITO DA VARA DA FAZENDA PÚBLICA DA COMARCA DA CAPITAL — SÃO PAULO

AÇÃO CIVIL PÚBLICA C/ PEDIDO DE TUTELA ANTECIPADA

O MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DE SÃO PAULO, por seu Promotor de Justiça do GAESP — Grupo de Atuação Especial da Saúde Pública e da Saúde do Consumidor que essa subscreve, com fundamento e legitimado pelos arts. 1º, inciso III, 3º, 5º, caput e § 2º, 6º, 127, caput, 129, incisos II e III, 196 da Constituição Federal; arts. 1º, caput e 25, inciso IV, alínea a, da Lei Federal nº 8.625/93 (Lei Orgânica Nacional do Ministério Público); arts. 91, caput, 97, III e parágrafo único, 217 e 219 da Constituição do Estado de São Paulo; arts. 1º, caput e 103, incisos I, VII, alínea a e VIII, da Lei Complementar Estadual n.º 734/93 (Lei Orgânica do Ministério Público do Estado de São Paulo); arts. 1º, inciso IV, 5º, caput, 12 e 21, da Lei Federal n.º 7.347/85 (Lei da Ação Civil Pública); art. 6o. da Lei n. 7853/89; arts. 81, Parágrafo único, incisos I, II e III, 82, inciso I, 113, 116 e 117 da Lei Federal nº 8.078/90 (Código de Defesa do Consumidor); arts. 2º, caput, 5º e 6º da Lei n.º 8.080/90 e art. 2º, caput e o seu § 1º, da Lei Complementar Estadual nº 791/95, vem ajuizar a presente AÇÃO CIVIL PÚBLICA, observando-se o procedimento comum ordinário, em face ESTADO DE SÃO PAULO (FAZENDA ESTADUAL), que deverá ser citado na pessoa do Excelentíssimo Procurador Geral do Estado, na Avenida São Luiz, n. 99, 4o. andar, nesta Capital, pelos motivos de fato e de direito a seguir descritos.

I — DA LEGITIMIDADE DO MINISTÉRIO PÚBLICO

A Constituição Federal, em seu artigo 129, II, determina competir ao Ministério Público, zelar pelo efetivo respeito dos Poderes Públicos e dos serviços de relevância pública aos direitos assegurados na Constituição Federal, promovendo as medidas necessárias a sua garantia.

O Art. 197 do texto constitucional determina que as ações e serviços de saúde são de relevância pública, assim esclarecendo: “São de relevância pública as ações e serviços de saúde, cabendo ao Poder Público dispor, nos termos da lei, sobre sua regulamentação, fiscalização e controle, devendo sua execução ser feita diretamente ou através de terceiros e, também, por pessoa jurídica de direito privado”.

Portanto, da análise conjunta dos dois dispositivos constitucionais mencionados, conclui-se que um dos objetivos pretendidos foi o de efetivamente possibilitar a atuação do Ministério Público frente aos Poderes Públicos e aos particulares que executam serviços de relevância pública em prol da sociedade.


A situação produzida pelo requerido é dramática, distante da lei e da Constituição Federal, porque os usuários estão desprovidos da prestação de um serviço essencial, circunstância que somente tem como conseqüência o agravamento da condição do autista e sua falta de perspectiva para o futuro.

O direito constitucional de acesso à saúde pressupõe um serviço digno e com condições satisfatórias de higiene, segurança, pessoal e organizacional, fatores imprescindíveis ao desempenho do serviço essencial em questão. No caso, nada é destinado aos autistas.

Sempre é bom lembrar que a população é titular do interesse transindividual à prestação adequada dos serviços públicos essenciais, tendo os prestadores o dever de executá-los. Não podem estes, sob qualquer pretexto, simplesmente ignorar as normas existentes, normas também de origem constitucional.

Pondere-se que a Constituição Federal, igualmente, em seus artigos 127, caput, 129, inciso III; a Constituição do Estado de São Paulo, em seu artigo 91; a Lei Federal nº 8.625, de 12 de fevereiro de 1993 (Lei Orgânica Nacional do Ministério Público) em seu art. 25, inciso IV, alínea “b”; e a Lei Complementar Estadual nº 734, de 26 de novembro de 1993 (Lei Orgânica do Ministério Público do Estado de São Paulo), em seu art. 103, inciso VIII, cometem ao Ministério Público legitimação para o ajuizamento da ação civil pública para a defesa, em juízo, dos interesses difusos e coletivos, sendo que o Código de Defesa do Consumidor complementou tal quadro protetivo.

Ademais, são direitos fundamentais das pessoas portadoras de deficiência, dentre outros, receber atendimento especializado, treinamento para o trabalho, acesso aos bens e serviços coletivos e a integração social (arts. 227, § 1º, II e 244 da Constituição Federal), sendo que as Leis Orgânicas Nacional (Lei n. 8625, art. 25, IV, “a” e VI) e Estadual do Ministério Público de São Paulo (Lei Complementar Estadual n. 734/93, art. 103, I, VII, IX e X) impõe a prestação de assistência e prestação das pessoas portadoras de deficiência. Da mesma forma, a Lei n. 7853/89 indica que o poder público e seus órgãos devem assegurar às pessoas portadoras de deficiência o pleno exercício de seus direitos básicos, inclusive os concernentes à educação e à saúde, dentre outros.

A conclusão da Organização Pan-americana da Saúde e do Escritório Regional da Organização Mundial da Saúde, enumerada na Série Direito e Saúde nº 1 — Brasília, 1994, firmou que “O conceito de ações e serviços de relevância pública, adotado pelo artigo 197 do atual texto constitucional, norma preceptiva, deve ser entendido desde a verificação de que a Constituição de 1988 adotou como um dos fundamentos da República a dignidade da pessoa humana. Aplicado às ações e aos serviços de saúde, o conceito implica o poder de controle, pela sociedade e pelo Estado, visando zelar pela sua efetiva prestação e por sua qualidade. Ao qualificar as ações e serviços de saúde como de relevância pública, proclamou a Constituição Federal sua essencialidade. Por “relevância pública” deve-se entender que o interesse primário do Estado, nas ações e serviços de saúde, envolve sua essencialidade para a coletividade, ou seja, sua relevância social. Ademais, enquanto direito de todos e dever do Estado, as ações e serviços de saúde devem ser por ele privilegiados. A correta interpretação do Artigo 196 do texto constitucional implica o entendimento de ações e serviços de saúde como conjunto de medidas dirigidas ao enfrentamento das doenças e suas seqüelas, através da atenção médica preventiva e curativa, bem como de seus determinantes e condicionantes de ordem econômica e social. Tem o Ministério Público a função institucional de zelar pelos serviços de relevância pública, dentre os quais as ações e serviços de saúde, adotando as medidas necessárias para sua efetiva prestação, inclusive em face de omissão do Poder Público”.

Dessa forma, está o Ministério Público legitimado para a propositura da presente ação civil pública.

II — DOS FATOS

a — Autismo: conceito e características.

Depreende-se dos diversos elementos angariados no inquérito civil anexado à presente petição inicial que o autismo é uma incapacidade complexa do desenvolvimento mental que tipicamente aparece durante os três primeiros anos de vida, é o resultado de um desarranjo neurológico que afeta o funcionamento do cérebro, sendo um dos mais graves distúrbios da comunicação humana. Doença grave, crônica, incapacitante, caracteriza-se por lesar ou diminuir o ritmo do desenvolvimento normal de uma criança, a qual apresenta reações anormais quando deparam com sensações como ouvir, ver, tocar, degustar, etc. De origem grega a palavra “autos” significa “si mesmo”. Costuma-se dizer que os autistas vivem em um mundo interior, particular, praticamente indevassável. Sua incidência é de 4 a 5 em um universo de 10000 nascidos conforme referências internacionais, porquanto não são conhecidos os dados brasileiros. Assim, percentualmente a sua incidência na população deve girar em torno de 0,04 a 0,05%. Grande maioria dos autistas é afetada por aparente retardamento mental.


Os especialistas espanhóis utilizam o termo aparente porque é difícil valorar alguém que ignora os testes tradicionais de coeficiente intelectual, vivendo em um mundo reservado. O autismo é considerado por alguns uma doença mental especial proveniente de alguma anomalia que desafia os cientistas. Sua manifestação ocorre de formas diversas. Com efeito, alguns autistas são considerados de “alto funcionamento” possuindo grandes habilidades para certas atividades como decorar listas telefônicas e letras musicais ou realizar cálculos matemáticos, mas não conseguem tal desempenho em todas as ações, mesmo algumas muito simples. Há também autistas de “baixo funcionamento”. Estes mostram uma grande dificuldade de comunicação. Conforme a presidente da “Casa do Autista” um autista não tem autonomia social e noção de perigo, muitas vezes não expressa a dor, não possui noções de higiene, pode ser muito agressivo, não apresenta comunicação verbal adequada, é hiperativo e pode apresentar crises convulsivas. Conclui-se, pois, que o convívio com um autista é sem dúvida marcado por intenso desgaste de seus familiares. O autista não atinge o normal desenvolvimento do cérebro nas áreas de interação social e habilidades ligadas à comunicação. Crianças e adultos com autismo tipicamente têm dificuldades na comunicação verbal e não verbal, interação social e atividades que exigem o contato com fatores externos.

Em alguns casos agressividade ou auto-lesões estão presentes. Pessoas com autismo podem exibir movimentos repetidos do corpo, comportamentos não usuais, sendo que também costumam atirar objetos e apresentar resistência para mudar sua rotina. Uma minoria insignificante de autistas leva uma vida normal, praticamente nenhum chega ao casamento ou mostra interesse por outro sexo, mesmo porque não possui iniciativa. O restante, ou seja, a grande maioria, precisa de cuidados integrais e especiais. Em suma, o autismo leva a um relacionamento não usual com pessoas, eventos ou coisas, indicando um comprometimento orgânico do sistema nervoso central.

b — Tratamento

Evidências mostram que a intervenção desde cedo resulta em progressos para crianças de pouca idade com autismo. Internacionalmente várias “pré-escolas” modelo enfatizam diferentes componentes de programas, todos concordando na ênfase da rápida, apropriada e intensiva intervenção nos âmbitos da saúde e educacional especializada nas crianças. Portanto, o tratamento existe, sempre em evolução não só na área educacional, mas na área médica, de psicoterapia. A abordagem psicoterapeutica visa a reeducação, facilitando o contato interpessoal, propiciando no indivíduo uma melhor aceitação da problemática. Utilizam-se técnicas comportamentais visando induzir uma normalização de seu desenvolvimento e ensinando noções básicas de funcionamento, tais como vestir, comer, higiene, como refere o especialista E. Christian Gaudener (fls. 34 e seguintes). São empregadas também técnicas especiais de educação. O uso de medicamentos também ocorre para tentar normalizar os processos básicos comprometidos.

A utilização da denominada “medicação sintomática”, objetivando um maior controle do comportamento das crianças, encontra-se muito desenvolvida. O importante mesmo é a atenção especializada, considerada particularmente para cada autista. Existem, por exemplo, métodos envolvendo educação física, musicoterapia e exercícios aquáticos de coordenação motora. Ainda são usados segundo o caso: tratamento neurosensorial (integração sensorial, estimulação e aplicação de padrões, estimulação auditiva, comunicação facilitada e terapias relacionadas à vida diária); psicodinâmico (terapia dos abraços e psicoterapia); “condutual” e bioquímico. Bom de ser ressaltado que o tratamento adequado, segundo entendimentos conceituados, passa pela denominada “residência terapêutica”, isto é, os profissionais devem acompanhar o dia a dia do autista em clínicas especializadas, sempre com o concurso de psicólogos, fonoaudiólogos, psicoterapeutas, pedagogos, musicoterapeutas, neurologistas entre outros.

A questão, portanto, assim deve ser colocada: mesmo que a família do autista tenha disponibilidade de pessoalmente prestar cuidados, o que quase nunca ocorre, tal não é suficiente porquanto o autista “tratado domesticamente” não lhe vê confiado o imprescindível tratamento especializado, que lhe possibilite melhorar gradativamente e, por exemplo, abrandar-lhe a violência a níveis mais suportáveis, enfim, propiciar uma melhor adequação do autista ao seu meio.

Segundo o dizer da Presidente da “Casa do Autista”, os autistas de “baixo funcionamento” são os que mais dificuldades encontram para conseguir o tratamento adequado porque o Estado não cumpre a sua obrigação na área, sendo que o existente é particular e “caro” para a grande maioria da população. Realmente, tais autistas precisam de atendimento individualizado e com uma multiplicidade de profissionais, numa carga horária intensiva ou integral. “Estes tratamentos alcançam excelentes resultados na modalidade de residência terapêutica” (fls. 05). “À classe pobre resta ficar implorando bolsas nas instituições, e, quando consegue, fica eternamente à mercê de tê-las retiradas, ficando reféns das instituições que, muitas vezes, obrigam as famílias a vender carnês, que nada mais são do que o pagamento de mensalidades de forma disfarçada”.


Colocou ainda a Presidente que é preciso entender que a família não dispõe de preparo para lidar com a complexa questão do autismo. Necessário se torna o tratamento especializado e orientação aos pais paralelamente aos cuidados direcionados ao doente. Complementou a Presidente, também mãe de uma criança autista: “a Casa do Autista tem se colocado à disposição da Secretaria Estadual de Saúde para colaborar na implantação de residências terapêuticas, sem ter tido, por parte deste órgão, qualquer retorno, quanto à disponibilidade de colaboração. Foram várias reuniões com a equipe de saúde mental, sem qualquer resultado efetivo” (fls. 06).

C — Sobre alguns elementos constantes nos autos de inquérito civil.

Por sorteio, foram notificadas a comparecer na Promotoria de Justiça parentes e responsáveis de autistas visando a obtenção do quadro real da situação.

De fato, Luis Fatimo Fernandes de Almeida (fls. 89), pai de criança autista, foi claro ao mencionar que o Estado não proporciona qualquer tratamento especializado aos autistas. Tal tratamento, essencial, geraria uma maior possibilidade do autista adequar-se melhor e gradativamente ao meio social. Concluiu que “autistas pertencentes a famílias de menor nível social e econômico encontram-se totalmente desamparados, em situação calamitosa. O pai do autista sente-se no interior de um vácuo de informações, não existindo instituição governamental que confira alguma direção a tomar, algum caminho a percorrer”.

José Marques Inácio Júnior, ouvido a fls. 90/91, irmão de autista e dentista de pessoas que padecem de tal problema, afirmou que qualquer que seja o tipo de autismo é necessário um acompanhamento especializado, isto é, a própria família, por si só, não tem condições de cuidar adequadamente. Aduziu que em camadas menos instruídas da população é comum segregar o autista em um “cercadinho”, não lhe possibilitando qualquer progresso. Confirmou inexistirem órgãos públicos que forneçam à população serviço especializado para o tratamento do autista, bem como desconhece a existência de qualquer convênio firmado por órgãos públicos com unidades particulares. Esclareceu que em geral uma instituição em tempo integral é o ideal para as pessoas que padecem de tal problema, isto considerando exclusivamente o bem do autista e deixando em segundo plano os sentimentos familiares de saudades, por exemplo.

André Luiz Mancuzo também foi ouvido (fls. 144/5). Trata-se de pai de criança autista e foi presidente de uma associação especializada no tratamento de tal tipo de enfermidade. Esclareceu que, sem dúvida, o autista necessita de acompanhamento e cuidados especializados. Explicou que, por si só, a família não detém os conhecimentos necessários para fornecer adequado tratamento ao autista. Aduziu: “(…) tem conhecimento que nas periferias e nos lugares mais pobres existem autistas vivendo em condições sub-humanas, não lhes sendo propiciado qualquer progresso”. Disse que não existe entidade estatal que forneça o tratamento especializado ao autista, sendo que, eventualmente, o Estado repassa verbas para algumas entidades não governamentais. Porém, esclareceu que tais valores são ínfimos, pelo que insuficientes para manter o funcionamento das instituições que se valem de outras fontes de renda. Asseverou que dependendo do caso, considerada a gravidade da doença, é que se decide sobre a adequação do período de tratamento, ou seja, integral ou não. Finalizou: “(…) o tratamento a ser dispensado a um autista não é o mesmo que é devido a um deficiente mental padrão, ou seja, o autista necessita de tratamento especial, multidisciplinar, envolvendo as áreas de Saúde, Educação e Assistência”.

Todos os depoentes, pondere-se, referiram que o diagnóstico e o tratamento especializado desde uma tenra idade são fatores essenciais para uma melhor adaptação do autista ao meio social. Bem se vê que a omissão do Estado vem prejudicando sobremaneira os direitos de tais pessoas, privando-as dos possíveis progressos factíveis com o acompanhamento especial.

É importante destacar que o tratamento especial reclamado pelo autista como essencial não se identifica com qualquer um dos existentes em matéria de saúde-mental no âmbito público, seja Municipal, seja Estadual.

No apenso ao presente inquérito civil há uma fita de vídeo com cópia de episódio do programa “Fantástico” da Rede Globo de Televisão. Em tal programa estabeleceu-se o que seria o autismo, qual o tratamento adequado, sendo que teve como razão de ser o ocorrido com uma senhora que, por falta de orientação e opção, abandonou o seu filho autista. Há também um álbum de fotografias de uma festa “caipira” onde se verifica que o autista acompanhado tem chances de uma melhor adaptação ao seu meio.


Relevante também foi a contribuição do especialista em autismo infantil, o Dr. Raymond Rosenberg, (CREMESP 18045 — Rua Sampaio Vidal, 256, Tel/Fax 282-2088 — 282-2929 — 852-9696 — Jardim Paulistano — São Paulo). Este médico é “Fellow da American Academy of Child Psychiatry, Alumnus da Meninger Foundation, Ex-Diretor da Henry Schumaker Children`s Unit e Ex-Residente do Hospital das Clínicas da Universidade de São Paulo, pelo que fala com propriedade sobre o assunto (fls. 146/7). Esclareceu: “a) o autismo infantil é uma alteração de desenvolvimento humano, sereva, que se inicia antes dos três anos de idade. As áreas atingidas são: socialização, comunicação, desenvolvimento de padrões no uso dos objetos. Tais alterações são extremamente incapacitantes pois impedem a aquisição de repertório comportamental condizente à adaptação nas atividades da vida diária. b) não podemos classificar os ‘tipos de autismo’. Porém, podemos ter graus severos, moderados e leves. Esta gradação irá depender do grau de inteligência, capacidade de fala (mesmo que não comunicativa), nível de enfermidade(s) orgânica(s) concomitante, nível sócio-econômico dos pais e capacidade de continência que estes últimos têm em relação ao filho autista. c) o diagnóstico pode ser feito precocemente, ou seja, já entre os 14 e 20 meses de idade. d) quanto mais precoce for feito o diagnóstico mais precoce será a intervenção e mais fácil será a adaptação e o ensino do autista. e) o autista necessita de tratamento especializado nas seguintes áreas: comunicação (fonoaudiologia), aprendizado (pedagogia especializada), psicoterapia comportamental (psicologia), psicofarmacologia (psiquiatria infantil), capacitação motora (fisioterapia) e diagnóstico físico (neurologia). f) Dependendo das cidades há algumas salas de educação especial no ensino Público. São raras e posso mencionar São José do Rio Preto e São Vicente. A grande maioria está nas APAEs, que cuidam dos autistas muitas vezes confundindo-os com retardo mental. O Poder Público auxilia direta ou indiretamente as APAEs. g) sem atendimento especializado o indivíduo autista não tem condições de desenvolver-se. Embora muitas famílias sejam continentes dos comportamentos “bizarros” apresentados e amem o indivíduo autista, elas não têm capacidade de “normalizar” o desenvolvimento alterado. h) o indivíduo autista de família pobre é amado, porém o seu comportamento é tão desviado que ele não recebe dos pais uma atenção em tempo adequado pois todos os membros da família necessitam estar envolvidos na captação de renda. Muitas vezes, para não dizer na totalidade dos casos, o autista é deixado em casa sozinho ou sob o cuidado de alguém (familiar que não participe na captação de recursos pelos … ou vizinho que é caridoso) que não tem treino para cuidar do mesmo. Com a falta de preparo e a incompreensão das dificuldades do indivíduo autista, os cuidadores acabam por negligenciá-lo e até, às vezes, abusá-lo nas tentativas leigas de “educá-lo” (…)”. Por fim o renomado especialista colocou-se à disposição daqueles que têm como missão dar ao indivíduo autista seu direito de cidadania.

De concluir-se pois, sobre a necessidade de conferir tratamento gratuito especializado ao autista, bem como da insuficiência da atenção estatal na área.

Ademais, o Estado de São Paulo (Secretaria de Saúde) foi instado a se manifestar sobre a representação inicialmente ofertada (fls. 44/45 e fls. 04 — “e”), mas não providenciou qualquer resposta, o que demonstra o seu desinteresse em corrigir a situação, ensejando inegavelmente a necessidade de acionar o Poder Judiciário.

II — DO DIREITO

A — Do dever constitucional e legal do Estado fornecer atendimento especializado aos autistas

Evidentemente a questão central encontra-se dentro do âmbito dos problemas de saúde vividos pela população, porquanto seja lá como for capitulado o autismo (doença mental, deficiência mental, etc.), o certo é que diz respeito à prestação de serviços de saúde. O próprio problema educacional especial encontra-se ligado intrinsecamente à área da saúde, pois ele muitas vezes consubstancia grande parte do cuidado a ser conferido. O autista necessita de tratamento multidisciplinar específico, pelo que a Constituição Federal é sábia ao referir que a saúde é dever do Estado e direito de todos, garantindo mediante políticas sociais e econômicas o acesso universal igualitário às ações e serviços objetivando a promoção, proteção e recuperação (Art. 196 da Constituição Federal).

A Carta Magna também estabelece no Art. 198 que as ações e serviços de saúde devem garantir um atendimento integral (inciso II).

De maneira idêntica a Constituição Estadual delibera sobre a saúde (Art. 219). Em seu Art. 222 estabeleceu-se, dentre outros princípios, que o sistema único de saúde deve ser organizado ao nível do Estado considerando a gratuidade dos serviços prestados e a universalização da assistência de igual qualidade com instalação e acesso a todos os níveis, dos serviços de saúde à população urbana e rural. O Art. 223 do mesmo diploma legal indica que compete ao sistema único de saúde a assistência integral à saúde, respeitadas as necessidades específicas de todos os seguimentos da população, o que é muito relevante quando consideramos o tema específico do autismo. Compete-lhe ainda, cabe referenciar, a implantação de atendimento integral aos portadores de deficiência, abrangendo desde a atenção primária, secundária e terciária de saúde, até o fornecimento de todos os equipamentos necessários à sua integração social.


A Lei n. 8080/90 prescreve que a saúde é um direito fundamental do ser humano, devendo o Estado prover as condições indispensáveis ao seu pleno exercício (Art. 2o.). O Parágrafo único do Art. 3o., de outra parte, estabelece a amplitude dos fatores determinantes da saúde, incluindo que também dizem respeito à matéria as ações que, por força do disposto no Art. 2o., se destinam a garantir às pessoas e à coletividade condições de bem-estar físico, mental e social. O Art. 7o. , incisos I e IV, estabelece como princípios a serem adotados nas ações e serviços de saúde a universalidade de acesso em todos os níveis de assistência e a igualdade da assistência à saúde. No caso dos autistas, pondere-se, as condições particulares são mais graves, posto que não existem instituições públicas que propiciem o necessário serviço. O Art. 43, de sua parte, estabelece a gratuidade das ações e serviços de saúde.

Mas as normas que regem a matéria não se resumem ao que até agora foi exposto. De fato, o próprio Código de Saúde do Estado de São Paulo, Lei Complementar n. 791/95, declarou que a saúde é umas das condições essenciais da liberdade individual e da igualdade de todos perante a lei, sendo que o direito à saúde é inerente à pessoa humana, constituindo-se em direito público subjetivo (Art. 2o., “caput” e Parágrafo 1o). Complementando, o Art. 3o. do referido diploma coloca que o estado de saúde, expresso em qualidade de vida, pressupõe assistência prestada pelo Poder Público como instrumento que possibilite à pessoa o uso e gozo de seu potencial físico e mental (inciso III). Pressupõe também, vale trazer à colação, o reconhecimento e salvaguarda dos direitos do indivíduo, como sujeito das ações e dos serviços de assistência à saúde, possibilitando-lhe exigir, por si ou por meio de entidade que o represente e defenda os seus direitos, serviços de qualidade prestados oportunamente e de modo eficaz, bem como o tratamento por meios adequados e com presteza, correção técnica, privacidade e respeito (inciso IV, “a” e “c”). A gratuidade é característica dos serviços assistenciais (“d”). No bojo do Art. 12 repetiu-se as diretrizes básicas do “SUS” envolvendo a universalidade de acesso do indivíduo às ações e aos serviços em todos os níveis de atenção à saúde, igualdade de atendimento, eqüidade e integralidade da atenção, significando atendimento pleno ao indivíduo em vista da proteção e do desenvolvimento do seu potencial biológico e psicossocial (inciso I, letras “a”, “b”, “c” e “d”). A mesma Lei Complementar, já no Art. 32, inciso III, prescreve que o sistema único de saúde manterá em funcionamento atendimento integral aos portadores de deficiências, em todos os níveis de complexidade, incluindo o fornecimento dos equipamentos necessários à sua plena integração social. Nas disposições finais (Art. 74) foi previsto, sem prejuízo da atuação direta do SUS, que o Poder Executivo deve adotar as medidas necessárias para a execução continuada de programas integrados referentes à proteção especial ao deficiente, dentre outros destinatários. Importante referir — porquanto a tutela liminar pretendida vale-se de tal previsão — que o Estado, pelos seus órgãos competentes poderá celebrar convênios com a União, outros Estados-membros, os Municípios e com entidades públicas e privadas, nacionais, estrangeiras e internacionais, objetivando a execução dos preceitos específicos e Estatuídos no mencionado Código de Saúde do Estado de São Paulo (Art. 72).

A própria Declaração dos Direitos do Deficiente Mental, aprovada pela Assembléia Geral das Nações Unidas de 20 de dezembro de 1971, estabeleceu que “a pessoa mentalmente retardada tem direito à atenção médica e ao tratamento físico que requeira seu caso, assim como à educação, à capacitação, à reabilitação e à orientação que lhe permitam desenvolver ao máximo sua capacidade e suas aptidões”. Tal direito foi deliberado para que nos planos nacional e internacional haja a sua efetiva proteção.

Depreende-se, pois, que os entendidos indicam o tratamento especializado ao autista uma necessidade, apontando a residência terapêutica como uma solução viável, inclusive visando a humanização do atendimento e a reintegração social adequada. A Portaria n. 106, de 11 de fevereiro de 2000, no entanto, criadora dos serviços residenciais terapêuticos, além de não ter sido implementada no Estado de São Paulo, não responderá aos anseios dos defensores dos direitos dos autistas. Realmente, tal forma de tratamento foi criada para cuidar dos portadores de transtornos mentais, egressos de internações psiquiátricas de longa permanência. Ora, os autistas estão totalmente desamparados, sem acesso a quaisquer instituições públicas especializadas. Isto significa que também não terão direito às denominadas residências terapêuticas, infelizmente.

E o tratamento ao autista não pode ser igual a de um doente mental padrão. Mesmo esta parcela da população, no entanto, experimenta deficiências graves, havendo crianças e adultos vivendo em condições sub humanas em cárceres privados. Passagem jornalística importante é a colocada por L. F. Barros (educador, escritor e presidente do Projeto Fênix — Associação Nacional Pró-Saúde Mental, in Jornal da Tarde, 24/10/98, artigo “A Saúde Mental e a Cereja”): “Quem quer que se meta a calcular o custo/benefício de uma doença, há de se deparar com a necessidade de calcular qual é o custo de uma vida humana. Quanto vale a vida dos que se suicidaram por falta de tratamento psiquiátrico? Se alguém for capaz de realizar este cálculo, pode se considerar incluído no rol dos que precisam de tratamento”.

Importante é mencionar que a Lei n. 7853/89 estabelece uma série de direitos e obrigações do Estado no que se refere às pessoas portadoras de deficiência, ou seja, contempla também o universo autista. O Art. 2o. prescreve que o poder público e seus órgãos têm o dever de assegurar às pessoas portadoras de deficiência o pleno exercício de seus direitos básicos, inclusive, dentre outros, os relativos à saúde e à educação, estabelecendo que deve a administração dispensar tratamento prioritário e adequado. Na área da educação estabeleceu-se a denominada “Educação Especial”, bem como a inserção no sistema educacional das escolas especiais. Como obrigação, prescreveu-se a obrigatoriedade da oferta e a gratuidade da Educação Especial. No âmbito da saúde indicou-se a necessidade e a obrigação da criação de uma rede de serviços especializados em reabilitação e habilitação, bem como a garantia de acesso das pessoas portadoras de deficiência aos estabelecimentos de saúde público e privado, e de seu adequado tratamento neles, sob normas técnicas e padrões de conduta apropriados. Por fim, há preconizado o desenvolvimento de programas de saúde voltados para as pessoas portadoras de deficiência, os quais lhes ensejem a integração social.

Veja continuação da ação

Revista Consultor Jurídico, 7 de março de 2002.

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