Decisão unânime

TJ-SP rejeita pedido de PM de Diadema contra Casseta & Planeta

Autor

27 de maio de 2002, 10h54

O Tribunal de Justiça de São Paulo, por unanimidade, rejeitou recurso do policial militar de Diadema, Cleidenaldo Marinho de Souza, proposto contra a TV Globo. Esse não é o primeiro recurso negado pela Justiça no caso. Os policiais de Diadema questionam as piadas feitas no programa ‘Casseta & Planeta’ na década de 90.

Os humoristas satirizaram as situações ocorridas na Favela Naval, onde dez policiais foram filmados agredindo moradores durante uma blitz. Policiais que não estavam no local entraram na Justiça afirmando que se sentiram ofendidos pelo fato de trabalharem no 24º Batalhão de Diadema.

Nesse julgamento específico, o Tribunal de Justiça havia rejeitado o recurso por maioria de votos. Com a promoção do juiz Linneu Carvalho para o 1º TAC, o desembargador Osvaldo Caron (terceiro juiz), reconsiderou sua decisão. O entendimento foi favorável para a Globo e a decisão passou a ser unânime. A emissora é representada pelo advogado Luiz de Camargo Aranha Neto.

PODER JUDICIÁRIO

TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO

ACÓRDÃO

1. INDENIZAÇÃO. Responsabilidade civil. Dano moral. Abuso na liberdade de manifestação do pensamento e informação, praticado em programa de televisão. Exibição de programa humorístico que, produzido para a televisão, entra na modalidade legal de radiodifusão. Aplicação das regras da Lei de Imprensa. Se programa é apresentado pela televisão, não como reprodução de imagens de evento externo e estranho, mas como objeto próprio do meio, ou seja, como programa de televisão e, com ou sem abuso, como exercício simultâneo e imanente do poder de influir na opinião pública, então assujeita-se à regras da Lei de Imprensa.

2. INDENIZAÇÃO. Responsabilidade civil. Dano moral. Lei de Imprensa. Transcurso de mais de três meses entre a última transmissão do programa e a propositura da demanda. Decadência reconhecida pelo tribunal. Aplicação do art. 56, “caput”, da Lei nº 5.250/67. Transcorridos mais de três meses entre a última transmissão de programa de televisão, supostamente ofensivo, e a data da propositura da ação indenizatória, consumou-se decadência, nos termos do art. 56, “caput”, da Lei de Imprensa, o qual em nada contrasta com a vigente Constituição da República.

3. INDENIZAÇÃO. Responsabilidade civil. Lei de Imprensa. Dano moral. Abuso no exercício da liberdade de expressão. Inocorrência. Caso da “Favela Naval”. Programas humorísticos de televisão, que, sob a forma e os exageros artísticos próprios da sátira, exerceram direito de crítica aos crimes praticados por policiais militares, no exercício da função. Prevalência da mensagem sobre a roupagem artística. Intenção e capacidade ofensiva a terceiros, ademais, inexistentes. Verba não devida. Ação indenizatória proposta por soldado que, pertencente ao mesmo batalhão, não participou dos fatos criticados. Improcedência decretada. Improvimento ao recurso por duplo fundamento. Aplicação dos arts. 5º, incs. IV e XIV, e 220, caput e parágrafo 1º, da CR, e do art. 27, VIII, da Lei de nº 5.250/67, e art. 160, I, do CC. Não caracteriza abuso da liberdade de imprensa, mas exercício legítimo do direito de crítica, inofensiva a outros membros do destacamento, a exibição de programas humorísticos de televisão, em que, sob a forma e os exageros artísticos da sátira, se faz reprimenda severa a crimes graves praticados por policiais militares, no exercício da função.

Vistos, relatados e discutidos estes autos da APELAÇÃO CÍVEL nº 226.238-4/9-00, da Comarca de SÃO PAULO, em que é apelante CLEIDENALDO MARINHO DE SOUZA, sendo apelada TV GLOBO LTDA.

ACORDAM, em Segunda Câmara de Direito Privado do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, por votação unânime, adotado o relatório de fls. 238, negar provimento ao recurso.

1. Inconsistente o recurso.

Não há nenhuma razão jurídica por que não incida no caso, que é de ação indenizatória por suposto abuso na liberdade de manifestação do pensamento e informação, o art. 56, caput, da Lei Federal nº 5.250. de 9 de fevereiro de 1967, o qual em nada contrasta com a vigente Constituição da República, cujo art. 5º, incs. V e X, de modo algum impede à legislação subalterna impor limite temporal ao direito aí garantido, ou ao exercício da pretensão. O caso não é de direito, ação e pretensão perpétuos.

Não obstante conste, sobre o tema, outra leitura pretoriana, mais respeitável que convincente, afigura-se demasia ver, na só previsão da indenizabilidade do dano moral – cuja cláusula apenas sublimou à dignidade constitucional o que já estava implícito na ordem jurídica anterior -, óbice a que, na tarefa de lhe dar perfil mais definido e regulamentar o exercício, a legislação ordinária ponha termo breve ou brevíssimo ao exercício da pretensão (prescrição), ou à própria duração do direito subjetivo de ser indenizado (decadência), atendendo às exigências particulares do alto relevo que a mesma Constituição reconhece à liberdade da imprensa (art. 5º, IV, IX e XIV, e art. 220).


Não há nisso contradição normativa alguma, senão justificável conveniência político-legislativa em que se não prolongue estado de incerteza quanto ao exercício desse direito da personalidade, cuja limitação conseqüente não o descaracteriza nem degrada. Os intuitos da prescrição e da decadência foram concebidos para acudir à necessidade pública de, em nome doutros valores, terem limite temporal certos direitos, ações e pretensões, segundo o fluxo da vida. E a “vida corre célere, – mais ainda na era da máquina” (PONTES DE MIRANDA, “Tratado de Direito Privado”, RJ. Ed. Borsoi, 3ª ed., 1970, t. VI/101, parágrafo 662, nº 2).

Como não há contradição nem absurdo em que, contra a imprensa, seja menor o prazo de indenizabilidade do dano moral que o previsto à reparação ordinária do dano patrimonial, porque se trata de satisfação de ofensas a bens jurídicos heterogêneos e, como tais, a rigor irredutíveis a tratamento normativo unitário. Este só se tolera em termos de forçada analogia, quando seja hipótese de silêncio não eloquente, pois dano moral e dano patrimonial nada têm em comum. Não admira, pois, sejam diversos os prazos, nem que, em relação à esfera moral, o limite estatuído corresponda à concepção normativa de decadência, a qual pressupõe a existência de direito subjetivo material de duração limitada.

2. De que caia sob o império daquela lei especial todo abuso praticado por meio de programa de televisão, não deixa nenhuma dúvida a norma do art. 12, parágrafo único, que abrange, de maneira textual, entre as mídias, ou meios de comunicação de massa, os serviços de radiodifusão, cujo conceito, ligado à idéia de transmissão pública de sons, sinais e imagens por ondas eletromagnéticas, denota também os de televisão, segundo o que já estava, de modo não menos ostensivo, no Decreto nº 29.783, de 19 de julho de 1951 (art. 1º) e no Decreto nº 52.026, de 20 de maio de 1963 (art. 6º, nº 26), e está hoje, tão claro quanto antes, no art. 1º, caput, do Decreto nº 2.108, de 24 de dezembro de 1996. Televisão é, para a lei, modalidade de radiodifusão.

Tal inteligência, de si incontrastável porque vem de definição legal, é, aliás, confirmada doutras normas da mesma lei, que aludem, expressamente, à televisão como meio típico da prática de delito de abuso do direito de informar (arts. 7º, parágrafo 4º, e 68, caput), ou a tomam por pressuposto necessário de seus enunciados, como se vê, só para referir hipótese exuberante, da inclusão, para efeito de responsabilidade, no objeto das emissões de radiodifusão com autoria presumida, de “imagens transmitidas” (art. 28, parágrafo 1º), o que, a todas as luzes, não pode significar nem compreender coisa diversa.

Surpreenderia, pois, que o não percebesse desde logo a doutrina, a qual adverte com muita ênfase: “é preciso lembrar que o emprego do termo ‘radiodifusão’ é feito no sentido mais amplo de radiodifusão e televisão” (FREITAS NOBRE, “Lei da Informação”, SP, Ed. Saraiva, 1968, p. 20. Grifos do original. Idem, p. 56.).

E a razão óbvia dessa sujeição à lei específica, tendente a regular a chamada liberdade de imprensa, é porque muito “mais do que os jornais e os periódicos, o rádio e a televisão assumem nos tempos modernos papel relevantíssimo na divulgação de notícias, na disseminação de idéias, influenciando, poderosamente, a opinião pública, manipulando-a por vezes, alertando-a quase sempre, seja no sentido do bem, seja no sentido do mal” (DARCY DE ARRUDA MIRANDA, “Comentários à Lei de Imprensa”, SP, Ed. RT, 1969, v.l/150, nº 122). Ou, como se diz alhures com finura retórica: “The Age of Gutenberg has given way to the Age of Mcluhan” (BERNARD SCHWARTZ, “Constitutional Issues – Freedom of the Press”, NY, Oxford, Facts on File, 1992, p. 71).

Da extraordinária e incontroversa relevância da televisão como mídia é que, no conflito aparente de normas, se segue ainda a aplicação da lei particular, não do direito comum, cujas regras gerais situam a questão do ilícito civil sob perspectivas teleológicas diferentes, porque não distinguem a natureza do direito de que se abuse, às transgressões teóricas aos limites do direito de informar, consoante o velho princípio da especialidade. E, com a observação adicional de que, em se tratando de hipótese de decadência do direito de obter, em juízo, indenização por dano moral (art. 56, caput), que o direito comum não prevê, senão que submete as pretensões análogas ao prazo ordinário de prescritibilidade, tem-se, entre ambos, uma relação normativa de exceção a regra e, como tal, resolúvel com base noutro princípio, mas com idêntica consequência prática: “Na hipótese de uma das normas abrir uma exceção à regra estabelecida pela outra, é claro que só a norma excepcional se aplica: pode dizer-se que esta obriga a restringir, na medida da extensão da sua hipótese da correspondente norma geral” (JOÃO BAPTISTA MACHADO), “Âmbito de Eficácia de Competência das Leis”, Coimbra, Liv. Almedina, 1970, p. 222). Noutras palavras, incide o art. 56, caput, da Lei de Imprensa, que restringe, de modo excepcional, a existência do direito subjetivo oriundo de ato ilícito absoluto.


Pouco se dá que o conteúdo humorístico do programa pudesse caber na noção larga de espetáculo (de spectare = olhar, contemplar, reparar etc.), que, se este é apresentado pela televisão, não como reprodução parcial de imagens de evento externo e alheio, com o propósito de dar a conhecer, visualmente, o que nele aparece de fundamental, como ocorre nas transmissões esportivas (cf. JOSÉ DE OLIVEIRA ASCENSÃO, “Direito à Informação e Direito ao Espetáculo”, in “Estudos em Homenagem ao prof. Doutor Afonso Rodrigues Queiró”, Coimbra, Boletim da FD, nº especial, 1993, p. 292), mas como objeto próprio e exclusivo do meio, ou seja, como programa da televisão e, com ou sem abuso, como exercício simultâneo e imanente do poder de influir na opinião pública, então sujeita-se à regras da Lei de Imprensa.

É a mesma e vasta distância que medeia entre uma exibição de teatro humorístico, enquanto espetáculo que, não televisionado, escaparia à lei especial (art. 1º, parágrafo 2º), e o programa de que se trata, feito só para a tevê. Aqui, terá havido, nas sátiras, abuso gravoso no exercício da liberdade de manifestação de pensamento, mediante uso de serviço de radiodifusão (art. 12). Ali, não o teria, porque a exteriorização do ato não se teria dado por nenhum meio de comunicação social (mass media). A diferença não é pequena.

Pouco se dá que, na motivação do venerando Acórdão anterior, o eminente Relator sorteado haja entendido coisa diversa. Não há, a respeito, coisa julgada nem preclusão doutra ordem, porque tal venerando acórdão se limitou a afastar a extinção do processo, sem julgamento de mérito, que a primeira sentença decretara por suposta falta de interesse processual. Noutras palavras, o que ali se decidiu foi que havia interesse processual (cf.fs. 142-143 e 179-185).

De modo que, tendo transcorrido mais de 3 (três) meses entre a última transmissão do programa e a propositura da demanda, o que convinha, e convém, era pronunciar a decadência consumada, extinguindo o processo, com julgamento de mérito (art. 269, IV, do Código de Processo Civil).

3. Mas não é melhor o recurso, no mérito restante.

Reputadas verdadeiras e fiéis todas as imagens constantes da fita que, reproduzindo programas humorísticos atribuídos a prepostos da ré, instrui a inicial, não se lhes encontra, deveras, no conjunto dos fatos retratados, nenhum ilícito aquiliano, capaz de, a título de violação de direitos da personalidade do apelante, desencadear obrigação de lhe indenizar supostos danos morais.

Revelam, antes, manifestações próprias da liberdade de criação artística e da liberdade de imprensa, associadas de modo instrumental ao direito de crítica, que se exerceu no caso, sob o gênero artístico da sátira, sem nenhuma intenção ofensiva, contra agentes determinados da autoridade pública. Estão, assim, debaixo do pálio de cláusulas constitucionais (arts. 5°, incs. IV e XIV, e 220, caput e parágrafo 1°, da Constituição da República) e de excludentes infraconstitucionais (art. 27, VIII, da Lei federal n° 5.250, de 9 de fevereiro de 1967, e art. 160, I, do Código Civil).

É verdade que, em relação aos fatos conexos, não menos verdadeiros e tristemente conhecidos como o episódio da Favela Naval, objeto de largas matérias jornalísticas baseadas em gravações irretorquíveis e alvo direto do cautério mordaz daqueles programas, os quadros humorísticos controvertidos figuram também situações imaginárias, sobremodo absurdas quase todas, mas dotadas de grande potencial depreciativo, como, p. ex., simulações burlescas de prática de extorsão, corrupção passiva, concussão, estupro e sevícias, cuja autoria neles se adjudica, de maneira irônica e indiscriminada, a todos os componentes do mesmo batalhão policial militar a que pertence o demandante.

Não há nisso, porém, nada de insólito nem de injurídico, porque toda a gente sabe que é da essência da caricatura, da sátira e da farsa operarem mediante deformações hiperbólicas da realidade, residindo nesse exagero ou distanciamento dramático em relação ao real, que pode ser tanto dos eventos histórico-sociais, como das pessoas ou das coisas, o fator específico da identidade dessas formas de criação artística e da sua comicidade mesma, cujas manifestações, neste caso, constituem apenas o elemento alegórico de uma crítica severa mas justa, inspirada por motivo de grande valor social.

O caráter ridículo e sarcástico daquelas representações televisuais e, por conseqüência, toda a força de seu propósito crítico sustentam se, aqui, precisamente nos excessos metafóricos que, despertando a atenção e instigando a reflexão dos telespectadores, adquiriam capacidade de, por via do escárnio e da galhofa, não apenas assumir e encorpar, mas também suscitar, onde fossem ignorados ou subestimados, a indignação coletiva contra fatos reais trágicos e repugnantes. Esta é, aliás, uma das funções do riso: “Le rire est, avant tout, une correction. Fait pour humilier, il doit donner à Ia persone qui en est l’objet une impression pénible. La société se venge par lui des libertés qu’on a príses avec elle” (HENRI BERGSON, “Le Rire”, Paris, Lib. Félix Alcan, 1938, 469 ed., pp. 199-200).


Desde logo duas coisas há, aqui, muito para notar. A primeira, que, salva prova, que não há nem seria concebível no contexto, dalguma pérfida intenção injuriosa, que mal se disfarçaria nas peripécias daqueles espetáculos cômicas e, ainda assim, haveria de estar dirigida, em caráter pessoal, a todos os membros da unidade policial militar de Díadema, aos quais decerto os comediantes sequer conheciam ou conhecem, tal “exagero não pode ser causa de dano à personalidade como o é em outros campos” (CLAUDIO LUIZ BUENO DE GODOY, “A Liberdade de Imprensa e os Direitos da Personalidade”, SP, Ed. Atlas, 2001, p. 103), pela razão brevíssima de que se trata de predicado imanente à caricatura, enquanto modalidade da arte satírica em geral. E por isso as representações cénicas do gênero recebem da ordem jurídica, mediante o reconhecimento de larga eficácia justificadora, tutela idêntica à das outras formas autônomas de criação artística, cuja dignidade seria até superior à da própria liberdade de imprensa. Não é possível fazer obra satírica sem inventar e desfigurar situações, pessoas ou coisas.

A segunda, que, por resolver, neste campo, as recorrentes questões práticas oriundas da posição aparente de conflito teórico de valores em que se situam certas normas, em especial as jurídico-constitucionais, uma das mais importantes contribuições metodológicas vem da distinção, adiantada pelo Reíchsgerícht e difundida na doutrina e na jurisprudência estrangeiras, entre a roupagem literária ou plástica adotada pelo autor (Einkleidung) e a mensagem ou significado objetivo mediatizado pela caricatura (Aussagekem), cuja percepção só é nítida quando se abstraia à obra considerada o invólucro das palavras, dos desenhos ou das imagens cênicas.

Ora, porque a distorção de aspectos da realidade criticada é inerente à caricatura, não pode ser a mesma, para efeitos civis ou penais, a valoração jurídica de ambas essas dimensões do objeto artístico: “À roupagem cabe, assim, uma função prevalentemente apelativa: emprestar visibilidade e força à mensagem a transmitir. Acresce que é sobretudo na roupagem que se actualiza a liberdade de criação artística da sátira e da caricatura. O que confirma a expectativa já antecipada e segundo a qual a roupagem não colidirá normalmente com a dignidade pessoal. A acontecer, a colisão há-de, em princípio, levar-se à conta do custo social a suportar em nome da liberdade de criação artística… Só não será assim nos casos extremados em que a roupagem configura já ela própria um atentado irredutível e intolerável à dignidade humana” (MANUEL DA COSTA ANDRADE, “Liberdade de Imprensa e Inviolabilidade Pessoal”, Coimbra, Coimbra Ed., 1996, p. 244, a e b. Grifos do original. Cf., ainda, p. 175).

Aplicados ao caso tais critérios discretivos, de modo algum pode dizer-se, quanto à honra da totalidade dos membros de unidade policial militar, sejam ultrajantes em si mesmas, vistas como mera roupagem da obra humorística veiculada pelos programas, as situações inverossímeis e grotescas de criminalidade em que, na fantasia das tramas, os meteram produtores e atores. Não poderiam estes, aliás, estar animados dalgum inexplicável propósito de insultar pessoas anônimas e inocentes, senão que, a título claro de conteúdo semântico dos esquetes, intentavam desferir crítica áspera a eventos criminosos abjectos, em que, detraindo, eles, sim, a corporação e a função policial, se envolveram, não um ou dois, mas vários colegas de caserna do apelante. E não se referiam a fato imputável ao desatino ocasional de um praça, mas a ações sistemáticas de bando criminoso, incrustado num batalhão, de modo que nem tem pertinência à hipótese a forçada analogia que o apelante quer estabelecer, ad terrorem, com o caso isolado de um juiz corrupto.

A alta relevância social da mensagem, que era a de, pelo riso, expressar censura pública ao desvario policial e provocar a adesão dos telespectadores, segundo a velhíssima receita do teatro cômico (ridendo castigat mores), legitimava e justificava, pela natureza e pela eficácia retórica do meio de expressão, a evidente desproporcionalidade que, nas figurações cômicas, a invenção das situações e a generalização dos sujeitos representavam perante fatos históricos pontuais. Decisivos, aqui, são a licitude e o valor ético da mensagem, não a demasia estrutural das metáforas.

Segue-se daí, aliás, e trata-se de outra boa razão da inconsistência do recurso, que nenhum dos excessos descritos pelo apelante, do grotesco dos personagens à absurdez das situações, é dotado sequer de razoável credibilidade, que fosse capaz de, tomando verossímeis os fatos simulados, despertar reações populares hostis aos membros da corporação, submetê-los doutro modo à desconfiança e à execração pública, ou de lhes causar sensações dolorosas que, lesivas a valores jurídicos da afetividade, caracterizassem dano moral.


Aqui, o excesso seria do argumento. Não obstante o poder indutor da imprensa, em particular da televisão, a ninguém em seu juízo terá ocorrido imaginar, à vista das situações estapafúrdias e hilariantes encenadas nos programas, que todo o destacamento policial de Diadema fora composto de criminosos desavergonhados, tais como ali apareciam, não por acaso, na forma óbvia das caricaturas, cuja visível função primária não podia ser outra senão a de desatar o riso pela extravagância. Nem consta que algum soldado tenha, à época, sido vítima de manifestações agressivas, por conta daquele anedotário.

Tampouco têm algum relevo jurídico, melindres, falsos ou verdadeiros, de quem se apresente, nas circunstâncias, depreciado na estima própria ou na consideração alheia, pelo só fato de servir no mesmo destacamento policial militar dos autores da truculência e da arbitrariedade criminosas – as quais nem são raras no ofício -, debaixo do pretexto de sua dignidade pessoal haver sido atingida pela zombaria generalizada dos programas. Nenhum princípio ético justificaria tão imodesto sentimento de desonra, cuja explicação só poderia encontrar-se nalguma anomalia psíquica, num senso distorcido de reprovação moral, ou alhures. Que estivesse o demandante revoltado contra os maus companheiros de farda, isso até se entenderia; mas que o esteja só contra a emissora é coisa que mal se compreende!

Está visto, ao depois, que, em nome de suscetibilidades exacerbadas, não pode o ordenamento jurídico, comprometido com as liberdades civis e as chamadas garantias Institucionais (Einrichtungsgarantien), cuja positivaçâo é indispensável ao perfil de uma sociedade livre e democrática, reprimir aos humoristas profissionais e à imprensa, ainda quando demasiadas na forma e cáusticas no conteúdo, as expressões artísticas sob as quais exercitam o direito da crítica política ou político-social.

Não deixa de ser oportuno recordar, ao propósito, a advertência que, num caso famoso, até levado à tela cinematográfica sob o título vernáculo de “O Povo contra Larry Flint“, fez a Suprema Corte norte-americana, pelas mãos do Chief Justice Rehnquist, relevando, entre outros, o “cartoon portraying George Washington as an ass“, dado o proeminente papel que de há muito ali desempenham os caricaturistas no debate público e político: “From the viewpoint of hístory it is clear that our political discourse would have been considerably poorer without them” (Hustler Magazine v. Falwell, 485 U. S. 46 [1988]). Deveras, castrar a imprensa e os humoristas profissionais, subjugando-os, no exercício da critica social e política, a interesses pessoais subalternos, seria, quando menos, apreciável desserviço à vitalidade e à saúde democrática do país.

E sê-lo-ia ainda maior, quando a mesma crítica se dirige, com sobejas e fundadas razões, contra autoridades públicas, ou seus agentes, pilhados em ilicitudes incontestáveis no desempenho das funções que lhes comete o povo, como sucedeu na hipótese. Nada pode opor-se a fortiori, em tal caso, à verdadeira imunidade de que, na profundeza de seu alcance normativo, ditado pela reverência a valores supremos da República, a Constituição e as leis revestem a liberdade de imprensa, no papel de guardiã permanente da exação na esfera pública. Eventuais excessos retóricos da roupagem humorística adotada pela imprensa, enquanto talvez o mais eficiente mecanismo de controle popular das atividades públicas, se desvanecem aqui, mais uma vez, agora por razão jurídica de maior monta.

Apreciando outro caso, de certo modo, análogo ao deste, e em que supervisor do Departamento Policial de Montgomery, no Alabama, reclamava indenização a um grande jornal diário, sob fundamento de lhe haver imputado, em notícia inverídica; a expedição de ordem ilegal e criminosa, firmou ainda a Suprema Corte norte-americana, à luz da Primeira Emenda, que ali protege, entre outros valores, a liberdade de opinião, ou de imprensa, precedente valiosíssimo, cuja síntese, de todo aplicável à nossa ordem jurídica, reflete a supremacia quase absoluta do interesse público neste tema: “[W] e consider this case against the background of a profound national commitment to lhe principle that debate on public issues should be uninhibited, robust, and wide-open, and that it may well include vehement, caustic and sometimes unpleasantly sharp attacks on government and public officials “. Votos vencedores foram aí mais longe, reconhecendo à imprensa an absolute immunity for criticism of the way public officials do their public duty” (New York Times Company v. Sullivan, apud VAN ALSTYNE, “First Amendment – Cases and Material”, Westbury, NY, The Foundation Press, 2ª ed., 1995, pp. 195 e 201).

É, em resumo, o de que trata a espécie, na qual há de se garantir à ré, sem restrição alguma, a liberdade com que, na forma de quadros humorísticos, verberou, com justeza e vivacidade, atos notórios da mais grave delinqüência, praticados por policiais militares, por ocasião e sob pretexto do exercício da função pública.

E, para o reconhecer, escusa dilação probatória. Já nada há por provar, que mude esse juízo certeiro, que constitui o segundo fundamento substancial deste acórdão.

4. Do exposto, negam provimento ao recurso. Custas ex lege.

Participaram do julgamento os Desembargadores J. ROBERTO BEDRAN (Revisor) e OSVALDO CARON, com declaração de voto.

São Paulo, 5 de março de 2002.

CEZAR PELUSO

Presidente e Relator

DECLARAÇÃO DE VOTO VENCEDOR .

APELAÇÃO CÍVEL N° 226.238-419

SÃO PAULO

Reconsidero meu voto anterior, em assunto similar, passando a adotar o entendimento majoritário desta Egrégia Câmara. Incide a lei de Imprensa quando o invocado abuso foi praticado por meio de programa de televisão. Como adverte Freitas Nobre, o emprego do termo “radiodifusão” é feito no sentido mais amplo, da radiodifusão e da televisão (Lei de Informação, pp. 20 e 56, São Paulo: Saraiva, 1968).

O art. 10, parágrafo 20, da Lei de Imprensa – afirma que “o disposto neste artigo não se aplica a espetáculos e diversões públicas, que ficarão sujeitos a censura, na forma da lei”.

Mas, espetáculos e diversões públicas não constituem matéria disciplinada na Lei de Imprensa, falada ou escrita – adverte Darcy de Arruda Miranda, com remissão ao art. 220, parágrafo 3° da Constituição de 1988 (Comentários à Lei de Imprensa, Tomo I, f. 88; São Paulo: Ed. Revista dos Tribunais, 2ª edição, 1994).

Ademais, os espetáculos e diversões públicas devem ser examinados no contexto do que efetivamente significam – tudo quando atrair ou agradar a atenção de alguém, ou tudo o que constitua manifestação do pensamento, em mais formas escritas lançada ao ar pelo rádio ou televisão.

No caso, charges humorísticas do “Casseta & Planeta” foram ao ar (março/97 a janeiro/98) como produto do pensamento social e político de seus autores ou idealizadores.

Por isso, com o Relator, nego provimento ao recurso.

OSVALDO CARON

Tags:

Encontrou um erro? Avise nossa equipe!