Contratos de distribuição

O abuso de direito na denúncia dos contratos de distribuição

Autor

  • Paulo Eduardo Lilla

    é acadêmico de Direito da Fundação Armando Álvares Penteado – FAAP e do Curso de Relações Internacionais da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo – PUC – SP.

21 de maio de 2002, 12h35

1. INTRODUÇÃO

A segunda metade do século XX foi marcada por diversas inovações no âmbito do comércio. O desenvolvimento tecnológico, a globalização, e a implementação de um sistema eficaz de proteção aos consumidores, possível através do fenômeno da publicização do direito privado, fato que pode ser bem notado no direito dos contratos, foram, sem dúvida, os principais fatores que contribuíram para a intensificação das relações comerciais no mundo.

Importante ressaltar que, dentro desse contexto, a integração entre produtores e distribuidores, através do contrato, torna possível um maior desenvolvimento do mercado e, conseqüentemente, maiores vantagens para o consumidor que se beneficia adquirindo e usufruindo produtos e serviços de qualidade e com assistência técnica garantida.

A evolução da economia moderna impõe ao fabricante a preocupação de distribuir seus produtos com maior agilidade, abrangência territorial e eficácia nos serviços prestados, o que seria impossível sem investimentos em publicidade e utilização de sofisticadas técnicas de marketing, serviços de assistência técnica à clientela para atender a demanda do mercado consumidor.

Para atingir tais finalidades, o fabricante deve dispor de uma rede organizada de distribuidores que, através de uma política comercial uniforme, estratégia de vendas e planejamento comum de atividades, possa reduzir os custos na produção, obtendo maiores lucros nas vendas, e, conseqüentemente, trazendo benefícios não só para ele, mas também para o distribuidor que, uma vez sendo comerciante independente, beneficia-se da utilização da marca do fabricante para desenvolver seu comércio.

Essa relação contratual entre empresas ligando a produção ao público consumidor através da intermediação do distribuidor é bem fundamentada por ENZO ROPPO: “Se o contrato adquire relevância cada vez maior com o progressivo afirmar-se do primado da iniciativa da empresa relativamente ao exercício do direito de propriedade, é também porque este constitui um instrumento indispensável ao desenvolvimento profícuo e eficaz de toda a atividade econômica organizada. Poderia assim dizer-se, para resumir numa fórmula simplificada a evolução do papel do contrato, que de mecanismo funcional e instrumental da propriedade, ele se tornou mecanismo funcional e instrumental da empresa(1).

Diante de tais considerações, torna-se relevante a abordagem do tema referente aos contratos de distribuição, sua importância tanto jurídica como econômica, responsáveis pelo desenvolvimento dessa verdadeira integração entre empresas, com a finalidade de intensificar e aperfeiçoar, em larga escala, produção, serviços e distribuição ao mercado consumidor. Os contratos de distribuição são, na verdade, um dos mais importantes instrumentos jurídicos de nossa sociedade, principalmente nessa passagem de século, com o desenvolvimento da comunicação e da informática, propulsores do desenvolvimento tecnológico e da globalização do comércio.

A relevância do tema estende-se à atipicidade mista do contrato de distribuição, fato que sempre gerou inúmeras controvérsias tanto nos tribunais brasileiros, quanto estrangeiros. Com o advento do Novo Código Civil que, a princípio, passa a vigorar em janeiro de 2003, o contrato de distribuição torna-se típico, regulado, com diversas lacunas, no Capítulo XII, artigos 710 e seguintes, que dispõe sobre os contratos de agência e distribuição.

Sem dúvida, o principal problema enfrentado pelos nossos tribunais no julgamento de litígios envolvendo contratos de distribuição, são os abusos cometidos na extinção desses contratos, fato que levou também o legislador a regular essa questão no Novo Código Civil.

Muitos fabricantes abusam do direito de resilir unilateralmente o contrato, notificando, mediante denúncia, o distribuidor, concedendo prazo de aviso prévio ínfimo, ou até mesmo sem aviso prévio, o que faz da denúncia, verdadeira rescisão contratual, trazendo diversos prejuízos para o distribuidor que, de uma hora para outra, perde seu negócio e todos os seus investimentos, amargando enorme prejuízo.

O presente estudo tem como finalidade analisar exatamente a questão da denúncia abusiva dos contratos de distribuição, observando o entendimento da doutrina, da jurisprudência e, finalmente, as regras do Novo Código Civil para evitar que esses abusos ocorram como vêm ocorrendo nos últimos anos.

Antes de examinarmos essa questão, cumpre-nos delimitar subjetivamente o tema de forma a fundamentar a terminologia que será adotada no presente estudo, bem como delimitar o tema objetivamente para analisar as principais características dos contratos de distribuição e sua natureza dentro do contexto de sua qualificação jurídica.

2. DELIMITAÇÃO SUBJETIVA

2.1. Terminologia Adotada


A terminologia designada aos contratos de distribuição é muito controversa, tanto na doutrina, quanto na jurisprudência. Apesar de alguns autores utilizarem-se da expressão “contrato de distribuição”, grande parte prefere os termos “concessão comercial”, “concessão mercantil” ou “concessão de venda”.

Essa controversa vem gerando confusão entre juristas, confusão essa que poderia ser evitada, dada a objetividade prática dessa figura contratual tão relevante no atual contexto das relações comerciais, tanto no âmbito nacional, quanto internacional.

O Direito Europeu, mais precisamente da França e da Itália, vem desenvolvendo estudos sobre a matéria, objeto do presente trabalho, onde está bem fundamentado o chamado “Direito da Distribuição”, ou “Contratos da Distribuição”, que seria o gênero do qual várias figuras contratuais semelhantes seriam espécies. Dentro dos chamados “Contratos da Distribuição”, poderíamos assinalar os contratos de concessão mercantil, franquia, agência, dentre outros,(2) cuja principal semelhança é a distribuição – função econômica comum aos tipos contratuais supramencionados.

Acreditamos ser mais adequado o termo “contratos de distribuição” em sentido genérico, englobando também os contratos de concessão comercial. Não há distinção prática entre contratos de distribuição e contratos de concessão mercantil, como assinalam alguns doutrinadores que acreditam que na distribuição a integração entre fabricante e distribuidor é menos intensa, pois admite subdistribuição; já na concessão mercantil tal prática seria inviável.

Não há razão para distinções e formulações de teorias que determinem diferenças entre o contrato de distribuição e concessão comercial. Tais distinções servem somente para confundir, de maneira desnecessária, empresários e profissionais do direito que estudam a matéria.

Tal confusão é manifesta na jurisprudência brasileira que utiliza ora o termo “contrato de distribuição”, ora o termo “contrato de concessão comercial”, dentre outros, para designar relações jurídicas semelhantes em que sempre há um comerciante fabricante, produtor, ou concedente, e outro comerciante distribuidor, revendedor ou concessionário.

Cumpre-nos ressaltar que há uma espécie de contrato de distribuição tipificado por lei especial, qual seja, a concessão comercial de veículos automotores em via terrestre, regulado pela Lei nº 6.729/79, a chamada Lei Ferrari.

A terminologia aqui adotada trata dos contratos de distribuição de maneira genérica, ou seja, para o presente estudo, consideramos os contratos de distribuição e de concessão comercial como sinônimos. O contrato de distribuição é o mesmo contrato de concessão comercial lato senso, distinto, por sua vez, do contrato de concessão comercial de veículos automotores regulado pela Lei nº 6.729/79.

Dessa forma, afastamos desde logo possíveis confusões que em nada contribuem para o desenvolvimento e aprofundamento da matéria sob análise.

3. DELIMITAÇÃO OBJETIVA – QUALIFICAÇÃO JURÍDICA DOS CONTRATOS DE DISTRIBUIÇÃO

3.1. Conceito

Podemos conceituar a distribuição comercial , na lição de ORLANDO GOMES, como sendo a “atividade de revenda de produtos, mercadorias ou artigos que compra ao fabricante e distribui com exclusividade, comercializando-os em certa zona, região ou área” (3). Para HUMBERTO THEODORO JÚNIOR e ADRIANA MANDIM THEODORO DE MELLO, “os contratos de distribuição lato sensu são aqueles que se destinam a dar forma a relações entre fabricante e distribuidor, regendo as obrigações existentes entre eles, destinados a organizar a atividade de intermediação e venda da produção, levando-a até o consumidor final. São chamados contratos de distribuição aqueles que estabelecem a obrigação de uma das partes promover a venda dos produtos fornecidos pela outra parte, e cuja execução implica estipulação de regras gerais e prévias destinadas a regulamentar o relacionamento duradouro que se estabelece entre os contratantes”.(4)

Nota-se que nesses contratos é imprescindível a figura de um comerciante, fabricante ou produtor, que vende produtos a outro comerciante, distribuidor, para revenda ao mercado consumidor em certa zona pré-determinada.

Para GALGANO, “o contrato de concessão de venda aproxima-se do contrato de fornecimento, já que o produtor concedente se empenha em fornecer ao revendedor concessionário a quantidade de produtos que este lhe requer. O revendedor concessionário se obriga a estocar uma quantidade mínima contratualmente pré-estabelecida e a executar a venda em uma zona determinada”.(5)

Não podemos esquecer de expor a lição lapidar de CHAMPAUD, para quem o “contrato de concessão comercial pode ser entendido como uma convenção pela qual um comerciante, o concessionário, coloca sua empresa de distribuição ao serviço de um comerciante ou industrial, o concedente, para assegurar, exclusivamente, sobre determinado território, por um período determinado e sob fiscalização do concedente, a distribuição de produtos cujo monopólio de revenda lhe é concedido”.(6)


Podemos assinalar três aspectos relativos do lapidar conceito de CHAMPAUD. O primeiro aspecto diz respeito à exclusividade, hoje entendida como elemento acessório desse tipo de contrato. Pela cláusula de exclusividade, que será estudada mais adiante, assinala BULGARELLI, “o concessionário se obriga a não comercializar ou fabricar outro produto do mesmo tipo daquele indicado no contrato”.(7) No entanto, ao contrário do que CHAMPAUD assinalara sobre a cláusula de exclusividade como requisito fundamental do contrato de distribuição, hoje, percebe-se que tal cláusula é acessória, como ensina ANTONIO PINTO MONTEIRO, para quem “o direito de exclusivo não é essencial ao contrato de concessão”.(8)

Os outros aspectos relativos são concernentes à exclusividade territorial ou de zona, e ao período da relação contratual. Enquanto o primeiro é também cláusula acessória, podendo ser ajustada ou não pelas partes, o segundo diz respeito à durabilidade do contrato. De acordo com a melhor doutrina, os contratos de distribuição podem ser ajustados tanto por tempo determinado, quanto por tempo indeterminado, desde que haja um prazo mínimo de duração suficiente para o distribuidor obter o retorno esperado de seus investimentos. Uma das características principais desse tipo de contrato é a durabilidade, configurando-se abuso de direito a denúncia de contrato de distribuição por tempo indeterminado sem haver transcorrido prazo suficiente de acordo com a natureza do negócio e investimentos do distribuidor.

A função econômica do contrato sob análise é a distribuição de produtos ao mercado consumidor. Há duas formas de distribuição que podem ser exercidas pelo industrial, a fim de proporcionar vendas em larga escala e em territórios distantes da empresa fabricante. Dessa forma, podemos assinalar a distribuição direta e indireta.

A distribuição direta consiste na transferência imediata do fabricante ao mercado consumidor, através de agentes ou representantes comerciais não autônomos que são responsáveis por essa intermediação. Nesses casos, de acordo com BOITEAUX, “à independência jurídica, não corresponde uma efetiva independência econômica e, dado que a empresa se integra na organização comercial da empresa produtora, entende-se que a distribuição é direta”.(9)

Já a distribuição indireta é determinada não pela intermediação, mas pela integração entre a empresa do fabricante, concedente, e a empresa do distribuidor, empresa esta, dotada de certa independência jurídica e econômica(10), que será responsável pela distribuição do produto do fabricante, através de revenda ao mercado consumidor.

Nota-se que o fabricante tem a oportunidade de acesso ao mercado consumidor de maneira ágil, sem maiores despesas ou encargos, enquanto que o distribuidor goza do prestigio e bom nome da marca do fabricante. Trata-se de contrato de integração e de colaboração, como veremos adiante.

Para TERESA PUENTE MUÑOZ trata-se de “um método original de distribución de productos, una manifestación del esfuerzo de renovación del comercio en la medida que permite estabelecer unos tipos de lazos entre fabricantes y comerciantes asegurando un mejor servicio al consumidor” (11). Diante da integração entre fabricante e distribuidor, o maior beneficiário dessa relação é, sem dúvida, o próprio consumidor. A distribuição é hoje veículo de adequação da oferta à procura, em que os diversos profissionais atuantes no negócio buscam aperfeiçoar cada vez mais o atendimento à clientela, reduzir os custos e otimizar as vendas sem prejudicar a qualidade dos produtos comercializados(12). Trata-se de atividade vantajosa, em que todos saem ganhando, principalmente o consumidor, principal beneficiário no negócio.

Alguns autores não vêem distinção entre contrato de distribuição ou concessão mercantil e contratos de franquia, como é o caso do Prof. RUBENS REQUIÃO(13), que os considera como sinônimos, consideração, aliás, afastada por BULGARELLI para quem “a franquia se distingue da concessão mercantil, dada não só a sua amplitude, pois abrange produtos e serviços, mas também as suas peculiaridades, pois implica cessão de marca ou nome comercial e assistência técnica” (14).

No mesmo sentido transcrevemos na íntegra a excelente lição de FÁBIO KONDER COMPARATO: “A concessão de venda é, exclusivamente, contrato de distribuição de produtos; a licença de uso de marca ou a eventual prestação de serviços do concedente ao concessionário são meros acessórios do pacto principal, que estipula a exclusividade na distribuição de produtos, ou seja, bens fabricados pelo concedente. Na franquia, o essencial é a licença de utilização de marca e a prestação de serviços de organização e métodos de venda pelo franqueador ao franqueado. A finalidade de distribuição da franchise não abrange, pois, apenas produtos, mas também mercadorias (isto é, revenda de comerciante atacadista e retalhista) e serviços, como a hotelaria, por exemplo. Por conseguinte, na concessão de venda, o concessionário é simples intermediário entre o concedente e o público consumidor; enquanto na franquia, o franquiado pode ser, ele próprio, produtor de bens ou prestador de serviços” (15).


Cumpre-nos ressaltar que na Europa, tanto a concessão comercial, quanto a franquia, fazem parte dos chamados “contratos da distribuição”, posto que apesar das peculiaridades inerente a cada uma das figuras contratuais, ambas possuem a mesma finalidade econômica, qual seja, a distribuição mercantil.

3.2. Características

Os contratos de distribuição são contratos de compra e venda continuada em que o fabricante se obriga a vender seus produtos ao distribuidor, com certas vantagens, sendo que este, por sua vez, se obriga a revender ao mercado consumidor, em zona determinada ou não, por prazo determinado ou indeterminado.

São portanto contratos de execução continuada, de integração entre o fabricante e o distribuidor que, através de colaboração recíproca, buscam também vantagens recíprocas na distribuição de produtos aos consumidores.

A integração que envolve fabricante e distribuidor, diz respeito a verdadeiras redes de distribuição organizadas em diversas regiões e que são responsáveis por vendas em larga escala. Tal organização em rede, promovida pelo fabricante, gera a integração mencionada. A idéia de integração substitui a de subordinação, marcante, muitas vezes, no contrato de representação comercial. Integração significa a união de duas empresas dotadas de autonomia jurídica e econômica que, apesar de desempenharem funções diferentes, buscam o mesmo fim. Nos contratos de distribuição, uma empresa fabrica e vende para outra empresa, que se obriga a revender ao mercado consumidor, obtendo na diferença entre o que pagou e o que vendeu, ou seja, no lucro, a remuneração pela sua atividade mercantil.

Dessa forma, todos saem ganhando, o fabricante, que tem seus produtos distribuídos em larga escala, e o distribuidor, que, ao gozar da utilização do nome da marca e de seu prestigio, tem suas vendas facilitadas, apesar de ter também a obrigação de investir em propaganda e marketing com o intuito de atrair a clientela, fato que traz também a idéia de colaboração recíproca.

Alguns autores acreditam que há um controle abusivo do fabricante na empresa do distribuidor e que, por isso, não haveria autonomia jurídica, nem econômica, posto que o fabricante tem o poder de controlar a atividade empresarial de sua rede de distribuidores.

Certamente, há uma espécie de controle, já que o distribuidor lida com a marca e o nome do fabricante, devendo também seguir o mesmo padrão de revenda das demais distribuidoras da rede. Trata-se, na verdade, de uma uniformização de política empresarial com vistas a estabelecer o mesmo padrão de qualidade tanto nos serviços quanto nas vendas.

Como explicam, com propriedade, HUMBERTO THEODORO JÚNIOR e ADRIANA MANDIM THEODORO DE MELLO, “não se pode alcançar a identidade própria, característica da rede de distribuição, bem como o padrão de qualidade de bens e serviços idealizado pelo fabricante, senão pela imposição de sistemas, métodos e comportamentos que confiram aos vários integrantes autônomos de uma rede uma imagem unitária” (16).

No mesmo sentido, TERESA PUENTE MUÑOZ esclarece que “o concessionário gozará de una exclusiva de venta, contraprestación a las limitaciones que el control y vigilância del concedente imponem a su actividad mercantil. El concessionário hará suyos los benefícios de la reventa. Pero soportará en cambio que el concedente dirija la “política de venta” de su empresa. El concessionario, a su vez, puede reconocer al concedente una exclusiva de aprovisionamiento, lo que liga más estrechamente a la empresa del concedente de la que pasa a ser un instrumento o modo de venta, pudiéndose llegar, de hecho, a una integración de su empresa en la de concessionario” (17).

Nota-se que, se por um lado o fabricante pode controlar a política de venda do distribuidor, por outro lado, o distribuidor pode vender exclusivamente os produtos do fabricante, tornando ainda mais estreita a integração entre ambos.

3.3. Natureza Jurídica – Atipicidade Mista dos Contratos de Distribuição

Como já mencionado, a única lei no Brasil a regular relação entre fabricante e distribuidor é a Lei nº 6729/79 que dispõe sobre a concessão comercial de veículos automotores em via terrestre. Trata-se de contrato típico para esse fim.

Os demais contratos de distribuição ou concessão mercantil são contratos atípicos mistos, portanto, não sujeitos a qualquer regulamentação legal. Cumpre-nos ressaltar que o Novo Código Civil tipifica os contratos de distribuição, porém a vasta jurisprudência brasileira das últimas décadas tratou desses contratos como figuras atípicas mistas, daí a importância da presente análise.

O jurista português PEDRO PAIS DE VASCONCELOS, ensina, com muita propriedade e simplicidade, que “os contratos atípicos são os que não são típicos. Saber quais contratos são atípicos pode parecer simples em abstrato, mas em concreto pode ser difícil. Quando se fala de contratos atípicos quase nunca se distingue e quase sempre se está, na verdade, a falar de contratos legalmente atípicos. No entanto, há muitos tipos contratuais que estão consagrados na prática e não na lei. Não são poucos os casos de contratos legalmente atípicos, que são socialmente típicos” (18).


Dessa forma, os contratos de distribuição são contratos legalmente atípicos, pois não são tipificados em lei, mas são socialmente típicos, posto que se trata de figura contratual, há muito, consagrada no meio empresarial e reconhecida no meio jurídico pela doutrina e jurisprudência.

Quanto à natureza mista dos contratos, o mesmo autor assinala que “o que dá aos contratos mistos uma fisionomia própria é o fato de não corresponderem a um único modelo típico, e só a esse modelo típico, que lhes dê um quadro regulativo que permita a contratação por referência e a integração de sua disciplina. Este fato de não correspondência a um modelo típico é, no fundo, o que caracteriza os contratos atípicos”. E assim conclui: “dentro do gênero dos contratos atípicos, os contratos mistos são construídos por referência tipos que foram modificados ou misturados e por suscitarem problemas próprios de determinação do regime” (19).

Após breve análise dos contratos atípicos mistos, trazemos a questão ao contrato de distribuição, formado, principalmente, pelo contrato de compra e venda, suporte inicial da figura contratual sob análise.

Na lição de ÁLVARO VILLAÇA AZEVEDO, “quando o elemento típico se soma com outro típico ou, mesmo, atípico, desnatura-se a contratação típica, compondo esse conjunto de elementos um novo contrato, uno e complexo, com todas as suas obrigações formando algo individual e indivisível” (20).

Podemos dizer que nos contratos de distribuição há uma verdadeira combinação das disciplinas de várias convenções típicas e atípicas, tais quais a compra e venda comercial, a franquia, o mandato mercantil, a comissão, a representação comercial, a agência, empreitada, etc.

Pelo fato dos contratos de distribuição não gozarem de amparo legal, nossos Tribunais sofreram, nas últimas décadas, para qualificar esses contratos e julgar os diversos litígios envolvendo fabricantes e distribuidores, evitando abusos de direito na extinção dos contratos, matéria objeto do presente estudo.

Alguns autores acreditam ser possível a aplicação analógica da lei que dispõe sobre concessão comercial de veículos automotores em via terrestre, a Lei nº 6.729/79, ou até mesmo da Lei nº 4886/65, de Representantes Comerciais, por considerarem as flagrantes semelhanças entre esses contratos e os contratos de distribuição.

Essa possibilidade, no entanto, não foi acolhida pela jurisprudência brasileira, que se fixou contrária à possibilidade de aplicação de outras leis especiais(21).

Essa discussão gerou e ainda gera muita polêmica e, mesmo não sendo objeto do estudo em análise, cumpre-nos fazer algumas considerações.

Alguns autores, amparados pelo artigo 4º da Lei de Introdução ao Código Civil(22), acreditam que é preciso superar o dogma de que apenas as normas gerais de um dado sistema jurídico ensejam integração analógica, vedada às normas especiais(23).

LEONARDO SPERB DE PAOLA fundamenta sua opinião da seguinte forma: “Fica assente, pois, a possibilidade de aplicação analógica de soluções previstas pelo legislador para os contratos de representação comercial, e, principalmente, para os contratos de concessão comercial de venda de veículos automotores aos demais contratos de distribuição” (24).

No mesmo sentido, JOSÉ ALEXANDRE TAVARES GUERREIRO, ao considerar a aplicação analógica da Lei 6.729/79 aos demais contratos de distribuição, assinala que “a aplicação analógica, amplamente justificada e recomendada pela identidade essencial de situações fáticas (art. 4º da Lei de Introdução ao Código Civil), impõe-se, in casu, em nome do princípio de isonomia, que é pedra angular de todo o sistema jurídico, porquanto, afrontaria aos mais rudimentares elementos da eqüidade aceitar que o legislador pudesse criar desigualdade de tratamento entre iguais, ou pudesse instituir injustificáveis privilégios em favor, apenas, dos distribuidores de veículos automotores” (25).

Opinião contrária é compartilhada por EROS ROBERTO GRAUS e PAULA ANDREA FORGIONI, que acreditam ser a aplicação extensiva da Lei nº 6.729/79 prejudicial à livre concorrência: “O art. 3º da Lei nº 6.729/79 não pode ser interpretado extensivamente, de forma a abranger a restrição pretendida pelo fabricante”. E assim concluem os juristas: “A interpretação extensiva do preceito conduziria, inevitavelmente, à violação do princípio da livre iniciativa (e, pois, da livre concorrência)” (26).

Para solucionar o problema trazemos a lição do notável jurista NORBERTO BOBBIO, que assim explica: “A comunhão da ratio legis entre dois casos representa portanto, no campo do direito, aquela comunhão da razão suficiente que torna legítimo o raciocínio por analogia. Assim, quando num caso não regulado se encontra a mesma ratio que funda a disciplina de um outro caso, também ao primeiro pode ser estendida essa mesma disciplina” (27).


No mesmo sentido, merece citação a lapidar lição de CARLOS MAXIMILIANO: “Funda-se a analogia, não como se pensou outrora, na vontade presumida do legislador, e, sim, no princípio de verdadeira justiça, de igualdade jurídica, o qual exige que as espécies semelhantes sejam reguladas por normas semelhantes; neste sentido aquele processo tradicional constitui genuíno elemento sociológico da Aplicação do Direito” (28).

Diante dessas importantes considerações jurídicas, poderíamos ser levados a nos convencer de que pelas flagrantes semelhanças entre os contratos de concessão comercial de veículos automotores em via terrestre, e os demais contratos de distribuição, bastaria ao legislador a aplicação da Lei nº 6.729/79 por analogia a todo e qualquer caso que envolvesse fabricantes ou concedentes e distribuidores ou concessionários.

Devemos tomar muito cuidado com tal afirmação, posto que, de acordo com TÉRCIO SAMPAIO FERRAZ Jr., “a norma singular é, pois, aquela que, para atingir uma utilidade especial, vai contra um princípio geral. Ora, sua peculiaridade é assim a de abrir uma exceção para certos casos. Se o faz para estes, não pode ser usada por analogia para outros; ou teríamos, então, para o sistema, de novo, uma insuportável abrangência” (29).

Dessa forma, não caberia a aplicação de uma norma especial a um caso semelhante, podendo apenas ser aplicadas normas de cunho geral e os princípios gerais do direito. Não poderia, portanto, estender-se a aplicação da Lei nº 6.729/79 aos demais contratos de distribuição, posto que trata-se de uma lei especial e não geral.

Uma solução possível para o problema seria não a utilização da Lei Ferrari por analogia, mas a utilização de alguns de seus princípios a determinados casos concretos nos quais esses princípios serviriam como inspiração para o juiz no momento de julgar a demanda.

Esta parece ser a posição adotada por ORLANDO GOMES, referindo-se à possibilidade de aplicação da Lei nº 6.729/79, afirma: “Conquanto se limite a regular, para o setor, o contrato de distribuição, suas disposições, com exceção de umas poucas, podem ser aplicadas por analogia, às outras relações entre produtores e distribuidores” (30).

De qualquer forma, a jurisprudência brasileira já fixou regras básicas para a extinção dos contratos de distribuição, de acordo com os princípios gerais do direito e, especialmente, com os princípios gerais do direito das obrigações, negando, outrossim, a possibilidade de aplicação analógica tanto da Lei 6.729/79 (Lei Ferrari), quanto da Lei 4.886/65 de representantes comerciais, apesar de algumas decisões isoladas considerarem essa possibilidade.

3.4. O Contrato de Distribuição no Novo Código Civil

Finalmente, após inúmeras controvérsias a respeito da atipicidade mista do contrato de distribuição, o Novo Código Civil tipifica o contrato, fixando regras básicas a serem seguidas pelo fabricante e pelo distribuidor.

O Novo Código Civil aproximou o contrato de distribuição do contrato de agência, por considerar diversas semelhanças entre essas figuras contratuais; semelhanças, há muito, notadas em alguns países europeus, principalmente pelo direito português que permite, em determinados casos, a aplicação analógica da lei que regula o contrato de agência aos contratos de distribuição.

O artigo 710 do Novo Código Civil dispõe que “pelo contrato de agência, uma pessoa assume, em caráter não eventual e sem vínculos de dependência, a obrigação de promover, à conta de outra, mediante retribuição, a realização de certos negócios, em zona determinada, caracterizando-se a distribuição quando o agente tiver à sua disposição a coisa a ser negociada”. Nota-se que o legislador qualifica o distribuidor, diferenciando-o do agente, simplesmente por ter à sua disposição a coisa a ser negociada. Trata-se de um conceito imperfeito, que não traduz a real atividade do distribuidor, qual seja, a de comprar para revender, fato importante e que foi omitido pelo legislador.

Essa omissão pode trazer à tona uma possível confusão entre o contrato de distribuição e o contrato estimatório. Pelo contrato estimatório, segundo o artigo 534 do Novo Código Civil, “o consignante entrega bens móveis ao consignatário, que fica autorizado a vendê-los, pagando àquele o preço ajustado, salvo se preferir, no prazo estabelecido, restituir-lhe a coisa consignada”.

Percebe-se que no contrato estimatório o consignante também tem à sua disposição a coisa a ser negociada. A diferença principal entre os dois contratos é que na distribuição o distribuidor compra para revender, sendo que na estimação o consignatário adquire o bem não através de compra, mas através de consignação para posterior venda. Na distribuição o distribuidor obtém a propriedade sobre o bem que será distribuído ao mercado consumidor, já na estimação, o consignatário obtém, tão somente, a posse sobre o bem que poderá ou não ser distribuído, sendo que, se não for, deverá ser devolvido ao consignante.


O conceito do artigo 722 do Novo Código Civil pode vir a trazer problemas de interpretação que deverão ser solucionados pela jurisprudência.

Segundo VENOSA, “assim como o agente, o distribuidor deve gozar de independência e autonomia, pois conduz negócio próprio e assume os respectivos riscos (art. 713)” (31). Esse entendimento é de suma importância, pois alguns autores acreditam haver subordinação do distribuidor perante o fabricante, o que nem sempre ocorre.

O Novo Código Civil traz algumas regras para a dissolução dos contratos de distribuição como veremos mais adiante, já que muitos abusos vêm sendo cometidos na denúncia desses contratos.

VENOSA classifica o contrato de distribuição, de acordo com o Novo Código Civil, como “contrato consensual, bilateral, oneroso, comutativo, nominado, típico, informal, de duração e intuitu personae(32).

De acordo com o artigo 721, “aplicam-se ao contrato de agência e distribuição, no que couber, as regras concernentes ao mandato e à comissão e as constantes de lei especial”. A lei especial a que se refere o artigo é a Lei nº 4.886/65 dos representantes comerciais.

4 – ASPECTOS GERAIS DA DISSOLUÇÃO DOS CONTRATOS

Antes de prosseguirmos na análise dos abusos cometidos na denúncia dos contratos de distribuição, cumpre-nos uma abordagem geral sobre a dissolução dos contratos, tema que, apesar da extrema relevância, sempre gerou controvérsias e confusões terminológicas entre os juristas.

O modo natural de extinção do contrato é o pleno cumprimento de suas obrigações, o que, segundo ORLANDO GOMES, poderia chamar-se de morte natural do contrato.

As formas de extinção dos contratos em razão de causas supervenientes à sua formação são: a resolução, a resilição bilateral (distrato) e unilateral (denúncia) e a rescisão.

A resolução do contrato se dá com o inadimplemento de suas obrigações por uma ou ambas as partes. Inadimplemento que pode ser por culpa da parte ou por acontecimentos fortuitos. Nos casos de inadimplemento contratual por culpa de uma das partes, há rescisão do contrato, podendo a parte prejudicada requerer na justiça ação de resolução cumulada com indenização por perdas e danos. Já nos casos de inadimplemento contratual por caso fortuito ou de força maior, pode-se requerer a resolução, no entanto não há qualquer indenização devida. A resolução é o meio pelo qual pode-se extinguir o vínculo contratual mediante ação judicial, quando há qualquer tipo de inadimplemento contratual.

A expressão “rescisão” pode ser utilizada no sentido genérico de extinção, ou, de modo mais correto, como sinônimo de resolução culposa. De qualquer forma, há um sentido técnico jurídico que individualiza a expressão “rescisão”.

De acordo com lição de ORLANDO GOMES, “rescisão é a ruptura de contrato em que houve lesão” (33). Ocorre lesão quando há vantagem desproporcional por uma das partes causada pela desproporção entre as prestações de um contrato. É, pois, um defeito de negócio jurídico, já que uma das partes abusa da inexperiência ou necessidade da outra parte quando da celebração do contrato(34). Nada impede, no entanto, que se utilize a expressão rescisão no sentido amplo de dissolução culposa por inadimplemento contratual.

A resilição pode ser bilateral ou unilateral. A resilição bilateral se realiza pelo consenso das partes através do distrato. Como ensina LUÍS MANUEL TELES DE MENEZES LEITÃO, professor da Universidade de Lisboa, “o distrato é necessariamente bilateral, assentando no mútuo consenso dos contratantes em relação à extinção do contrato que tinham celebrado” (35). Também chamado na doutrina estrangeira de revogação.

Finalmente, a resilição unilateral é a extinção do contrato por vontade de uma das partes, portanto é negócio jurídico unilateral. O meio utilizado para resilir unilateralmente um contrato é a denúncia. Admite-se apenas nos contratos por tempo indeterminado, geralmente nos contratos de execução continuada, em que as partes não estabelecem um prazo de vigência, como o contrato de distribuição, objeto do presente estudo.

Nesse sentido, DARCY BESSONE, ensina que “em geral, nos contratos por tempo indeterminado, e de execução continuada, qualquer dos contratantes pode unilateralmente desvincular-se dissolvendo-os. A indeterminação do tempo de duração do contrato ocasionaria a permanência infinita do vínculo, se não fosse facultado a qualquer das partes, através do ius poenitendi, desligar-se, quando lhe aprouvesse. Assiste, assim, a cada um dos contratantes o direito potestativo de desvincular-se” (36).

Examinados alguns pontos importantes a respeito da dissolução dos contratos, analisaremos a seguir a denúncia abusiva nos contratos de distribuição.

*O trabalho teve o 1º lugar no Concurso de Monografia e Pesquisa da Faculdade de Direito da FAAP – Prêmio Josaphat Marinho. O professor Haroldo Malheiros Duclerc Verçosa foi o orientador da pesquisa.

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    é acadêmico de Direito da Fundação Armando Álvares Penteado – FAAP e do Curso de Relações Internacionais da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo – PUC – SP.

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