Prisão preventiva

Conamp é contra mudanças no Código de Processo Penal

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15 de maio de 2002, 13h40

A Associação Nacional dos Membros do Ministério Público (Conamp) entrega, nesta quarta-feira (15/5), proposta contra modificações no Código de Processo Penal. A associação argumenta que, com as mudanças, a hipótese de prisão preventiva será reduzida a quase zero, ou seja, será permitido que condenados por crimes hediondos aguardem o julgamento em liberdade.

A Conamp alega que “o que se quer é um processo penal que seja garantista sem ser irresponsável”.

A proposta será entregue aos deputados e ao presidente do Supremo Tribunal Federal, ministro Marco Aurélio Mello, que assumiu interinamente a Presidência da República.

Leia a proposta que será apresentada pela Conamp

A Associação Nacional dos Membros do Ministério Público (Conamp), considerando a relevância da reforma do Código de Processo Penal e a existência de duas propostas tramitando no Congresso Nacional, uma representada por projetos de iniciativa do Poder Executivo e outra resultante de textos aprovados pela Comissão Mista de Segurança Pública, pede vênia a V. Exª para tecer algumas considerações sobre aspectos fundamentais referentes às mencionadas proposições:

Enquanto os textos da comissão mista, buscando atender aos anseios da Sociedade, propõem medidas efetivas de combate à criminalidade, os projetos do Executivo centram sua preocupação apenas no interesse dos réus, transformando a liberdade do delinqüente em direito hegemônico e não contemplando minimamente os mecanismos de defesa social.

As proposições do Executivo pretendem acabar, na prática, com a prisão em flagrante, independentemente da natureza do crime, ao estabelecer que o juiz, mesmo homologando a peça flagrancial, deverá liberar imediatamente o preso, salvo se tiver elementos para efetuar a conversão em prisão preventiva.

Em regra, o auto de prisão em flagrante, pela urgência do seu encaminhamento ao juiz, não contém elementos mais aprofundados para autorizar a prisão preventiva. A conseqüência, portanto,será a colocação em liberdade do flagrado, ainda que se trate de crime grave, como o estupro, o latrocínio e o tráfico de drogas.

Nesse aspecto, a propósito, haverá revogação da Lei dos Crimes Hediondos, uma vez que o juiz, não dispondo imediatamente de elementos para decretar a prisão, será obrigado a colocar o acusado em liberdade, mesmo que este tenha sido preso em flagrante. Por outro lado, caso a proposta venha a ser aprovada, todos os acusados por crimes hediondos que estiverem presos em razão de flagrante poderão ser imediatamente postos em liberdade.

Como se isso não bastasse, os projetos do Executivo reduzem drasticamente as hipóteses de prisão preventiva. Enquanto os textos da Comissão Mista mantêm a garantia da ordem pública como fundamento da prisão cautelar (principal razão das prisões provisórias, hoje), os projetos em questão não a contemplam (artigo 312). E vão além, pois, ao relacionar os delitos que admitem a prisão provisória, excluem surpreendentemente o tráfico de drogas.

Justamente quando as modernas legislações tratam de fortalecer as medidas cautelares, prestigiando a justiça criminal e combatendo o sentimento de impunidade, o Brasil estará fazendo exatamente o caminho inverso, com redução das hipóteses de cautelas legais.

Também a prisão preventiva domiciliar, concebida nos projetos do Executivo (artigos 317 e 318), é uma afronta à Sociedade e será aplicada, entre outros casos, a favor de “pessoa necessária aos

cuidados especiais de menor de sete anos de idade”.

Com isso, haverá possibilidade de todo e qualquer criminoso, por mais perigoso que seja, ficar em prisão domiciliar, bastando, para isso, ter um filho menor de sete anos, mesmo adotivo. Imagine-se quantos agentes de segurança serão necessários para a vigilância do cumprimento dessa prisão “caseira”. Ou seria ela aplicada sem vigilância alguma?

Por outro lado, os projetos do Executivo proíbem o juiz de valorar a prova do inquérito por ocasião da sentença, mesmo que supletivamente, contrariando a tradição do direito brasileiro, que veda apenas a condenação com base em prova exclusivamente policial.

O texto da comissão adota o entendimento tradicional, que deve ser mantido, até mesmo para que tal prova possa ser usada em favor do réu ou, supletivamente, em favor da Sociedade. A desconsideração absoluta da prova policial, como pretende o Executivo, só beneficiará os criminosos, além de desprestigiar a instituição policial.

Os projetos do governo estabelecem, ainda, a possibilidade de produção de prova antes do recebimento da denúncia (inclusive audiência com inquirição de testemunhas e interrogatório do réu), criando um verdadeiro caos processual, quando é sabido que, para a admissibilidade da acusação, basta um “juízo de fundada suspeita”.

Além disso, obrigam a repetição dessa prova depois de recebida a denúncia. Na prática, isso importará em duas instruções para cada processo criminal, mesmo no procedimento sumário. Os textos da Comissão Mista, ao contrário, aproveitam todas as propostas que dão celeridade ao processo e corrigem defeitos como este, que o tornariam ainda mais morosa a Justiça.

Em relação ao procedimento do júri, os projetos do Executivo abandonam toda a tradição brasileira e copiam dispositivos do júri americano, pretendendo realizar em plenário toda a produção da prova, sem se dar conta do tempo e da estrutura que serão necessários para manter os jurados reunidos durante vários dias, o que acabaria acontecendo em todos os processos, mesmo os mais simples. É necessário ter em consideração que, no Brasil, diferentemente dos Estados Unidos, os jurados são sempre incomunicáveis, o que impede o fracionamento das sessões.

Ainda quanto ao júri, as proposições governamentais determinam o desentranhamento do inquérito policial e vedam a leitura das provas anteriormente produzidas, mesmo as judiciais (artigo 421). É conhecida a dificuldade de se levarem testemunhas ao plenário, especialmente nos julgamentos de réus perigosos, cabendo destacar, ademais, que a dimensão territorial do país impossibilita o deslocamento de testemunhas residentes em localidade diversa daquela em que se realiza o julgamento.

Como cabe ao Ministério Público o ônus de provar a acusação, ausentes as testemunhas, os réus seriam inevitavelmente absolvidos, simplesmente porque não se logrou reproduzir a prova perante os jurados. Os textos da comissão mista mantêm a possibilidade de acesso dos jurados à prova produzida na primeira fase.

Os projetos do governo prevêem, também, o direito de o réu não comparecer ao julgamento perante o júri, mesmo estando preso, o que seria, no mínimo, sinal de desrespeito à Justiça. Afora isso,muitas vezes é necessária a presença do acusado, até mesmo para que se faça o seu reconhecimento pelas testemunhas.

Por outra parte, enquanto os textos da comissão mista procuram prestigiar as decisões de primeiro grau (artigos 594 e 597), os projetos do governo negam qualquer efeito à sentença condenatória (artigos 597), estabelecendo que o recurso dela interposto terá sempre efeito suspensivo, mesmo que o réu esteja preso preventivamente.

Esta medida desprestigia o combate à criminalidade e favorece a impunidade, sem contar a hipótese de fuga do réu durante o processamento do recurso. Nesse ponto, as proposições do governo estão em descompasso até mesmo com recente pronunciamento do Sr. presidente da República e com outra proposta do Executivo, ora em tramitação no Congresso.

Os projetos do governo também criam novos recursos, acrescentando-os ao rol dos já existentes no processo penal brasileiro. Entre eles, há os embargos infringentes ex officio, em favor do réu, sempre que a decisão condenatória do Tribunal de Justiça não for unânime. Neste caso, o réu não poderá ser preso, mesmo que já esteja condenado em primeira e segunda instância. De novo, proclamação da impunidade, representada pela condenação que não gera imediata prisão.

Os textos da comissão mista, corretamente, prevêem embargos infringentes, como recurso voluntário e sem efeito suspensivo, não apenas para o réu, mas também para a acusação, atendendo à antiga reivindicação fundada no princípio da igualdade entre as partes.

Ainda há mais: as proposições governamentais criam recurso contra o recebimento da denúncia ou queixa, o que hoje é perfeitamente resolvido pela via do habeas corpus. A criação desse recurso importará em aumento da morosidade da justiça penal, não só pela desnecessidade do recurso, mas sobretudo pela elevação do volume de trabalho que acarretará.

Como se vê, os projetos do governo prevêem enormes benefícios aos réus, mesmo quando autores de crimes graves, deixando a Sociedade desguarnecida diante da quase absoluta garantia de liberdade do delinqüente.

Por sua vez, as proposições da comissão mista, acolhendo os anseios da população, procuram preservar os mecanismos mínimos de defesa social, compatíveis com o Estado Democrático de Direito, que não pode ser escudo de proteção a criminosos.

Todos os países que enfrentaram com sucesso a criminalidade violenta ou organizada, como é o caso da Itália,fizeram-no a partir de uma legislação ágil, dotada de mecanismos voltados a uma resposta pronta do Estado, afastando a sensação de impunidade.

É justamente este modelo que devemos adotar em nosso país: um processo penal que, sem descuidar das garantias asseguradas à defesa, tenha a preocupação de refrear o insustentável recrudescimento da criminalidade. Na verdade, o que se quer é um processo penal que seja garantista sem ser irresponsável.

Por estas razões, a Conamp entende que as proposições oriundas da Comissão Mista devem prevalecer, por se mostrarem consonantes com o interesse público.

Marfan Martins Vieira

Presidente da Conamp

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