As Cortes não concursadas

Veneno: Sunda questiona sistema de nomeação para o STF

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10 de maio de 2002, 11h56

A inutilidade sábia desta coluna é para lhe servir. ;

(Mais artigos do Mestre Sunda podem ser encontrados no endereço: http://www.hufufuur.cjb.net)

Do Alto do Transimalaia, no supersutil do Olimpo astral (essa é nova!), o Mestre Sunda Hufufuur detectou a interferência ondulatória de um certo burburinho que vinha de Brasília…O que era? Seria o STF ou o STJ, como sempre, aprontando mais uma? Quase! Do planalto central aos cumes transimalaicos reverberava a contestadíssima indicação de Gilmar Mendes para o STF, e o recente constrangimento da suspensão de sua sabatina pelo Senado, bem como pulsava ainda, perturbadora, a notícia de que o agora ex-candidato a vice-presidente e ex-presidente do STJ (!!!), Costa Leite, tenha integrado destacademente os quadros do SNI (!!!) nos dias mais negros daquele antro.

A história está repleta de personagens menores para fatos maiores, de forma que as biografias destes dois não protagonizam o tema, mas apenas lhe servem de emblema. Qual é, pois, o tema? O tema a emergir crucialmente no contexto é sistêmico, ou seja, o que deve ocupar a mira da nossa indignação é o modo de preenchimento das vagas nos Tribunais Superiores, e não somente as nódoas curriculares de eventuais candidatos.

O STJ e o STF são as Supremas Cortes do país, neles deságuam as questões medulares da sociedade pelo que se entende ser inarredavelmente política a sua atuação. A conotação política irriga o cerne de todas as decisões de grande repercussão. Decisões de dimensão nacional confluem com a estrutura do próprio Estado, por sua vez capilarmente comprometido com os poderes que lhe erguem.

As Supremas Cortes de todos os países não fazem, é claro, a política partidária, mas estão indissociavelmente relacionadas com o regime jurídico que aperfeiçoam e consagram na medida em que estão incumbidas de dar a palavra definitiva sobre os fatos que este regime deve reger. Esse entendimento definitivo, por sua vez, é a expressão da vontade da lei. Por derradeiro, como não pensar nos poderes que engendram a lei? Toda Justiça é, em síntese, justiça de classe, a classe da qual emana.

Por ilação se compreende facilmente que quando as relações políticas se alteram, isto se reflete na lei ou na sua interpretação. É neste mister que a estrutura judiciária quase sempre se converte em instrumento de conservação.Não poderíamos esperar, de Cortes onde os Ministros são nomeados pelos poder político do establishment outra coisa senão a resistência a insculpir na aplicação da lei as mutações sociais.

Não é de se estranhar que inúmeras ações esbarrem neste conservadorismo. Quem são, afinal, os nossos Ministros? A maior parte deles foi nomeada pelos governos de direita, alguns remanescendo ainda da ditadura militar. Isso não impediu que grandes juristas florescessem entre eles, mas é próprio indagar: é correta essa forma de ingresso ao cargo?

A separação dos Poderes traçada por Montesquieu pode não ser afligida pelo fato da indicação, posto que em tese a independência permanece, mas destes Ministros poderemos esperar algo daquela missional ousadia no empenho da Justiça ideal? O atual sistema de indicação tende mais para uma confraria dos poderes que harmonia de poderes!

É verdadeiro contra-senso que o ingresso na magistratura dependa de Concurso de provas ao passo que em Tribunais Superiores se possa ingressar mediante indicações, em número percentualmente limitado, até que, alcançando seu superlativo, a comédia do paradoxo se completa no STF, pois é justamente no vértice do judiciário onde, sem nenhuma necessidade de um concurso, se ingressa unicamente por indicação! Assim, quando penso no STF, tenho sempre presente esta imagem: “A Corte Não Concursada”

A exigência de “notório” ou “notável saber” é a “porta subjetivada” para acesso a tais cargos, mas o que vem a ser esse notório saber? “Nada mais permissivo que a imprecisão”, diz um velho ditado no Transimalaia… Seria o “notório-notável saber” representado por ter palestrado ou pertencer a inúmeras agremiações intelectuais e academias, ter tomado e ministrado cursos? Ora, esses currículos que engravidam os livros nas páginas finais não são, no conceito transastral de sabedoria, prova do mesmo…

Ter escrito livros provaria o notório saber? Bem, nas imediações transetéricas livros somente valem pela contribuição verdadeira que proporcionam, e não pelo simples fato de existirem. No Brasil muitos se apressam em escrever opúsculos jurídicos sobre qualquer coisa, infestando o mesmo com aborrecidas citações e mais citações (é a “co-autoria inconsulta”). No meio jurídico quando não se tem muito o que dizer se tem muito a escrever! (o editor chefe da Consultor Jurídico diz que é esse, precisamente, o meu caso!)

Nunca me esqueço de uma gafe cometida, quando um jovem me disse ser era iminente sua indicação como desembargador do TJ-RJ: ainda era eu estudante e perguntei sem pensar: o que vc. escreveu?” Recebi como resposta um sorriso silencioso. Tenho certeza de que os leitores saberão ler, aqui, este sorriso invisível…

Vamos agora ao emblemático caso “Gilmar Mendes”, “l’affaire Gilmar”, a sensação do momento: Gilmar Mendes teve a sua sabatina “tragicamente” adiada pelo Senado. Reconheça-se: a obra de Gilmar Mendes em matéria de controle de constitucionalidade é significativa, o mesmo foi aprovado em concurso para Juiz Federal e em primeiro lugar para Procurador da República, etc. Bem, realmente Gilmar poderia dizer ao guarda de trânsito que o parasse que ele não é qualquer um, mas a sua indicação é contestadíssima. Foi apontada aqui e acolá como imprópria pela sua afinidade com o Poder Executivo em fatos notadamente inconstitucionais, e foi acusado de especializar-se em “inventar soluções jurídicas no interesse do governo”; isto tudo foi salientado por Dalmo Dallari, em artigo na Folha de São Paulo, em 08.05.2002.

Acrescentou ainda o notável Dallari (um dos poucos juristas agradáveis de se ler – escreve sem rococós!) que diante de medidas judiciais contrárias à sua pretensão, Gilmar Mendes teria feito críticas acirradas ao Poder Judiciário, o que faria caracterizar-se como afronta a sua nomeação como Ministro (vou chorar, pois a julgar por este último quesito, face os meus artigos, inclusive este, eu nunca mais poderei ser Ministro do STF!!!).

Quanto a inventar fórmulas jurídicas, bem, tenho as minhas dúvidas se a tentação de ser uma “consciência alugada” não persegue toda a classe jurídica quando patrocina o interesse de seus clientes…Não se pode generalizar, mas, convenhamos, a tentação é grande…

A biografia de Gilmar Mendes ou de qualquer outro Ministro é, sem embargo, tema menor, pois até hoje ninguém ganhou vulto histórico pelo simples fato de ter passado em concurso ou porque vestiu uma “super-toga” como a do STF. O que nos importa é que sua nomeação pode ser vista como uma espécie de canto do cisne de FHC, uma espécie de reinado póstumo a ser anunciado, para o caso de Lula vencer, o que traduz a perspectiva do conservadorismo acima mencionada.

Corre por aí a inteligente boataria de que uma vitória de Lula, perante a iminente aposentadoria de alguns Ministros, ensejaria a nomeação de muitos Ministros, o que faria com que pela primeira vez o STF estivesse permeado pela esquerda, afetando mais os pináculos da conservação que a própria eleição de Lula.

Independente de que estes lúcidos e bons rumores contenham ou não verdade, esperamos que os próximos Ministros tenham a coragem de inovar interpretativamente, aproximando-nos do sonho do direito puro, a saber, um direito ativo e criador, não mais como um reflexo submisso das contingências…

Penso que para o desiderato de uma justiça social as Cortes Não Concursadas deveriam ser reformadas…Num um país longínquo, que talvez nem exista, chamado Transimalaia, o ingresso na Suprema Corte se dá através de concurso no qual são examinados com abrangência, além do direito, os conhecimentos mais diversos, imprescindíveis para que se chame alguém de jurista..mas…será isso obra das meras quimeras utopistas?

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