IPTU progressivo

Conheça a primeira decisão de mérito contra o IPTU progressivo

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9 de maio de 2002, 12h39

A juíza da 14ª Vara da Fazenda Pública, Christine Santini, concedeu a primeira decisão de mérito que afasta cobrança de IPTU progressivo na cidade de São Paulo. A ação foi movida pela Allpac Embalagens contra o secretário de Finanças do Município de São Paulo. O IPTU progressivo foi instituído pela Lei nº 10.350/2001.

A empresa foi representada pelos advogados Eduardo Perez Salusse e Maria Carolina Antunes de Souza. De acordo com a defesa da empresa, “a instituição da progressividade do IPTU em razão do valor venal do imóvel, estabelecendo ainda diferenças de alíquotas para imóveis de uso não residencial, fere o princípio da capacidade contributiva, previsto no artigo 145, parágrafo 1º, da Constituição Federal”.

Leia os principais trechos da decisão

ALLPAC EMBALAGENS LTDA. impetrou o presente mandado de segurança contra o SECRETARIO DAS FINANÇAS DO MUNICÍPIO DE SÃO PAULO, alegando, em síntese, ter a Lei Municipal n0 13.250/2001 instituído a cobrança do IPTU de forma progressiva em razão do valor venal do imóvel, com fundamento no artigo 156, parágrafo 10, da Constituição Federal, com a redação dada pela Emenda Constitucional nº 29/2000. Sustentou ser impossível a instituição da progressividade do IPTU em razão do valor do imóvel com base no princípio da capacidade contributiva, previsto no artigo 145, parágrafo 1º, da Carta Magna, aplicável tão somente aos impostos de caráter pessoal, sendo o IPTU um imposto real. Assim, postulou a suspensão da exigibilidade do IPTU de forma progressiva nos moldes da Lei Municipal n0 13.250/2001, para o exercício de 2002 e subsequentes. Juntou documentos.

Indeferida a liminar (fls. 46), pela autoridade apontada como coatora, assistida pela Municipalidade, foram prestadas as informações de fís. 86/101. Preliminarmente, arguiu sua ilegitimidade passiva. No mérito, sustentou a constitucionalidade da Emenda Constitucional nº 29/2000 e a legalidade da progressividade do IPTU.

O Órgão do Ministério Público opinou pela denegação da ordem.

É o relatório.

DECIDO.

Por primeiro, admito a Municipalidade de São Paulo na lide como assistente litisconsorcial da autoridade apontada como coatora.

A preliminar arguida pelo Secretário das Finanças do Município de São Paulo não merece acolhida.

Dita autoridade tem competência para a correção do ato tido por ilegal praticado por seu inferior hierárquico. Ademais, houve intervenção da pessoa jurídica de direito público interno na lide, o que torna possível o conhecimento do mérito da impetração.

No mérito, por sua vez, a concessão da segurança se impõe.

Com efeito, o artigo 156, parágrafo 10, da Constituição Federal, em sua redação original, determinava a possibilidade de progressividade do IPTU para assegurar o cumprimento da função social da propriedade, nos seguintes termos:

“Art. 156. Compete aos Municípios instituir impostos sobre:

I – propriedade predial e territorial urbana;

Parágrafo 10. O imposto previsto no inciso 1 poderá ser progressivo, nos termos da lei municipal, de forma a assegurar o cumprimento da função social da propriedade.”

Tal dispositivo deveria ser interpretado conjuntamente com o artigo 182, parágrafo 40, da Carta Magna, que expressamente dispõe:

“Art. 182. A política de desenvolvimento urbano, executada pelo Poder Público municipal, conforme diretrizes gerais fixadas em lei, tem por objetivo ordenar o pleno desenvolvimento das funções sociais da cidade e garantir o bem-estar de seus habitantes.

Parágrafo 4º. É facultado ao Poder Público municipal, mediante lei específica para área incluída no plano diretor, exigir, nos termos da lei federal, do proprietário do solo urbano não edificado, subutilizado ou não utilizado, que promova o seu adequado aproveitamento, sob pena sucessiva de:

I – parcelamento ou edificação compulsórios;

II – imposto sobre a propriedade predial e territorial urbana progressivo no tempo;”

Assim, a progressividade no tempo, de natureza extrafiscal e até hoje em vigor, necessita para sua instituição da presença de três requisitas: a) não cumprimento da função social da propriedade urbana; b) que a propriedade seja abrangida pelo Plano Diretor do Município; c) propriedade não seja edificada, caracterizando-se como subutilizada ou não utilizada.

Todavia, o Poder Constituinte Derivado, por meio da Emenda Constitucional n0 29/2000, alterou a redação do parágrafo 10 do artigo 156 da Constituição Federal, instituindo, além da progressividade no tempo, outra forma de progressividade, nos seguintes termos:

“Art. 156. …

Parágrafo 10. Sem prejuízo da progressividade no tempo a que se refere o art. 182, parágrafo 4º, inciso II, o imposto previsto no inciso I poderá:


I – ser progressivo em razão do valor do imóvel;

II – ter ali quotas diferentes de acordo com a localização e o uso do imóvel.”

Com base na nova redação do dispositivo constitucional, foi então publicada a Lei Municipal n0 13.250/2001, que instituiu a progressividade do IPTU em razão do valor venal do imóvel, estabelecendo ainda diferenças de alíquotas para imóveis de uso não residencial.

Ambas as situações, todavia, ferem o principio da capacidade contributiva, inserto no artigo 145, parágrafo 1º, da Constituição Federal, e o princípio da isonomia, previsto no artigo 5~, “caput”, da Constituição Federal, que representam direitos e garantias individuais. Ora, nos termos do artigo 60, parágrafo 4º, inciso IV, da Carta Magna, não poderiam tais princípios ser pelo Poder Constituinte Derivado violados.

O princípio da capacidade contributiva, inserto no artigo 145, parágrafo 1º, da Constituição Federal, atende ao princípio da igualdade e visa à realização, no campo tributário dos ideais republicanos, na lição de Roque Antonio Carrazza (in “Curso de Direito Constitucional Tributário”, RT, 2ª Edição, 1991, São Paulo, páginas 58 a 60).

Segundo o autor, “se for da índole do imposto, ele deverá obrigatoriamente ser graduado de acordo com a capacidade econômica do contribuinte”. Ousamos, todavia, discordar do eminente autor no ponto em que sustenta a possibilidade de progressividade do IPTU, a não ser na hipótese do artigo 182, parágrafo 4º, da Carta Magna.

Isto porque, conforme já pacificado pelo Egrégio Supremo Tribunal Federal, é o IPTU imposto de natureza real, uma vez que incidente sobre a propriedade predial e territorial urbana, não podendo, em consequência, ser levada em consideração a capacidade econômica do contribuinte para instituição da progressividade, a não ser na hipótese prevista no artigo 182, parágrafo 4º, da Constituição Federal, que traduz a finalidade extrafiscal de assegurar o cumprimento da função social da propriedade. Nesse sentido, confira-se o Recurso Extraordinário n0 167.654-0-MG, STF, 2ª Turma, relatado pelo Excelentíssimo Senhor Ministro Maurício Corrêa, j. 25.03.1997, v.u., DJU 18.04.1997, p. 13.786, baseado em precedente do Plenário. Relembrem-se, ainda, os ensinamentos sempre valiosos do Excelentissimo Senhor Ministro Moreira Alves, quando do julgamento do Recurso Extraordinário n0 153.771-MG, Tribunal Pleno, pelo mesmo relatado, inserto na RTJ 162/727:

O mesmo não ocorre, evidentemente, com os impostos de caráter real que – também na definição de Gaanini (Qb. Cit., ibidem -são os que ‘alcançam bens singulares ou rendimentos ou também grupos de bens ou de rendimentos, considerados na sua objetividade, sem levar em conta a condição pessoal do sujeito passivo do imposto’. Por isso mesmo, Victor Uckmar (Princípios Comuns de Direito Constitucional Tributário, trad. Marco Aurélio Greco, parágrafo 12, pág. 82, Editora Revista dos Tribunais, São Paulo, 1976), tratando do princípio constitucional da igualdade tributária no tocante à capacidade contributiva, se refere ao ‘evidente absurdo de ali quotas progressivas para os inpostos reais’. Igualmente, Vincenzo Caruilo (La Costituzione deila Repubblica Italiana, pág. 184, Dott. Cesare Zuffi-Editore, Bologna, 1950), comentando o artigo 53 da Constituição Italiana que preceitua que ‘todos são obrigados a concorrer para as despesas públicas em razão de sua capacidade contributiva e que ‘o sistema tributário é informado por critérios de progressividade’, acentua: ‘Naturalmente, não queremos dizer -nem o poderemos – que todos os impostos indistintamente devem ser progressivos, porque bem sabemos como isso seria impossível ou cientificamente errado: porque bem sabemos que a progressão não condiz com os impostos diretos reais e pode encontrar só inadequada e indireta aplicação nos impostos sobre consumos e nos impostos indiretos em geral’.

No mesmo sentido, Zíngaii (apud Cocívera, Princípi di Dirítto Tributarío, 1, págs. 253/254, nota 60, Dott. A Giuffrê Editore, Mílano, 1974), que dá como uma das características do imposto real a de que ele ‘não pode ser organizado em forma progressiva (sendo a progressívidade das ali quotas fundadas sobre o conceito de capacidade contributiva)’. Essa também a posição de Berliri (Príncípi di Dirítto Tributario, 1, 2~ ed., págs. 268/269, Giuffrà Editore, Milano, 1967), ao advertir: ‘Um outro elemento que caracteriza a capacidade contributiva é a sua relação com a pessoa do contribuinte. A capacidade contributiva, propriamente enquanto capacidade, é alguma coisa de subjetivo e não de objetivo: a mesma quantidade de renda ou de patrimônio exprime iversa possibilidade de contribuir para as despesas públicas se possuída por Ti cio, pai de 12 filhos ou por Gaio, solteiro; por Semprônio, jovem em pleno vigor das forças, ou por Mévio, velho paralítico e necessitado de continua assistência médica. Tal íntima conexão entre a riqueza e seu possuidor resulta clara do confronto entre o art. 15 do Estatuto Albertino – que falava de haveres – e o artigo 53 da Constituição que fala justamente de capacidade contributiva. Aliás, num sistema inspirado em critérios de progressividade é natural que a imposição tenha caráter pessoal e não real’. Não é diversa a lição de Gianini (Comentaria Sistnatico Alia Costituzione Italiana diretto da Piero Caiamandrai e Alessandro Levi, vol. 1, pág. 284, G. Barbêra, Editore, Firenze, 1950), ao comentar os preceitos da Constituição Italiana sobre as relações tributárías, salienta, com relação à progressividade:


‘Pode somente afirmar-se que a não todos os tributos é aplicável o critério da progressividade (exatamente por isso a Constituição refere o critério mesmo ao sistema tributário): que os impostos diretos reais, enquanto alcançam objetivamente os rendimentos singulares dos terrenos, das construções, etc.) devem ser necessariamente proporcionais, pois de outro modo se verificaria a incongruência de alcançar mais gravemente o possuidor de um rendimento derivado de uma fonte de renda que não o possuidor de uma renda igual, mas produzida por fontes de renda diversas; que o campo em que deve sobretudo operar a progressão é o do imposto pessoal sobre o rendimento geral do sujeito’.

Também na Suíça, Blumenstein (Sistema di Diratto deli. Inposte, Trad. Francesco Forte, parágrafo 10, II, 2, Dott. A Giuffrê Editore, Milano, 1954) acentua que ‘a distinção entre impostos subjetivos e objetivos (pessoais e reais) decorre do fato de que para determinados tipos pode prestar-se atenção à capacidade econômica pessoal do sujeito, enquanto para outros conta só a existência de um determinado objeto de imposto’. Na Alemanha, c.rezelius (Steuerrecht II – Besonderes Steuerrecht, parágrafo 30, 1, pág. 416, Verlag C. H. Beck, Múnchen, 1991), estudando o imposto imobiliário (Gzundsteuer), que também é da competência dos municípios, salienta que ele pertence à espécie dos impostos reais, e acrescenta: ‘abarca-se, assim, um determinado objeto do imposto por seu valor ou com sua renda, sem que dependa da capacidade de prestação econômica ou pessoal daquele a quem, juridicamente no tocante ao imposto imobiliário, o imóvel é imputado; no mesmo sentido, Steinberg (verbete Grundsteuer, in Handwõrterbuch des Steuerrechts und der Steuerwissenschaften, A-K, pág. 549, C. H. 1 Beck ‘sche Veria gsbuchhandl ung, Múnchen, 1972). O francês Paul Hugon (O Imposto – Teoria Moderna e Principais Sistemas, pág. 85, Editora Renascença S/A, São Paulo, 1945, dissertando sobre as vantagens e desvantagens dos impostos reais, adverte que ‘ele agrava igualmente, por exemplo, os rendimentos de um prédio, seja qual for a situação econômica e social do proprietário: seja rico ou de posses médias, nacional ou estrangeiro, celibatário ou chefe de família; esteja a casa hipotecada ou não, etc.’, esclarecendo: ‘ele se estabelece, pois, sem atender á capacidade contributiva’. E, no Brasil, dentre outros, Zelmo Dnari (Curso de Direito Tributário, 3 a ed., pág. 72, Forense, Rio de Janeiro, 1993) observa, quanto ao imposto real, que de índole objetiva, abstrai a capacidade contributiva do contribuinte’, sendo que ‘como exemplos temos o imposto territorial, rural e o imposto predial’.

Ora, no sistema tributário nacional, é o IPTU inequivocadamente um imposto real, porquanto tem ele como fato gerador a propriedade, o domínio útil ou a posse de imóvel localizado na zona urbana do Município, sem levar em consideração a pessoa do proprietário, do titular do domínio útil ou do possuidor, tanto assim que o Código Tributário Nacional ao definir seu fato gerador e sua base de cálculo não leva em conta as condições da pessoa do sujeito passivo.”

Tal entendimento merece prevalecer, eis que efetivamente a mera discrepância entre valores venais não ésuficiente para deterrhinar a aferição da capacidade econômica dos contribuintes.

E um exemplo torna essa tese muito clara. Admitamos a hipótese de um contribuinte ser titular do domínio de um único imóvel de valor venal de R$ 500.000,00, que utiliza para sua residência. Tal contribuinte, nos termos da atual lei municipal, suportará carga tributária majorada em face da progressividade, sob o falso fundamento de sua capacidade contributiva ser maior do que aquela de contribuintes que possuam imóveis de valores venais inferiores.

Contudo, um único outro contribuinte pode ser titular do domínio de dez ou mais imóveis de valores venais individuais de R$ 50.000,00, que loca a terceiros para produção de maior renda. Tal contribuinte suportará carga tributária infinitamente inferior, em que pese sua capacidade contributiva ser quiçá superior à do primeiro.

Tal exemplo é suficiente, ainda, para demonstrar que a progressividade na forma como imposta na lei, em decorrência da alteração constitucional, fere o princípio da isonomia, sendo contribuintes na mesma situação no que se refere a seu patrimônio imobiliário tratados de maneira absolutamente diversas.

Ainda é de se lembrar que mesmo os autores que defendem, ao contrário da tese sustentada nesta decisão, a possibilidade de progressão das alíquotas do IPTU com base no valor venal do imóvel, como Roque Antonio Carrazza, já mencionado, e Kyioshi Harada {in “Direito Financeiro e Tributário”, Editora Atlas S.A., ~a Edição, 1999, São Paulo, página 317) e Hugo de Brito Machado (in “Curso de Direito Tributário”, Malheiros Editores, 20~ Edição, 2001, São Paulo, páginas 335 a 337), afastam a consideração de qualquer outro fator ou elemento, diverso do valor venal do imóvel, como parâmetro para a progressividade, eis que tal proceder retira a própria natureza fiscal da progressividade. A progressividade contributiva ser maior do que aquela de contribuintes que possuam imóveis de valores venais inferiores. Contudo, um único outro contribuinte pode ser titular do domínio de dez ou mais imóveis de valores venais individuais de R$ 50.000,00, que loca a terceiros para produção de maior renda. Tal contribuinte suportará carga tributária infinitamente inferior, em que pese sua capacidade contributiva ser quiçá superior à do primeiro.

Tal exemplo é suficiente, ainda, para demonstrar que a progressividade na forma como imposta na lei, em decorrência da alteração constitucional, fere o princípio da isonomia, sendo contribuintes na mesma situação no que se refere a seu patrimônio imobiliário tratados de maneira absolutamente diversas.

Ainda é de se lembrar que mesmo os autores que defendem, ao contrário da tese sustentada nesta decisão, a possibilidade de progressão das alíquotas do IPTU com base no valor venal do imóÚel, como Roque Antonio Carrazza, já mencionado, e Kyioshi Harada {in “Direito Financeiro e Tributário”, Editora Atlas S.A., 5ª Edição, 1999, São Paulo, página 317) e Hugo de Brito Machado (in “Curso de Direito Tributário”, Malheiros Editores, 20º Edição, 2001, São Paulo, páginas 335 a 337), afastam a consideração de qualquer outro fator ou elemento, diverso do valor venal do imóvel, como parâmetro para a progressividade, eis que tal proceder retira a própria natureza fiscal da progressividade. A progressividade extrafiscal, por sua vez, tem fundamento no poder de policia, com objetivo ordinatório, havendo a necessidade da lei declinar a sua razão, para que o contribuinte possa adequar seu comportamento. A progressividade extrafiscal, diga-se, não pode ter por fim o aumento da arrecadação tributária, em face de seu caráter eminentemente regulatório. A Lei Municipal n0 13..25012001, por seu turno, instituiu diferença de alíquota para imóveis de uso não residencial com o fim de aumentar a arrecadação tributária, o que é inadmissível.

Conclui-se, portanto, assistir razão à tese defendida na inicial, para que seja afastada a progressividade instituída pela Lei Municipal n0 13.250/2001, salientando-se ser também inadmissível a instituição de alíquotas diversas em face do uso residencial ou não dos imóveis urbanos, em face da natureza extrafiscal de dita seletividade, sem que tenha a Lei Municipal n0 13.250/2001 declinado expressamente sua finalidade com base no Plano Diretor.

Isto posto e considerando o mais que dos autos consta, CONCEDO A SEGURANÇA.

Custas pela autoridade impetrada.

Sujeita esta sentença ao duplo grau de jurisdição obrigatório, transcorrido o prazo para recurso, ou processado o que houver, remetam-se os autos à Egrégia Segunda Instância, observadas as formalidades legais e cautelas de praxe.

P.R.I.

São Paulo, 12 de abril de 2002.

CHRISTINE SANTINI

Juíza de Direito

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