Conflitos trabalhistas

A contratação de servidor público sem concurso e as conseqüências

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30 de junho de 2002, 19h56

30/06/2002

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Resumo: Subtítulo:

Regra geral, em reclamações trabalhistas contra ente público, na defesa apresentada se sustenta a inviabilidade do acolhimento das pretensões formuladas, por vedar a Carta Política a investidura de servidor em cargo ou emprego público, a não ser por meio de concurso público, face ao estatuído em seu artigo 37, II, posicionamento esse que recebeu inegável prestígio com a publicação da Orientação Jurisprudencial nº 85, da SDI-I, considerando-se pacificado com o Enunciado 363, ambos do Augusto TST.

E, realmente, a questão da contratação de servidor público, sem concurso, examinada sob a ótica do citado dispositivo constitucional leva, inexoravelmente, à conclusão de ser a mesma nula, pois, cabendo à Administração Pública obedecer a princípios como os da legalidade, da moralidade, da impessoalidade e da publicidade, não há emprestar valor à contratação de algum trabalhador de forma diversa da legalmente prevista, daí porque elogiável o posicionamento do C.TST, que seguimos em diversos julgados.

Entretanto, estamos em que o aludido art. 37, II, da Magna Carta pode ser visto sob diferente enfoque, que evite que vários entes públicos procedam a contratações que sabem, de antemão, nulas, mas confiantes de que conseqüência alguma advirá de tão reprovável prática, na certeza de que poderão se escudar na nulidade da contratação, pela falta de concurso público, o que, força é convir, em determinados casos pode traduzir um meio mais refinado, de maior verve, para alegar a própria torpeza em juízo, o que não deve ser tolerado.

Outrossim, move-nos a preocupação com a perplexidade que tal situação pode provocar no trabalhador que, o que é até natural, se sentirá traído e desamparado, justamente por aquele que mais deveria respeitá-lo.

Com efeito, pois embora o conceito de Estado varie intensamente, condicionado à ideologia de quem o formule, por isso há os que assinalam que “o Estado não passa do poder de uma certa categoria de homens (classe ou classes dominantes), que é utilizada não em benefício da ordem ou interesse geral mas para ‘governar’ (submeter, suprimir e explorar) outros homens (classe ou classes dominantes) (sic), recorrendo para tal a um aparelho de coerção e violência que funciona de modo sistemático e permanente. Realiza, complementarmente, certas tarefas de administração, de interesse comum de toda a sociedade, sem que isso altere o seu papel e a natureza essencial” (1), ou outros, como Eduardo Novoa Monreal, para quem não existe um Estado “dedicado exclusivamente a servir ao interesse geral (bem comum, segundo a expressão tomista), a defender os direitos de todos os membros do corpo social, a evitar os conflitos entre eles e a atuar como sumo harmonizador, na qualidade de árbitro final… Porque, na realidade, o Estado e sua ação se impregnam dos interesses, cobiças e paixões dos homens de carne e osso que os manejam” (2).

Nesse sentido, vale, ainda, lembrar o sentir de Paulo Roberto Barbosa Ramos que, objetivamente, assegura que “o Estado sempre foi fiel da balança a favor dos mais fortes, inclusive quando disse estar a favor dos menos favorecidos, isto porque o Estado é o resultado do equilíbrio dos fatores reais de poder preponderantes.

Nos momentos de crise, tanto nacional quanto internacional, essas forças se reordenam e reacomodam, com fazem hoje, de forma a que tenham sempre garantidas as suas conquistas, que são transmitidas como conquistas também dos outros. O pior é que sempre convencem a maioria, pois argumentam estar buscando o bem comum, já que controlam o Estado que, para o imaginário coletivo, é o grande pai reto e bondoso…” (3)

Aliás, como diz Roger Chartier, “o povo não é sempre sinônimo de plural”. (4) Porém, nem tudo é reserva e não podemos olvidar que normalmente se considera que “O Estado existe para realizar o bem comum” (5), ou com diz Darcy Azambuja: “Estado é uma organização política-jurídica de uma sociedade para realizar o bem público, com governo próprio e território determinado”. (6)

Ora, se a finalidade do Estado é o bem comum – e não se deve aceitar tenha outra, mesmo porque, em isso ocorrendo, há inferir pela ocorrência de muito lamentável desvirtuamento da finalidade natural do Estado e não que possua, validamente, o fim de favorecer uns poucos – não se pode admitir que um ente público se escore, justamente num dispositivo constitucional, para diminuir, não reconhecer direitos de integrantes da própria sociedade que o compõe, os quais, tivessem se ligado a um particular, teriam direitos mais seguramente garantidos e para aviar semelhantes misteres.

O bem comum não deve ser buscado apenas quando não envolve o Estado, mas e até principalmente, quando este está envolvido em determinada relação, máxime quando do outro lado está um trabalhador; convém recordar que no preâmbulo da Constituição se fala na instituição de um Estado Democrático, destinado, entre outras coisas, “… a assegurar … a igualdade e a justiça como valores supremos de uma sociedade fraterna…”


O ilustre ministro e constitucionalista Gilmar Ferreira Mendes, com base em posicionamento de Peter Schneider, lembra que “o Estado de Direito caracteriza-se, ao contrário de um sistema ditatorial, pela admissão de que o Estado também pratica ilícitos”. (7)

Em respeito ao preceituado no art. 37, II, da Lei Maior, ente público algum poderia permitir que alguém para ele trabalhasse, que não por meio de aprovação em regular certame público, e não tolerar e mesmo criar tal situação para, depois, indo o trabalhador a juízo, com o escopo de postular o reconhecimento de direitos de ordem trabalhista, sustentar que ineficaz, nula mesma, a contratação que ele próprio levou a efeito.

Isso não é pugnar pelo bem comum, na medida em que cabe considerar os nefastos efeitos que pode produzir – e certamente produz – na e perante a sociedade, o fato de que os próprios e primeiros responsáveis pela observância da Carta Política estão infringindo-a e o que é talvez ainda mais grave, levando e/ou tendo vantagem assim procedendo!

Naturalmente, quando isso ocorre, o que, aliás, se dá com indesejável freqüência, a confiança nas instituições pelos que se sentiram ilaqueados em sua boa-fé por um ente público passa a esmorecer, com possibilidades de sérios prejuízos para o tecido social, atento a que a história mostra que não só um incêndio se propaga rapidamente, o descrédito, além de queimar aos que atinge, também age velozmente e, ainda como o incêndio, não se preocupa com o que vai destruir, sua importância e/ou valor.

De salientar que os princípios referidos no art. 37, da Constituição Federal, da legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência, pelo bem que objetivam, repercutindo e moldurando os respectivos incisos, devem ser aplaudidos e rigorosamente observados, desde que, obviamente, não sejam desvirtuados seus elevados fins.

Assim, a exigência de concurso público é para moralizar o ingresso e/ou igualizar as oportunidades de acesso ao serviço público, e não para prejudicar o trabalhador, de modo que se impõe o exame de cada caso concreto, para ver se houve a vontade de ilicitamente favorecer aquele que trabalhou sem concurso, separando-se essa hipótese de situações outras, alimentadas apenas pela idéia – não muito nobre – de aproveitar da força de trabalho de alguém, sem remunerá-la corretamente.

A exigência “sub examen” é para o administrador público, visando obstar o apadrinhamento (tão caro a certos, ou melhor, a inúmeros políticos e governantes, como a história, “essa mãe da verdade”, segundo o escritor argentino Jorge Luis Borges (8), demonstra), não se podendo conceber que no âmbito normativo de princípios, principalmente como os da legalidade e da moralidade, tenha cobertura constitucional e/ou se albergue o direito de prejudicar aquele que só conta com a sua força de trabalho para sobreviver e para manter a sua família, entendimento esse, de resto, absolutamente contrário aos valores que a Constituição mais enaltece e impõe sejam perseguidos.

Nesse passo, interessante o recordar que, já nos idos de 1941, Constantino de Campos Fraga, reproduzindo definição do prof. Cesarino Júnior, acerca dos objetivos do direito social, afirmava, peremptoriamente, que os mesmos não podiam restar frustrados pela interpretação; com pena de mestre e mais ainda, de homem preocupado com a sorte dos mais necessitados, escreveu:

“Observando a definição do que seja direito social, vemos que as leis por ele abrangidas, visando o bem comum, têm por objetivo imediato ‘auxiliar e satisfazer convenientemente às necessidades vitais próprias e de suas famílias, aos indivíduos que para tanto, dependem do produto de seu trabalho.

Ora, esta finalidade não pode ser falseada na interpretação dos textos legais. Ela é a bússola que nos indicará a rota certa. Quando dela nos desviarmos, por mais brilhante se nos afigure a argumentação, podemos afirmar – estamos errados” (sic) (9).

Claro que, aqui, não se ajustaria o argumento de que possíveis interesses individuais não podem se sobrepor e/ou prevalecer sobre o interesse coletivo, eis que este último está presente na situação ora enfocada, pelas dimensões, alcance e proporção que pode atingir e/ou provocar a contratação para o serviço público sem concurso.

Acrescente-se que não se pode ter o trabalhador, regra geral, como partícipe na e para a celebração de um contrato nulo, porque não se pode ignorar, ainda que dolorosamente, que o trabalhador brasileiro, salvo honrosas exceções, que se quer sempre mais numerosas, é pessoa de poucas luzes – e interessa a muitos que assim seja -, além do que suas limitações e necessidades, tão conhecidas que despiciendo catalogá-las, sujeitam-no a aquiescer às exigências daquele que o contrata, verdade essa que está na base do direito do trabalho, não alterando o quadro, o fato de a contratação se dar com um ente público e, caso haja alguma dúvida, quanto à esse ponto, útil para dissipá-la colocar-se, quem a tenha, na situação, ou empregando termo mais chulo mas que talvez melhor retrate a situação, “na pele” do trabalhador, daquele que sabe que seus filhos, como, de resto, todas as pessoas, precisam comer, além de terem necessidades que, por óbvias, não precisam ser enumeradas, para ver se poderiam recusar labutar nessas condições…


De salientar que se pode até enxergar censurável abuso, por parte do ente público, no contratar e/ou admitir que alguém trabalhe sem aprovação em certame público, atento aos ensinamentos de Marcelo Rebelo de Souza, no sentido de que o “abuso do direito ou exercício inadmissível de posições jurídicas ou situações jurídicas activas traduz-se no respectivo desempenho contra os valores fundamentais do ordenamento jurídico”. (10)

Chegamos ao ponto em que, ou alguma solução é apresentada ou teremos que inferir que as argumentações feitas, no máximo e com boa vontade podem ser tidas como humanas e razoáveis, mas não atingem e/ou balançam o art. 37, II, da CF/88, que dispõe o que dispõe, de modo que nula a contratação de servidor sem concurso público. E, realmente, se o campo de análise ficar restrito ao mencionado art. 37, II, CF, não parece mesmo viável outra conclusão.

Todavia, e aqui reside o cerne da questão, a solução para o problema da contratação para o serviço público sem concurso não pode se restringir e/ou resumir ao exame do caso concreto à luz do comando contido no multicitado art. 37, II, da Lei Fundamental, com o que se descuraria da obrigação que possui o intérprete de considerar a Constituição em seu todo, em sua unidade, e assim preservar a harmonia entre seus princípios e artigos, mesmo porque como observa Eros Roberto Grau: “Não se interpreta a Constituição em tiras, aos pedaços”. (11)

Tal conduta leva a que se ignore o quanto estatuído no art. 1°, III, da Carta Política, que constitucionaliza e coloca a dignidade da pessoa humana como princípio e objetivo maior, a orientar todo o sistema constitucional, o ordenamento jurídico e a ação dos governantes (aí é que complica!) e como se não desconhece, a dignidade humana não prescinde de condições materiais para se tornar efetiva, não se podendo olvidar que o “direito ao salário constitui um dos instrumentos que – juntamente com os direitos analisados anteriormente – completa a proteção da personalidade do trabalhador subordinado, garantindo-lhe o meio que satisfaça à exigência basilar da sobrevivência” (12), cabendo, outrossim, lembrar “que a dignidade humana pode ser ofendida de muitas maneiras.

Tanto a qualidade de vida desumana quanto a prática de medidas com a tortura, sob todas as suas modalidades, podem impedir que o ser humano cumpra na terra a sua missão, conferindo-lhe um sentido” (13),; do mesmo artigo, ainda se tem o inciso IV, que eleva a importância dos “valores sociais do trabalho”. Do artigo 3° se tira que, entre os “objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil” estão o de “construir uma sociedade livre, justa e solidária ” (inciso I), “erradicar a pobreza, a marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais” (inciso III) e “promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer formas de discriminação” (inciso IV). Parece claro que todos estes dispositivos constitucionais, de uma vez só, são desconsiderados, ao se resolver a questão ora “sub examen”, com base apenas no multicitado art. 37, II, da Lei Maior, quando, como salientado, isso não pode ocorrer, pena de abrir brechas, perigosas, na unidade da Constituição. Então, com harmonizar tais comandos, que estão colidindo?

À uma, é de indagar se, “in casu”, há realmente colisão de direitos, o que se resolveria pela questão do peso de cada qual, no caso concreto; para tanto, interessante o estabelecer quando se dá esse fenômeno. Para Mônica Neves Aguiar da Silva há “colisão de direitos, em apertada síntese, quando o exercício de um por parte de seu titular esbarra no exercício de outro por parte de pessoa diversa, ou em face do Estado” (14), conflitos que, consoante Varela de Matos, ” podem reconduzir-se a dois grandes grupos:

a) Colisão de direitos entre vários titulares de Direitos Fundamentais

b) Colisão entre Direitos Fundamentais e Bens Jurídicos da Comunidade e do Estado” (15).

Para Robert Alexy, grande autoridade no assunto:

“A maioria das constituições contêm hoje catálogo de direitos fundamentais escritos. A primeira tarefa da ciência dos direitos fundamentais, como uma disciplina jurídica, é a interpretação desses catálogos. Nisso, valem as regras tradicionais da interpretação jurídica. Estas, todavia, na interpretação dos direitos fundamentais, chocam-se logo com limites. Uma razão essencial para isso é a colisão de direitos fundamentais.

O conceito de colisão de direitos fundamentais pode ser compreendido estrita ou amplamente. Se ele é compreendido estritamente, então são exclusivamente colisões nas quais direitos fundamentais tomam parte colisão de direitos fundamentais. Pode-se falar aqui de colisões de direitos fundamentais em sentido estrito. Em uma compreensão ampla são, pelo contrário, também colisões de direitos fundamentais com quaisquer normas e princípios, que têm como objeto bens coletivos”. (16)


Em obra conjunta e de grande valor, os sempre lembrados Gomes Canotilho e Vital Moreira ensinam que o “fenômeno da colisão ou conflito de direitos fundamentais verifica-se quando o seu exercício colide:

a) com o exercício do mesmo ou de outro direito fundamental por parte de outro titular (conflito de direitos em sentido estrito);

b) com a defesa e protecção de bens da colectividade e do Estado constitucionalmente protegidos (conflito entre direitos e outros bens constitucionais)”. (17)

Desses ensinamentos, de inferir que: a) possível a colisão de direitos envolvendo, de uma parte, o direito fundamental de um indivíduo e, de outra, algum valor e/ou bem constitucionalmente protegido e b) na situação ora “sub examen”, ao que parece, não há colisão de direitos. E por que não?

Porque, como realçado nas linhas transatas, o art. 37, II, CF, não pode ser usado para prejudicar algum trabalhador, ou seja, não poderia ser aplicado, como vem sendo, sem outras considerações; porém, de toda sorte, houvesse, efetivamente, colisão, o problema se resolveria – e resolve – com a indiscutível precedência das normas constitucionais que tratam dos direitos fundamentais, as acima referidas, quando em cotejo com outros valores constitucionais.

Destarte, com base nas normas constitucionais que tratam dos direitos fundamentais, sejam princípios ou regras, a solução a ser adotada é a de que são as mesmas desrespeitadas quando não se reconhece os direitos daquele que admitido sem concurso público por culpa do ente público que não assumiu, em toda a sua plenitude, as obrigações que, enquanto tal, haveria de observar, devendo ser por isso responsabilizado.

Nesse passo, há insistir, não se pode admitir que algum ente público aja em desconformidade com o texto constitucional, isso sempre, mas muito especialmente, no que tange a direitos do trabalhador, fundamentais, como se sabe; aliás, lembra João Caupers que “a vinculação das entidades públicas à Constituição é, em matéria de direitos fundamentais, especialmente forte”(18), assertiva essa que bem se afina com o posicionamento do grande constitucionalista José Joaquim Gomes Canotilho, que, com pena de mestre, que é, esclareceu que “a administração (entenda-se: as várias administrações públicas, central, regional ou local, directa, indirecta, autónoma e concessionada) está vinculada às normas consagradoras de direitos, liberdades e garantias.

Isto significaria em todo o rigor: (1) a administração, ao exercer a sua competência de execução da lei, só deve executar as leis constitucionais, isto é, as leis conforme aos preceitos constitucionais consagradores de direitos, liberdades e garantias; (2) a administração, ao praticar actos de execução de leis constitucionais (= leis conforme os direitos fundamentais), deve executá-las constitucionalmente, isto é, interpretar e aplicar estas leis de um modo conforme os direitos, liberdades e garantias” (19). Segue a mesma linha o preclaro José Carlos Vieira de Andrade, quando afirma que “Os preceitos relativos aos direitos, liberdades e garantias vinculam também o poder administrativo, incluindo-se aí os órgãos da Administração do Estado e das regiões autónomas, as autarquias locais e outras pessoas colectivas públicas” (20).

Portanto, inconcebível mesmo, um ente público agindo em desconformidade com a Constituição, já que de qualquer deles se espera, aliás, mais do que isso, recai uma responsabilidade até maior de agir de acordo, com o maior respeito, ao quanto dispõe a Lei Maior.

Conseqüência disso é que inaceitável, odioso até, possa o ente público beneficiar-se de permitir que alguém trabalhe sem concurso público.

Sob outro enfoque, como acentua, em reveladora colocação, Cármen Lúcia Antunes Rocha, o “princípio constitucional revela o sistema jurídico” (21), em sendo assim, como de fato é, e tendo o princípio da dignidade humana relevância maior entre nós, não há conceber, também por esse motivo, possa algum ente público beneficiar do trabalho de alguém, e depois descartá-lo, sumariamente, sob a alegação de que irregular sua contratação, ferindo e atingindo, sem qualquer cerimônia, sua dignidade e privando-o até, da mesma, a qual, como se não desconhece, tem como componente – e da maior relevância – a garantia de condições mínimas de existência, como já se acentuou; no particular, muito esclarecedora a seguinte passagem de Fernando Ferreira dos Santos, lembrando ensinamento do prof. José Afonso da Silva, “verbis”:

“Instituir a dignidade da pessoa humana como fundamento do Estado Democrático de Direito importa ainda, em conseqüência, não apenas o reconhecimento formal da liberdade, mas a garantia das condições mínimas de existência, em que uma existência digna se imponha como fim de ordem econômica, não se tolerando, pois, profundas desigualdades entre os membros de uma sociedade”. (22)


Nesse passo oportuno o recordar a aguda observação de João Caupers, no sentido de que “Para gozar a maioria dos direitos já não é suficiente ser homem, é preciso ser mais qualquer coisa (ou talvez, ter menos qualquer coisa)” (23), mais adiante, na mesma obra, o citado autor dilucida, desenvolvendo até a idéia anteriormente referida, que os “direitos fundamentais dos trabalhadores são fundamentais na medida que visam assegurar condições de vida dignas, no sentido de minimamente compatíveis com o desenvolvimento da personalidade humana, e garantir as condições materiais indispensáveis ao gozo efetivo dos direitos de liberdade” (24)

De tão evidente, parece que o asserto acima não carece de maior desenvolvimento para demonstração de seu acerto e consistência, pois, de fato e na prática, quem, numa sociedade como a em que vivemos, não tendo como manter-se e a sua família, pode pensar no exercício de seus direitos ou mesmo sonhar com condições dignas de existência?

A partir dessa constatação, não há padecer dúvida que, trazer alguém para trabalhar no serviço público, sem que essa pessoa tenha se submetido e tenha sido devidamente aprovada em concurso público, usar de seu trabalho, por algum período, não-raro longo, com isso impedindo-a até de tentar se colocar em emprego na iniciativa privada e/ou tentar atuar de maneira autônoma e quem sabe lograr êxito em alguma dessas atividades, firmando-se na vida profissional, e depois, quando talvez a idade já conspire quanto à possibilidade de arriscar uma das opções retro-mencionadas, tirar-lhe o trabalho, sob a alegação de que irregular sua contratação, por não precedida de concurso público, traduz, inegavelmente, uma agressão ao princípio da dignidade da pessoa humana – princípio maior, repita-se, da Magna Carta e que não só deve, mas há de nortear a conduta do legislador e também dos operadores de direito.

Não será, por certo, despiciendo o recordar que os princípios constitucionais da Administração Pública, em linhas anteriores mencionados, não restam vulnerados, ignorados e/ou desprestigiados com o raciocínio que se vem de fazer, eis que não podem ser considerados de maneira desvinculada dos princípios fundamentais ou, como superiormente esclarece o Professor Manoel Messias Peixinho: “Os princípios constitucionais da Administração Pública estão inseridos no contexto mais abrangente dos princípios fundamentais. Assim sendo, requer-se do estudioso a busca na Constituição, desses princípios, identificando-lhes a real função, quer estejam implícitos ou explícitos em determinada norma”. (25)

Mais adiante, o citado lente, de forma talvez mais incisiva e muito claramente, afirma que: “Os princípios constitucionais fundamentais ocupam o mais alto posto na escalada normativa” (26), o que leva à que se conclua que não se pode admitir que, com base e por causa de princípios de Administração Pública, por mais relevantes que possam ser, não se reconheça e/ou se ignore direitos do trabalhador.

De notar, a essa altura, que cumpre ao intérprete esforçar-se o quanto estiver ao seu alcance, para que toda e qualquer norma constitucional seja plenamente observada, ainda mais quando se cuidar de alguma dispondo sobre algum direito fundamental, pois, do reverso, pode acontecer de se encontrar dificuldades, em outras situações, para fazer respeitada a Carta Política, o que pode ocasionar prejuízos quiçá irreparáveis e da maior gravidade, assertiva essa que se coloca sob a proteção dos valiosos ensinamentos do grande mestre Robert Alexy, para quem: “Se algumas normas da Constituição não são levadas a sério é difícil fundamentar porque outras normas também então devem ser levadas a sério se isso uma vez causa dificuldades. Ameaça a dissolução da Constituição.

A primeira decisão fundamental para os direitos fundamentais é, por conseguinte, aquela para a sua força vinculativa jurídica ampla em forma de justiciabilidade”. (27) Em linha de arremate, cabe evocar uma passagem do saudoso André Franco Montoro: “As pessoas não são sombras, não são aparências, são realidades concretas e vivas” (28), e justamente por isso, não podem desabar sobre os ombros da pessoa – trabalhadora, os efeitos da contratação nula, pela falta de aprovação em concurso público, em situações como as neste examinadas.

Notas de rodapé

in “Introdução à Teoria do Estado”, Luis Sá, Editorial Caminho, Lisboa, 1986, pág. 31

2- in “O Direito como Obstáculo à Transformação Social”, Sérgio Antonio Fabris Editor, 1998, pág. 179

3- in “Discurso Jurídico e Prática Política”, Obra Jurídica Editora, Santa Catarina, 1997, pág. 33

4- in “A Ordem dos Livros”, Editora UNB, 2ª Edição, pág. 27

5- in “Curso de Teoria do Estado”, Pedro Salvetti Neto, Saraiva, 1979, pág. 57

6- in “Teoria Geral do Estado”, Editora Globo, 30ª Edição, 1993, pág. 06

7- in “Direitos Fundamentais e Controle de Constitucionalidade – Estudos de Direito Constitucional”, Celso Bastos Editor, 2ª Edição, pág. 32

8- in “Ficções”, Editora Globo, 3ª edição, pág. 62

9- In “Interpretação das Leis Sociais”, Empresa Gráfica da “Revista dos Tribunais”, 1941, pág. 04

10- In “O Concurso Público na Formação do Contrato Administrativo”, Lex-Edições Jurídicas, Lisboa, 1994, pág. 21

11- In “A Ordem Econômica na Constituição de 1988”, Malheiros Editores, 6ª Edição, pág. 189

12- In “Direitos da Pessoa e Relação de Trabalho nos Países da América Latina”, artigo de Bruno Veneziani, inserto em obra coletiva “Princípios para um Código-Tipo de Direito do Trabalho para a América Latina”, coordenação de Gian Carlo Perone e Sandro Schipani, LTr, 1996, pág. 96/7

13- In “Comentários à Constituição do Brasil”, 1° volume, Saraiva, 1988, Celso Ribeiro Bastos e Ives Gandra Martins, pág. 425

14- In “Honra, Imagem, Vida Privada e Intimidade, em Colisão com outros Direitos”, Renovar, 2002, pág. 96

15- In “Conflito de Direitos Fundamentais em Direito Constitucional e Conflito de Direitos em Direito Civil”, Almeida & Leitão, Lda, Porto, s/d, pág. 19

16- In “Colisão de Direitos Fundamentais e Realização de Direitos Fundamentais no Estado de Direito Democrático”, RDA, volume 217, julho/setembro de 1999, pág. 68

17- In “Fundamentos da Constituição”, Coimbra Editora, 1991, pág. 135

18- In “Os Direitos Fundamentais dos Trabalhadores e a Constituição”, Livraria Almedina – Coimbra, 1985, pág. 155

19- In “Direito Constitucional e Teoria da Constituição”, Livraria Almedina – Coimbra 1998, pág. 404/5

20- In “Os Direitos Fundamentais na Constituição Portuguesa de 1976”, Livraria Almedina – Coimbra, 1998, pág. 266

21- In “O Princípio Constitucional da Igualdade”, editora Lê, 1990, pág. 19

22- In “Princípio Constitucional da Dignidade da Pessoa Humana”, Celso Bastos Editor, Fortaleza, 1999, pág. 79

23- In obra citada, pág.46

24- In obra citada, pág. 108

25- In “Princípios Constitucionais da Administração Pública”, artigo inserto em obra coletiva, “Os Princípios da Constituição de 1988”, Lumen Juris, 2001, organizadores: Manoel Messias Peixinho, Isabella Franco Guerra e Firly Nascimento Filho, pág. 447

26- In obra e artigos citados, pág. 449

27- In obra citada, pág. 74

28- In “Temas de Direito Constitucional”, obra coletiva, organização de Guilherme José Purvin de Figueiredo e José Nuzzi Neto, ADCOAS – IBAP, 2000, pág. 13

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