Cibernética Penal

Cibernética Penal: o futuro chegou; não há mais como ignorá-lo

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26 de junho de 2002, 17h10

O futuro chegou; não há mais como ignorá-lo.

A passagem de milênio, simbólica para todos os que se utilizam do bom e velho calendário gregoriano, faz lembrar que o ano de 1984 encontra-se completamente superado, mas que o futuro imaginado pelo escritor britânico George Orwell torna-se cada dia mais atual (1).

Ainda pouco estudada a fundo, a cibernética desponta como um poderoso instrumento do conhecimento humano que, caso não seja bem utilizado, tornará os piores pesadelos de Orwell, sonhos de criança.

A palavra cibernética tem sido utilizada vulgarmente como sinônimo de informática ou computação, mas tem um significado próprio bastante distinto. O termo foi empregado pela primeira vez por Nobert Wiener em seu livro Cibernética e Sociedade: o uso humano de seres humanos e tem origem na palavra grega kubernetes, que pode ser traduzida por timoneiro.

O vocábulo é bastante sugestivo e expressa bem o objeto de estudo da cibernética que é, precisamente, a sistematização de uma teoria geral do controle. A idéia é estudar as semelhanças existentes entre os mecanismos de controle de uma máquina (um computador, por exemplo), de animais e dos próprios seres humanos.

Nas palavras de Alexandre Freire Pimentel:

“quando colima fazer um paralelismo analógico a respeito dos problemas da informação nos seres vivos e nas máquinas, a cibernética é considerada como a teoria geral dos sistemas mecânicos e biológicos. É fato ainda que a cibernética estuda as diversas formas de controle e as leis que regem o comportamento, tanto da natureza quanto da sociedade.” (2)

Uma aplicação prática da cibernética bastante difundida atualmente é a Inteligência Artificial (IA), que busca simular em sistemas computacionais o raciocínio humano. Também nas áreas de automação e robótica a cibernética tem se demonstrado como uma ciência de utilidade incontestável.

Se, por um lado, o uso da cibernética como instrumento para o aperfeiçoamento de sistemas informatizados é louvável, o seu emprego como técnica de controle de seres humanos surge como ameaçadora arma a ser utilizada por regimes autoritários e, claro, pelo Direito Penal.

O filme Laranja Mecânica (3) nos dá uma boa idéia do que seria um controle cibernético de seres humanos e de como seu uso, a pretexto de ressocialização, poderia se tornar sedutor. O protagonista do filme acaba sendo forçado a um processo de ressocialização que visava o ajustamento de sua personalidade a padrões socialmente desejados.

Evidentemente uma apenação como esta ofende diretamente o princípio constitucional da liberdade de manifestação de pensamento, pois a norma não pode cercear o direito natural do ser humano ao livre arbítrio.

O indivíduo deve poder escolher entre realizar uma conduta ilícita e ficar sujeito a uma apenação pelo Estado ou renunciar à realização da ação típica e permanecer imune às sanções estatais.

Não pode, pois, ser condicionado a não realizar aquela ação, por qualquer meio, pois estar-se-ia tolhendo, no caso, o próprio direito de escolha inerente a todo ser humano. É por este mesmo motivo que seria completamente absurda a imposição de uma pena de castração química a estupradores.

Diretamente relacionadas com o pressuposto filosófico do livre arbítrio também estão as teorias criminológicas neopositivistas que se baseiam em estudos biogenéticos que nada mais são do que uma manifestação da cibernética como instrumento de controle social a partir do estudo do DNA humano.

Tais teorias ressuscitam o positivismo lombrosiano, travestido de modernidade, tão somente pelo fato de não mais classificar criminosos pelo tamanho de suas orelhas, mas pela combinação das bases nitrogenadas adenina, guanina, citosina e timina.

As conseqüências lógicas de tais estudos seriam os abortos de potenciais criminosos, baseados em estudos genéticos e as condenações à esterilização em virtude da corolária hereditariedade das tendências criminosas. Nos homens em que os genes indicassem uma pré-disposição a taras sexuais, a castração química preventiva poderia ser diagnosticada como solução eficaz na proteção da sociedade.

A primeira hipótese é uma clara ofensa ao princípio do nullum crimen sine lege, a segunda um atentado à garantia de que nenhuma pena passará da pessoa do condenado e a terceira e última, como vimos, uma ofensa irreparável ao direito de escolha que deve ser garantido a todo indivíduo para optar entre cometer ou não um delito.

Evidentemente em todos estes exemplos estar-se-ia retrocedendo ainda a um completamente superado direito penal de autor que só pode encontrar embasamento teórico em argumentos mecanicistas que procuram transpor para as ciências sociais uma exatidão que desde Einstein não existe sequer na Física.

Está claro, pois, que a biogénetica como ciência auxiliar da cibernética tem muito pouco a oferecer às Ciências Criminais.

A Ciência da Computação e a Informática, por outro lado, são importantes instrumentos cibernéticos que, em alguns casos, podem ser utilizados adequadamente pelo Direito Penal, ainda que empregados com muita cautela.

A tecnologia possibilitará a implantação de minúsculos chips no corpo humano capazes de transmitirem para um computador central a exata localização do indivíduo no qual foram implantadados. Seguramente uma forte afetação no direito à privacidade do indivíduo, mas certamente menos prejudicial ao réu do que o cárcere.

Assim, tal mecanismo possibilitaria uma segura efetivação de prisões domiciliares e a progressão de regime dar-se-ia para um regime de liberdade vigiada, no qual seria permitido o livre trânsito do condenado, com vigilância via satélite a todo instante.

Um sistema como este terá um custo menor do que o de manter o condenado em uma cela e criará uma maior chance de ressocialização. Pode representar o início do fim das penas privativas de liberdade como as concebemos hoje.

Os avanços da cibernética parecem indicar que as penas restritivas de liberdade tendem a se transformar em penas restritivas de privacidade o que, em princípio, é um avanço.

Tal mecanismo cibernético deve ser usado com muita moderação, pois não é improvável que surjam idéias de implantação de pequenos eletrodos capazes de imobilizarem por meio de choques elétricos a ação dos condenados quando na iminência de realizarem uma ação potencialmente ilegal, o que seria um abuso injustificável.

A monitoração via satélite provavelmente virá seguida de propostas de um controle direto através de câmeras de vídeo estrategicamente localizadas nas ruas das grandes cidades, como já é feito hoje em dia em estabelecimentos comerciais. Sob o argumento de melhoria da segurança pública estar-se-ia legitimando uma aterradora ofensa à privacidade não só dos condenados, mas de todo e qualquer cidadão que transitasse em frente ao longus oculus do Big Brother. Certamente a implantação de um sistema como este não poderá ser legitimado num Estado Democrático de Direito, devendo ser relegado aos governos autoritários.

Uma pena de liberdade vigiada tem um caráter eminentemente de prevenção especial e, ainda que o cerceamento do direito de ir e vir não ocorra, a restrição à privacidade muito se assemelha à própria privação da liberdade. Em princípio a hipótese poderia ser vista como um retrocesso nas garantias fundamentais do ser humano, porém é necessária uma discussão profunda sobre o tema, pois não se pode olvidar que qualquer pessoa em sã consciência iria preferir ter seus movimentos monitorados do que se ver privada deles. Além do mais, o condenado fica livre para trabalhar, estudar e buscar a necessária reinserção no meio social.

Se, por um lado, a cibernética apresenta soluções alternativas às penas privativas de liberdade até certo ponto viáveis, por outro lado, pode representar um grave perigo à reinserção social do condenado.

É muito provável que, dentro de poucos anos, seja criado um cadastro nacional em que cada cidadão receba um único número que o identifique, substituindo assim uma série de documentos como identidade, CPF, carteira de motorista, título eleitoral, PIS/PASEP, etc.

Certamente os antecedentes criminais ficarão vinculados a tal número, o que facilitará em muito o acesso de tais informações por terceiros, podendo causar graves dificuldades de reinserção social de um condenado, principalmente na obtenção de empregos, já que os empregadores poderiam consultar os antecedentes dos candidatos muito facilmente. Um controle social certamente excessivo e marginalizador que deverá ser minimizado restringindo-se o acesso a tais bancos de dados por parte de terceiros.

O cadastro nacional único poderá ser posteriormente vinculado através da biometria às impressões digitais de cada pessoa. Assim, não se usará mais cartões bancários, pois a simples impressão digital, seguida de uma senha, possibilitará as transações financeiras. Um condenado por assaltos a bancos poderia, assim, ser impedido de adentrar nestas instituições por um certo período de tempo.

As implicações do uso de mecanismos tecnológicos no combate à criminalidade são quase que infinitas e certamente justificariam texto bem mais extenso do que o presente. Buscou-se aqui, tão somente, suscitar o tema tão pouco discutido nos meios jurídicos.

A cibernética como mecanismo de controle social certamente é um importante instrumento a ser estudado pelas Ciências Penais. Se bem usada pode significar o fim das penas privativas de liberdade, se mal instrumentalizada, pode fazer-nos sentir vontade de retornarmos a 1984.

Notas de rodapé:

(1) ORWELL, George. 1984. 23ª ed. São Paulo: Nacional, 1996. 277 p.

(2) PIMENTEL, Alexandre Freire. O direito cibernético: um enfoque teórico e lógico-aplicativo. Rio de Janeiro: Renovar, 2000. (p. 83)

(3) LARANJA Mecânica. Direção, Produção e Roteiro: Stanley Kubrick. Intérpretes: Patrick Magee; Adrienne Corri; Mirian Karlan; Malcolm McDowell e outros. Warner Home Video, 1971. 1 fita de vídeo (138 min), VHS, son., color. Baseado no livro de Anthony Burgess.

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