Dívida pendente

Justiça garante matrícula de aluno com mensalidade em atraso

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26 de junho de 2002, 18h57

A Justiça Federal de Minas Gerais mandou a Fundação Educacional Lucas Machado aceitar a matrícula do estudante de medicina Felippe Penzin Monteiro, mesmo com a mensalidade em atraso. A sentença é do juiz Marcelo Dolzany da Costa, da 16ª vara federal de Belo Horizonte.

A decisão foi baseada no argumento de que o aluno em dívida com a faculdade particular pode renovar a matrícula mesmo que apenas seus pais tenham assinado o contrato. O juiz entendeu que o aluno era um terceiro ao contrato existente entre os pais e a faculdade.

A Fundação Lucas Machado, proprietária de uma faculdade e um hospital-escola em Belo Horizonte, argumentou que a Medida Provisória 2.173-24, de agosto de 2001, autorizava a recusa do aluno no final do ano letivo em caso de inadimplência.

O artigo 5º da lei 9.870, modificado pela Medida Provisória, autoriza o indeferimento de matrícula de alunos inadimplentes. Na sentença, o juiz ressalvou que só pode estar inadimplente quem está contratualmente obrigado.

O contrato foi assinado pela mãe do aluno e duas fiadoras. O juiz lembrou que como a lei era uma norma restritiva, devia ser lida restritivamente. Ele advertiu a faculdade que o caminho correto era a cobrança judicial da dívida diretamente dos pais e de seus fiadores.

Costa lembrou que a lei 9.870, com todas suas restrições, deve amoldar-se à Constituição, e não o contrário. Ele lembrou que o artigo 6º da lei 9.870 proíbe a suspensão de provas escolares, retenção de documentos ou a aplicação de qualquer outro tipo de penalidade pedagógica por inadimplência.

A sentença vale apenas para o caso do aluno mineiro. A Faculdade pode recorrer ao Tribunal Regional Federal de Brasília.

Leia a decisão

PODER JUDICIÁRIO

JUSTIÇA FEDERAL DE 1ª INSTÂNCIA

SEÇÃO JUDICIÁRIA DE MINAS GERAIS

16ª VARA

Proc. nº 2002.38.00.000426-1 – MANDADO DE SEGURANÇA – CLASSE 2100

Impetrante: FELIPPE PENZIN MONTEIRO (Adv.: Gustavo Soares da Silveira)

Impetrado: DIRETOR-PRESIDENTE DA FUNDAÇÃO EDUCACIONAL LUCAS MACHADO

Rep. MPF: Procurador da República José Carlos Pimenta

Juiz Federal: MARCELO DOLZANY DA COSTA

S E N T E N Ç A

1 – Relatório

O impetrante, contando 22 anos de idade ao tempo do ajuizamento deste pedido, questiona o impedimento à matrícula no 3º ano do curso de Medicina na instituição de ensino dirigida pelo impetrado. A recusa se fundaria na existência de débito do impetrante na tesouraria da faculdade. Valendo-se de precedentes, o impetrante pede a suspensão de qualquer ato contrário a seu direito de prosseguir regularmente no curso de Medicina.

A petição inicial veio acompanhada de procuração, contrato de prestação de serviços com a instituição de ensino superior (IES), histórico escolar e boletim parcial de notas de rendimento (f. 9/16).

Concedi-lhe medida liminar para assegurar-lhe a continuidade dos estudos no ano letivo de 2002, acaso a única restrição fosse eventual inadimplência contratual (f. 18/19). A decisão foi acatada, porém impugnada mediante agravo de instrumento junto ao TRF. O efeito suspensivo ali requerido foi denegado (f. 109/131 e 133/136).

A autoridade coatora, em suas informações tempestivas, sustenta:

Incompetência absoluta da Justiça Federal – A súmula 15 do extinto TFR não mais se aplica em razão do que dispõe o art. 209, caput, II, da Constituição Federal, que atribui à livre iniciativa o ensino, desde que sob autorização e avaliação de qualidade pelo Poder Público. A atividade da IES é exercida mediante autorização – e não delegação – da União, logo afastada a regra de competência do art. 109, I, da Constituição de 1988.

Ilegitimidade do impetrado para a causa – O art. 13, XII, do Regimento Interno da IES obriga o Diretor a “cumprir e fazer cumprir as disposições [do Regimento] (…) e demais normas pertinentes”. A IES é também mantenedora da Faculdade de Ciências Médicas e de outros estabelecimento sem personalidade jurídica própria (hospitais e centros médicos e de pesquisa universitária). O presidente da FELUMA, portanto, não tem poderes regimentais para impedir que o impetrante se matricule.

Ausência de direito líquido e certo amparável em mandado de segurança – A petição inicial não esclarece qual o direito líquido e certo que o impetrante tem como violado. Considerando que o advogado subscritor ao final protestou pela produção de prova, logo se vê que o direito é ilíquido.

Mérito: Violação ao art. 5º da lei 9.870/99 – O impetrante deve à IES R$14.071,62 e por isso não pode ter renovada sua matrícula. Segundo o dispositivo legal, “os alunos já matriculados, salvo quando inadimplentes, terão direito à renovação das matrículas, observado o calendário escolar da instituição, o regimento da escola ou cláusula contratual”. Portanto, o ato questionado não é ilegal; ao revés, limita-se a impor a previsão legislativa.


Mérito: Exceção da obrigação contratual não cumprida – Segundo o art. 1.092 do Código Civil Brasileiro – CCB, nenhum contratante pode, antes de cumprida a sua obrigação, exigir o implemento da do outro. Dada a natureza sinalagmática do contrato, a IES não está obrigada a ministrar o ensino ao aluno se este não cumpriu sua obrigação de pagar as mensalidades.

Rescisão do contrato por inadimplemento do impetrante – A cláusula 6ª do contrato tem como condição resolutiva o inadimplemento, pelo contratante, de alguma das condições impostas pelo contrato. A inadimplência do contratante se dá pelo atraso de onze parcelas subseqüentes à matrícula, referentes aos meses de janeiro a novembro de 2001. Sua mora independe de interpelação, segundo a cláusula 3.1.

Inexistência de direito social à educação no caso de alunos da rede privada de ensino – Em nenhuma passagem da Constituição se lê que “devem as instituições privadas custear os estudos de alunos carentes”. Por sinal, o impetrante não é carente: matriculado no terceiro ano consecutivo na IES particular, reside em local privilegiado, sempre estudou em colégio particular cuja clientela é a classe social com maior poder aquisitivo.

As informações trouxeram cópia do estatuto da IES e respectivos atos constitutivos, contrato de prestação de serviço, documentos de identificação da mãe do impetrante, demonstrativo de débito do impetrante, histórico escolar, comprovante de rendimentos dos pais do impetrante, conta de consumo de telefone da residência dos pais do impetrante, declaração de rendimentos destes apresentada ao Fisco (DIRPF-1998-1999), ata da reunião do Conselho Diretor, e Regimento Interno da IES (f.60/107). O parecer do Ministério Público é pela concessão da segurança segundo os fundamentos já delineados na medida liminar (f. 137/138). Conclusão para sentença em 8 de maio último.

2 – Fundamentos do julgado

A impetração veio tempestiva, em data anterior aos 120 dias de que fala o art. 18 da lei 1.533/51. O impetrante tem o direito de ação porque está em condição de terceiro prejudicado, portanto amparado pela regra de legitimação ativa prevista no art. 3º da mesma lei (1).

Aprecio em destaque as preliminares levantadas pela autoridade impetrada.

Incompetência absoluta da Justiça Federal

O impetrante questiona a vedação a recusa da autoridade impetrada em renovar sua matrícula para freqüência no 3º ano do curso de Medicina. O fato é admitido pela impetrada em suas informações ao invocar a regra de inexecução contratual pela cláusula do exceção da obrigação não cumprida (exceptio non adimpleti contractus) e o art. 5º da lei 9.870/99.

Ainda que se discuta a execução de contrato firmado entre particulares alheios à Administração Pública Federal, tem-se que o fundo do direito respeita ao acesso à educação superior. A 1ª Seção do Superior Tribunal de Justiça – STJ tem firmado que simples ato administrativos próprio do gerenciamento da IES privada ou pública estadual ou municipal não atrai a competência da Justiça Federal (2) . A mesma Seção, por outro lado, vê a recusa de matrícula de estudante por inadimplência de pagamento de mensalidades como um dos atos próprios da atividade delegada pela União, daí unanimemente firmar-se a competência da Justiça Federal para processar e julgar mandados de segurança sobre a matéria (3).

A atual Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (lei 9.394, de 20/12/1996) em nada modificou a anterior quanto ao dever imposto à União em “autorizar, reconhecer, credenciar, supervisionar e avaliar, respectivamente, os cursos das instituições de educação superior e os estabelecimentos do seu sistema de ensino” (art. 9º, inc. IX). O argumento de que “não se trata de delegação, mas de autorização” se esvazia porque a autorização somente existe quando há uma atribuição da Administração Pública em executar ou fiscalizar uma atividade. A delegação é objeto; a autorização, o meio. Sendo a autorização “o ato unilateral e discricionário pelo qual o Poder Público delega ao particular a exploração de serviço público, a título precário” (4), aqui se realça a função delegada da IES particular nas matérias já apreciadas em precedentes.

Rejeito a primeira preliminar.

Ilegitimidade passiva para a causa

A autoridade impetrada se tem como parte ilegítima porque é, em verdade, presidente de uma fundação que é simples mantenedora da IES onde o aluno-impetrante pretende continuar seus estudos de Medicina. Não tendo cada uma das unidades assistidas pela FELUMA, segundo disposição regimental, personalidade jurídica própria, não caberia à impetrada a responsabilidade pela recusa de renovação da matrícula do impetrante.

O raciocínio acima não faz sentido.


Se cada uma das entidades mantidas pela FELUMA sequer dispõe de personalidade jurídica própria – porque “mantidas como simples filiais”, explica a impetrada – deve a instituição mantenedora falar e responsabilizar-se administrativa e judicialmente em nome delas. Os atos praticados na exploração do ensino superior e incluídos na delegação do Poder Público tem origem no comportamento ativo ou omissivo dos seus dirigentes.

A autoridade impetrada, esquivando-se da responsabilidade da prática do ato questionado pelo impetrante, não aponta a quem caberia a responsabilidade; limita-se a invocar disposição regimental que lhe atribui o dever de “cumprir e fazer cumprir as disposições” regimentais e demais normas pertinentes.

O art. 30 do Estatuto da Fundação Educacional Lucas Machado – FELUMA, após reforma aprovada pela Promotoria Especializada de Fundações em 5/12/1996 (f. 63 e 65), também atribui ao Presidente (ou Diretor-Presidente, porque Presidente do Conselho Diretor) o poder-dever de “presidir e administrar a Fundação, como mandatário do Conselho Diretor, (…); e representar a Fundação, ativa e passivamente, em juízo e fora dele” (incisos I e II).

Rejeito a segunda preliminar.

Ausência de liquidez e certeza do direito

O direito invocado pelo impetrante é o de prosseguir seus estudos, independentemente da existência de culpa contratual. Tem-se como certo que aqui não se discute a existência de culpa da parte do impetrante, mas a repercussão de culpa, mesmo admitida, na prestação dos serviços de educação. A matéria em discussão repousa na prevalência de dois valores constitucionalmente assegurados: o direito à educação, dever do Estado e da família e promovida e incentivada com a colaboração da sociedade (art. 205); e a livre iniciativa na prestação dos serviços de educação (art. 209 e art. 170, caput).

Ainda que inadimplente, busca-se responder ao impetrante se este tem assegurado o acesso constitucional à educação superior na rede privada. Ainda que prevista em artigo de norma infraconstitucional – o art. 5º da lei 9.870/99 – a possibilidade de recusa de renovação das matrículas em situação de inadimplência, indaga-se sobre o alcance do dispositivo na interpretação finalística do texto constitucional.

O uso da fórmula do requerimento genérico de produção de prova deve ser visto como cacoete jurídico que o azáfama da atividade forense não consegue evitar. Ainda que considerado o trecho da petição do autor onde se faz tal requerimento, nem por isso se deve deduzir que era sua intenção valer-se de processo de conhecimento, e não do mandado de segurança, onde a prova é pré-constituída e eminentemente documental.

Portanto, a liquidez e certeza do direito vindicado está na razão direta em que o Judiciário proclamar que a vontade constitucional poderia ter sido frustrada pelo legislador ou pelo preposto da administração pública a quem foi delegado o serviço de ministrar a educação superior.

Rejeito mais esta preliminar.

O mérito da questão

A impetrada opõe à pretensão do autor quatro teses: (a) violação ao art. 5º da lei 9.870/99; (b) exceção da obrigação contratual não cumprida; (c) rescisão do contrato por inadimplemento do impetrante; e (d) inexistência de direito social à educação no caso de alunos da rede privada de ensino.

Para sustentar o último ponto de sua argumentação, a autoridade impetrada anexa às informações cópias de documentos relativos ao perfil sócio-econômico dos pais do aluno-impetrante, valendo-se de cópia de declaração de IRPF, contracheques e contas telefônicas.

Inicialmente se indaga a correção desse comportamento processual: é ato atentatório ao sigilo fiscal e à intimidade pessoal constitucionalmente resguardada?

O art. 198 do Código Tributário Nacional veda aos funcionários do Fisco a divulgação de informações sobre a situação econômico-financeira dos contribuintes, salvo para outros órgãos fiscais ou mediante requisição regular de autoridade judiciária. Não se trata, aqui, de informação divulgada por agente do Fisco, mas por autoridade privada no exercício de função pública delegada.

Presume-se que tais informações lhe tenham chegado às mãos por entrega da contratante e de seus fiadores como formalidade prévia à celebração do contrato.

Em tese, portanto, não se tem aqui o crime de quebra de sigilo fiscal porque este só admite como agente o funcionário do Fisco.

Discutir sobre eventual existência do crime de violação de segredo profissional previsto no art. 154 do Código Penal é assunto entregue ao estudo dos prejudicados, considerando que somente estes teriam o direito de representação, segundo previsão do parágrafo único. Idêntico raciocínio se aplica quanto à existência de violação contratual ou de quase-ilícito civil.


Aprecio em separado as teses da autoridade impetrada sobre o mérito.

O art. 5º da lei 9.870/99 – A lei invocada pela impetrada para a recusa da matrícula do impetrante está assim redigido, após a redação dada pela medida provisória 2.173-24, de 23/8/01:

Art. 5º – Os alunos já matriculados, salvo quando inadimplentes, terão direito à renovação das matrículas, observado o calendário escolar da instituição, regimento da escola ou cláusula contratual.

Art. 6º – São proibidas a suspensão de provas escolares, a retenção de documentos escolares ou a aplicação de quaisquer outras penalidades pedagógicas por motivo de inadimplemento, sujeitando-se o contratante, no que couber, às sanções legais e administrativas, compatíveis com o Código de Defesa do Consumidor, e com os arts. 177 e 1.092 do Código Civil Brasileiro, caso a inadimplência perdure por mais de noventa dias.

§ 1º – O desligamento do aluno por inadimplência somente poderá ocorrer ao final do ano letivo ou, no ensino superior, ao final do semestre letivo quando a instituição adotar o regime didático semestral.

Os artigos do Código Civil referidos no caput do artigo 6º estão assim redigidos:

Art. 177 – As ações pessoais prescrevem, ordinariamente, em 20 (vinte) anos, as reais em 10 (dez), entre presentes, e entre ausentes em 15 (quinze), contados da data em que poderiam ter sido propostas.

(…)

Art. 1.092 – Nos contratos bilaterais, nenhum dos contraentes, antes de cumprida a sua obrigação, pode exigir o implemento da do outro

Se, depois de concluído o contrato, sobrevier a uma das partes contratantes diminuição em seu patrimônio, capaz de comprometer ou tornar duvidosa a prestação pela qual se obrigou, pode aparte, a quem incumbe fazer prestação em primeiro lugar, recusar-se a esta, até que a outra satisfaça a que lhe compete ou dê garantia bastante de satisfazê-la.

Parágrafo único – A parte lesada pelo inadimplemento pode requerer a rescisão do contrato com perdas e danos.

Todos os dispositivos pressupõem um contrato válido, celebrado entre agentes capazes, objeto lícito e possível e forma não defesa em lei.

A leitura do cabeçalho do contrato-padrão (original a f. 11/13 e cópia a f. 71/73) traz o nome do impetrante como “aluno beneficiário”. São partes ali definidas: Elizabeth Penzin Monteiro (contratante), a Fundação Educacional Lucas Machado – FELUMA (contratada), e Márcia Maria José Penzin e Valéria Penzin, ambas co-obrigadas com a contratante na condição de fiadoras.

O “aluno-beneficiário” aqui deve ser lido como o terceiro em favor de quem se estipulou uma obrigação à IES contratada: “a prestação de serviços educacionais (…), no ano de 2001, ao aluno indicado (…), para série e curso acima mencionados, nos termos do Regimento Interno da Faculdade, da grade Curricular aprovada pelo Conselho Federal de Educação e do calendário escolar, de cujas eventuais alterações se dará ciência à CONTRATANTE” (cláusula 1.1 – f. 11 e 71).

Sobre as estipulações em favor de terceiro, o art. 1.098 do Código Civil assegura ao estipulante o poder de exigir o cumprimento da obrigação. O parágrafo único vai além: “Ao terceiro, em favor de quem se estipulou a obrigação, também é permitido exigi-la, ficando, todavia, sujeito às condições e normas do contrato, se a ele anuir, e o estipulante o não inovar nos termos do art. 1.100.” Em linguagem simples, o CCB assegura ao aluno-beneficiário que também exija da IES contratada a prestação dos serviços de educação, desde que aceite as regras do contrato.

Por enquanto, tem-se claro que o aluno-impetrante não participou da formação do contrato; atuaram, naquele momento, apenas sua mãe e fiadoras respectivas. Nem se podia afirmar que esta agia sob o instituto da assistência ao impetrante, que já era absolutamente capaz para contratar.

A faculdade contratada preferiu obrigar a mãe do aluno, exigindo-lhe, em garantia pessoal, a apresentação de duas fiadoras. Portanto, resguardou-se a contratada quanto a responsabilidade pelo pagamento da matrícula e mensalidades (5)).

Ocorre que o aluno nenhum contrato assinou; logo, nenhuma cláusula se lhe deve obrigar ao pagamento das prestações econômicas. São ali obrigados, como visto, apenas sua mãe e as duas fiadoras que apresentou.

O art. 5º da lei 9.870 se refere a “alunos já matriculados” quando estiverem “inadimplentes”. Somente pode estar “inadimplente” quem se encontra contratualmente obrigado. O aluno-impetrante, terceiro em favor de quem se estipulou um benefício, não se confunde com as partes principais do contrato – a contratante (e garantes respectivos) e a contratada. Se aquele não é parte no contrato, não pode ser tido como inadimplente.

A interpretação restritiva do dispositivo é a única que harmoniza a velha regra de hermenêutica segundo a qual as normas que restringem direitos devem ser interpretadas restritivamente. Tenho que a sanção prevista no art. 5º da lei 9.870 se aplica somente quando o aluno também é contratante. Se é mero beneficiário, portanto terceiro beneficiado, não se lhe opõe o veto de continuar seus estudos.


Exceção do contrato não cumprido (art. 1.092, do CCB) – A autoridade impetrada se vale de expressa remissão do art. 6º da lei 9.870 aos dispositivos do Código Civil, dentre eles o art. 1.092.

Não se tratando de “aluno inadimplente” – mas filho de contratante inadimplente – ao impetrante não se pode opor a recusa no fornecimento da prestação contratada. A autoridade impetrada admite que “trata-se de um contrato bilateral, impondo à mãe do impetrante (beneficiário do contrato) e seus fiadores a obrigação de pagar a mensalidade escolar à faculdade, em contrapartida à prestação de serviços educacionais por parte desta, o que sempre foi feito, apesar da contumaz inadimplência dos contratantes” (f. 50, item 56 das informações).

A autoridade impetrada sofisma que “o impetrante deixou de honrar sua parcela na avença, seja por não quitar de fato os débitos para com a instituição, seja pela tentativa de escudar-se no Poder Judiciário para continuar seu curso gratuitamente” (f. 50, item 57 das informações). Viu-se que jamais o impetrante poderia deixar de “honrar sua parcela na avença” simplesmente porque não era parte contratante, mas beneficiário.

Portanto, a exceção do contrato não cumprido não pode ser oposta ao terceiro, mas à contratante e seus fiadores.

Rescisão contratual por inadimplemento do impetrante – A autoridade impetrada tem como certa a hipótese de rescisão contratual que prevê condição resolutiva com o conseqüente cancelamento da matrícula do aluno e dispensa da contratada em renovar a matrícula para o ano subseqüente.

Aos fundamentos que lancei para considerar o impetrante como terceiro à relação contratual agrego razões de fundo constitucional para afastar a argumentação da autoridade impetrada sob o prisma do direito privado.

A condição resolutiva do contrato – e a conseqüente dispensa do dever de a contratada prestar seus serviços no ano letivo seguinte – não se opera automaticamente.

A autoridade impetrada afirma que juntou “documentos que comprovam a impontualidade” (f. 55, nota de rodapé nº 2). Contudo, não vejo em nenhuma das páginas dos autos tais documentos. Em outra passagem, afirma que “a Faculdade enviou sucessivas cobranças (boletos) para sua residência” (f. 50, item 58). O demonstrativo de f. 75 também não pode ser considerado como prova da mora da contratante porque produzida unilateralmente, sem correlação com outro documento que ateste a mora.

O art. 960 do Código Civil tem em mora o devedor inadimplente de obrigação positiva e líquida. Seu parágrafo único ressalva a exigência de prévia interpelação, notificação ou protesto caso não haja prazo assinado.

Sendo líquida e positiva a prestação da contratante, tem-se como certa a existência de mora, caso sobrevindo o vencimento de cada parcela. Entretanto, a autoridade impetrada não prova tal fato, não junta lista de contratantes inadimplentes, omite-se em comprovar qualquer atitude que tenha tomado para buscar seu crédito; limita-se a afirmar que a contratante está em mora.

Ora, ainda que a contratante esteja em mora – e por isto advinda causa resolutiva do contrato – nem por isso se justifica a aplicação de sanção a terceiro beneficiado sem que se ofereça a este a oportunidade de anuir às normas do contrato (parágrafo único do art. 1.098 do CCB), até mesmo para que venha a purgar a mora (art. 931 do CCB). Também se percebe inexplicável omissão da IES em executar a obrigação solidariamente assumida pelos fiadores, aqui considerados interessados na extinção da dívida (art. 930, caput, do CCB).

Tratando-se de cláusula de adesão, para a qual evidentemente não concorreram a contratante, seus fiadores e o aluno beneficiário, vejo-a como abusiva, portanto nula, à luz do que decreta o art. 51, IV e IX, do Código de Defesa do Consumidor (lei 8.078, de 11/9/1990) (6). Sua abusividade está em sancionar o destinatário dos serviços com a suspensão das atividades de ensino em decorrência de fato que se não lhe pode imputar, e também porque deixa ao fornecedor do serviço a opção de concluir ou não o contrato, assegurando a este, parte mais forte, o exercício de verdadeira autotutela jamais prevista nos Plano Nacional de Educação. Se a lei processual confere ao credor a possibilidade de executar documento particular assinado pelo devedor e duas testemunhas (7), não faz sentido prejudicar a terceiro beneficiário sem que se valha dos meios suasórios judiciais e extrajudiciais para o pagamento de seu crédito.

Inexistência de direito social à educação no caso de alunos da rede privada de ensino – A autoridade impetrada invoca que o direito à educação é direito social, porém em nenhum momento quis o constituinte que as instituições privadas custeassem os estudos de alunos carentes, situação pessoal que não é a do impetrante.


O constituinte de 1988 realmente não usou as palavras que a autoridade impetrada anatematiza. O art. 209 assegurou:

(…) O ensino é livre à iniciativa privada, atendidas as seguintes condições: (I) cumprimento das normas gerais de educação nacional; e (II) autorização e avaliação de qualidade pelo poder público.

Portanto, o ensino superior não é tão livre assim do controle estatal, como talvez preferissem os nostálgicos de Adam Smith hoje abrigados sob a cartilha tatcherista.

O constituinte também previu que o Estado poderia prover ajuda financeira à iniciativa privada engajada na educação superior quando estabeleceu que os recursos públicos também poderiam ser destinados a escolas confessionais ou filantrópicas envolvidas nas atividades universitárias de pesquisa e extensão (art. 231, § 2º).

À atividade do ensino na rede privada não se admitem desvios à finalidade social da educação. O Supremo Tribunal Federal bem lembrou o direito social constitucionalmente assegurado quando proclamou a legitimidade do Ministério Público para questionar em juízo os abusos na cobrança de mensalidades escolares. A educação é bem constitucionalmente protegido com o dever do Estado e obrigação de todos (CF, art. 205), por isso que a retribuição pecuniária envolve “segmento de extrema delicadeza e de conteúdo social tal que, acima de tudo, recomenda-se o abrigo estatal” (8) .

A lei 9.870, com todas suas restrições, deve amoldar-se à Constituição, e não o contrário.

Se a lei tenta frustrar o acesso à educação através de privilégios ao delegado de serviço público que acabam por inviabilizar o direito constitucionalmente assegurado, deve ler-se a restrição com os olhos do constituinte, não do legislador. Os negócios celebrados entre a IES e seus contratantes certamente que se regem precipuamente por cânones de direito privado, contudo devem limitar-se ao interesse público do objeto. Se o Estado provê sobre a discussão do contrato ao oferecer às partes contratantes o recurso às vias judiciais, com certeza aí se terá realizado a vontade constitucional.

Debite-se a Konrad Hesse a culpa dessa crença na interpretação das leis segundo a vontade constitucional (Gesetzsinterpretation mit Verfassungskonforme). Para ele, a força normativa da Constituição será tanto maior quanto mais ampla a convicção sobre a inviolabilidade da Lei Fundamental e quanto mais intensa for a vontade da Constituição. Ainda que idealista tal concepção, porque fundada no que alguns comentaristas têm como “questão de fé”, também se lembre que em cada juiz repousa a esperança de que a vontade de um povo consagrada na Constituição seguirá respeitada pelo legislador, pelo administrador e pelos próprios juízes.

Por último, atente-se que o art. 6º da lei 9.870 veda suspensão de provas escolares, a retenção de documentos escolares ou a aplicação de quaisquer outras penalidades pedagógicas por motivo de inadimplemento”. Não vejo “penalidade pedagógica” maior do que privar o aluno de continuar seus estudos por mera comodidade da IES que confortavelmente fica inerte na cobrança de seus créditos em mãos de devedores cuja liquidez e solvência já foram antecipadamente avaliadas. Tais condições financeiras são presumíveis no caso concreto porque se exigiu da devedora principal a abertura de seu sigilo fiscal como requisito prévio à celebração do contrato.

Mantenho-me coerente ao que já assentou o Tribunal Federal da 1ª Região no julgamento transcrito na concessão da liminar. “a MP-550/94, convertida na Lei nº 9.780/99, proíbe a aplicação de penalidades pedagógicas ao aluno inadimplente” (9).

3 – Dispositivo

Com estas razões, concedo a segurança pleiteada para reconhecer ao impetrante o direito líquido e certo – sobretudo de índole constitucional e porque não obrigado na avença questionada pela IES contratada – de continuar seus estudos no curso de Medicina ministrados por unidade mantida pela instituição dirigida pela autoridade impetrada, independentemente da eventual inadimplência das contratantes.

Declaro abusiva e ilegal a recusa da impetrada em renovar a matrícula do impetrante, terceiro não co-obrigado no contrato em que se funda o ato questionado. Reafirmo a liminar concedida e determino o imediato cumprimento desta sentença. Uma cópia desta decisão lhe será encaminhada.

Não há condenação em honorários advocatícios (10) , mas a IES, aqui representada pela autoridade impetrada, está sujeita ao reembolso das custas adiantadas pelo impetrante. Processo extinto com julgamento de mérito (art. 269, I, do CPC).

Sentença sujeita a reexame obrigatório. Escoado em branco o prazo para recurso voluntário (15 dias), encaminhar os autos ao TRF-1ª Região. Comunicar ao relator do AG-2002.01.000024018/MG, aos cuidados da Subsecretaria da 1ª Turma, a concessão definitiva da segurança em sentença.


Por último – mas não menos importante – determino que uma cópia desta sentença seja remetida, por via postal com AR, aos pais do aluno-impetrante, Elizabeth Penzin Monteiro e João Luiz Monteiro (Rua Tomé de Souza, 247/101 – Funcionários, Belo Horizonte-MG e Rua Professor Santos Roscoe, 65, Belvedere, CEP 30330-000, Belo Horizonte, MG). A finalidade é lembrar-lhes que a educação não é dever exclusivo do Estado; é também tarefa da família (art. 205 da Constituição) (11).

Registrar, publicar e intimar.

Belo Horizonte-MG, 18 de junho de 2002.

Marcelo Dolzany da Costa

JUIZ FEDERAL TITULAR DA 16ª VARA DA SJ/MG

Notas de rodapé

1 – Art. 3º da lei federal 1.533, de 31 de dezembro de 1951: “O titular de direito líquido e certo decorrente de direito, em condições idênticas de terceiro, poderá impetrar mandado de segurança a favor do direito originário, se o seu titular não o fizer, em prazo razoável, apesar de para isso notificado judicialmente.”

2 – CC 30897/SP, rel. min. Francisco Peçanha Martins, DJ-18/3/2002, p. 165.

3 – CC 32302/MG, rel. min. Franciulli Neto, DJ-4/3/2002, p. 170. No mesmo sentido: CC-21776/MA e CC 27740/RJ, dentre muitos. Leia-se a elegante ementa de acórdão relatado pelo ministro Milton Pereira ao tratar do tema na hipótese de recusa de diploma ao aluno inadimplente: “(…) 1. À palma de mensalidades atrasadas, a resistência na entrega do diploma é procedimento administrativo que transcende questão meramente contratual em assunto interna corporis. É ato administrativo do exercício de função pública pelo Estado (expedição e registro de diploma), consubstanciando a fuga da prestação de atribuições delegadas pelo Poder Público (art. 205, C.F.). 2. As vertências, pois, do acontecimento, relacionadas ao ensino superior delegado até a conclusão do curso, cônsono os limites da delegação, revelam o desfrute da competência da Justiça Federal. 3. Precedentes jurisprudenciais. 4. Conflito conhecido e declarada a competência do Juízo Federal, suscitante.” (CC-CC 24964/MG, DJ-18/2/2002, p. 221). O mesmo relator, em outro julgamento, exemplifica um caso típico de assunto interna corporis que afasta a competência da Justiça Federal: “(…)Quando, porém, o ato corresponde a típica atividade administrativa interna corporis, ditada nos Estatutos ou Regimento do estabelecimento de ensino superior, não se identifica atuação de autoridade federal e, de regra, a competência aprisiona-se à Justiça Estadual” (CC-29911/PR, 1ª seção, DJ-28/5/2001, p. 146).

4 – DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. “Direito administrativo” : São Paulo : Atlas, 2002, 14ª ed., p. 218.

5 – Art. 1.493, caput, do CCB: “A fiança conjuntamente prestada a um só débito por mais de uma pessoa importa o compromisso de solidariedade entre elas, se declaradamente não se reservaram o benefício da divisão.”

6 – “São nulas de pleno direito, entre outras, as cláusulas contratuais relativas ao fornecimento de produtos e serviços que (…) estabeleçam obrigações consideradas iníquas, abusivas, que coloquem o consumidor em desvantagem exagerada, ou sejam incompatíveis com a boa-fé ou a eqüidade (…); [e] deixem ao fornecedor a opção de concluir ou não o contrato, embora obrigando o consumidor.”

7 – Art. 585, II, do CPC

8 – RE-163231, rel. min. Maurício Corrêa, Plenário, DJ-29/6/2001, p. 55.

9 – REO-96.01.44288-0/MG, rel. juiz José Henrique Guaracy Rebêlo, 1ª turma suplementar, DJ-8/10/2001, p. 261.

10 – Súmulas 512-STF e 105-STJ.

11- “(…) O juiz, colocado no centro do campo analítico ou interpretativo, vivificando o direito previne e resolve a maioria dos conflitos, interpretando a normatividade abstrata diante de situação conflituosa concreta. Os princípios gerais do direito, como linha geral do ordenamento jurídico, evitam que a solução dos conflitos entre as partes crie um conflito social maior.” (min. Milton Pereira, 29/8/2000, STJ, RESP-188789/RS. DJ-16/10/2000, p. 286).

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