Bom senso

Morte instantânea em acidente não gera condenação por omissão

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13 de junho de 2002, 12h45

O Código de Trânsito brasileiro (Lei 9.503/97) incriminou, autonomamente, a omissão de socorro “no trânsito” (CTB, art. 304: “Deixar o condutor do veículo, na ocasião do acidente, de prestar socorro à vítima, ou, não podendo fazê-lo diretamente, por justa causa, deixar de solicitar auxílio da autoridade pública: Penas – detenção, de seis meses a um ano, ou multa, se o fato não constituir elemento de crime mais grave“). São inconfundíveis, portanto, esse delito previsto no art. 304 do CTB e o crime previsto no art. 135 do CP. O art. 304 vale somente para o condutor de veículo.

No parágrafo único do artigo 304 estabeleceu-se que “incide nas penas previstas neste artigo o condutor do veículo, ainda que a sua omissão seja suprida por terceiros ou que se trate de vítima com morte instantânea ou com ferimentos leves“.

No caso de morte da vítima a omissão de socorro não configura crime autônomo, senão uma causa de aumento de pena (CTB, art. 302, parágrafo único, inc. III).

Já tivemos ocasião de enfatizar que no caso de morte instantânea a legislação é incompreensível e absurda porque se a vítima morreu instantaneamente não há como prestar socorro. Comprovando-se inequivocamente que a morte foi realmente imediata, não existe justificativa para a existência do crime (cf. Gomes, Luiz Flávio, Estudos de direito penal e processo penal, São Paulo: RT, 1998, p. 45).

Sobre o tema o STJ acaba de decidir o seguinte:

A prestação de socorro é dever do causador do atropelamento, e a causa especial de aumento da pena só é afastada em situação que impossibilite fazê-la, tal como a que comporte risco de vida ao autor ou que caracterize que ele estava fisicamente incapacitado de prestar o socorro.

A alegação de que houve a morte imediata da vítima também não exclui aquele aumento, visto que ao causador não cabe, no momento do acidente, presumir as condições físicas da vítima ou medir a gravidade das lesões; isso é responsabilidade do especialista médico. Com esse entendimento, a Turma, por maioria, negou provimento ao recurso. Precedentes citados: REsp 161.399-SP, DJ 15/3/1999, e REsp 207.148-MG, DJ 4/9/2000 (REsp 277.403-MG, Rel. Min. Gilson Dipp, julgado em 4/6/2002)”.

Esse julgado deve ser bem compreendido (deve ser visto com cautela, leia-se, cum grano salis). De fato ao causador do acidente “não cabe, no momento dele, presumir as condições físicas da vítima ou medir a gravidade das lesões”. Seu dever primeiro é o de prestar socorro (quando possível).

De qualquer modo, se depois do acidente vem a comprovação (inequívoca) de que a vítima morreu instantaneamente, de prestação socorro não se pode falar. Aliás, todo socorro pressupõe uma vida a ser salva, uma integridade física a ser reparada etc. Não existindo o pressuposto não se pode falar na conseqüência.

Se a vítima morreu instantaneamente não há nenhum bem jurídico pessoal mais a ser tutelado. Como prestar socorro (à vítima do acidente) se ela já não tem vida, se ela já não conta com integridade física tutelável?

A causa de aumento de pena prevista no art. 302, parágrafo único, inc. III (assim como o delito do art. 304) tem como pressuposto (típico) natural o reconhecimento de uma vítima (viva) que deve ser amparada, ajudada.

Fazer incidir o aumento da omissão de socorro quando a vítima morreu no mesmo ato do acidente é a mesma coisa que condenar uma mulher por aborto sem gravidez. É o mesmo que condenar uma mulher por infanticídio sem haver recém nascido.

A inexistência do bem jurídico protegido (vida do feto no aborto, vida ou integridade física na omissão de socorro etc.) conduz à não incidência do Direito penal (por se tratar de crime impossível: CP, art. 17). Como atentar contra a vida de um feto que não existe? Como atentar (mediante omissão de socorro) contra a vida ou integridade física de uma pessoa já morta (instantaneamente)?

A ciência do Direito Penal é valorativa (axiológica), mas há conceitos ontológicos insuperáveis (como expõe Welzel), que vinculam o legislador e o intérprete. Há dados físicos que (constituindo pressupostos típicos) não podemos superar (nunca). Como admitir o delito de aborto sem a prévia gravidez? (para o estudo mais detalhado dos requisitos e pressupostos típicos dos delitos remeto o leitor para meu curso de Direito penal on-line: www.ielf.com.br).

Concluindo: condenar alguém por omissão de socorro quando houve morte instantânea significa não só um atentado contra o bom senso, senão inclusive patente violação das leis físicas. Significa, ademais, punir o agente arbitrariamente. Porque sem afetação concreta ao bem jurídico protegido não se pode conceber a incidência do Direito Penal (cf. Gomes, Luiz Flávio, Norma e bem jurídico no Direito penal, São Paulo: RT, 2002 e Princípio da ofensividade no Direito penal, São Paulo: RT, 2002).

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    é mestre em direito penal pela Faculdade de Direito da USP, professor doutor em direito penal pela Universidade Complutense de Madri (Espanha) e diretor-presidente da Rede de Ensino LFG.

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