Tecnorrealismo

Os Tecnorrealistas e um novo enfoque para a política tecnológica

Autor

  • Omar Kaminski

    é advogado e consultor gestor do Observatório do Marco Civil da Internet membro especialista da Câmara de Segurança e Direitos do Comitê Gestor da Internet no Brasil (CGI.br) e diretor de Internet da Comissão de Assuntos Culturais e Propriedade Intelectual da OAB-PR.

8 de junho de 2002, 23h54

Freqüentemente as discussões sobre a política do ciberespaço transformam-se em uma “guerra” entre duas facções: de um lado estão os “tecno-utopistas” que vêem o ciberespaço com uma nova, idílica fronteira onde o governo é desnecessário e os preconceitos podem ser superados. De outro, aqueles que temem que a tecnologia possa colocar em risco as comunidades e a própria estrutura dos valores.

Em 12 de março de 1998, um grupo de 12 experts em Tecnologia da Informação quis dar um basta a essa “guerra” – ou pelo menos negociar um cessar fogo – por meio da exteriorização de um novo enfoque para a política da tecnologia. Eram os auto-intitulados “tecnorrealistas“, e sua participação consistiu na formalização de um conjunto de princípios que descrevem a tecnologia tanto trazendo modernos benefícios como riscos inesperados. A tecnologia deve ser encarada, eles dizem, com cuidado e ceticismo. Esses princípios são tão simples que alguns entendem como sendo expressões do bom senso, outros os consideram ingênuos.

O assunto gira em torno de como a tecnologia pode afetar e está afetando nossas vidas. E os tecnorrealistas esperam ajudar na manutenção da sociedade, encorajando decisões políticas mais diligentes e que adotem uma perspectiva mais adequada.

Conforme acredita Andrew Shapiro, tecnorrealista e membro do Berkman Center for Internet and Society, “se existe uma palavra que resume tudo isso, é equilíbrio”. Equilíbrio entre a inovação e a tradição, individualismo e comunidade, liberdade e responsabilidade.

O enunciado de princípios dos tecnorrealistas abrange diversos assuntos, incluindo o direito autoral (“a Informação precisa ser protegida”), educação (“modernizar as escolas não vai salvá-las”), e o controle das microondas (“devemos exigir mais pelo uso da propriedade pública”).

Talvez o ponto mais controvertido é o que defende que o governo deve ter um interesse legítimo para determinar regras para as redes de computadores. Idéia que irrita alguns ativistas – incluindo um bom número de influentes e veteranos usuários da Internet – que argúem que o ciberespaço deve ser utilizado apenas como uma experimentação na política social do laissez-faire, ou livre intervencionismo. “O ciberespaço não é formalmente uma jurisdição ou lugar separado da Terra”, argumentaram os Tecnorrealistas. “É tolice dizer que o povo não possui soberania sobre aqueles cidadãos errantes ou corporações fraudulentas fazem online“.

Mas o interesse maior é enriquecer o debate, e não tomar partido em determinadas políticas. Porque a Internet e outras inovações tecnológicas são tão novas e complexas, dizem os tecnorrealistas, que se torna fácil que qualquer discussão sobre o assunto acabe se tornando nebulosa pelo efeito do medo e pela desinformação.

O Tecnorrealismo é uma tentativa de se estimar as implicações políticas e sociais da tecnologia, para que se possa ter mais controle sobre o futuro. Isso envolve um exame crítico contínuo de como as tecnologias – comuns ou de ponta – poderão ajudar ou prejudicar a luta por uma melhora na qualidade de vida e na estrutura econômica, social e política.

E exige um pensamento crítico sobre o papel da tecnologia na evolução humana e na vida diária, e dentro dessa perspectiva, a tendência da tecnologia como transformação, enquanto importante e poderosa, e como ondas contínuas de mudança através da história. Isso com a adoção de uma visão apaixonada e otimista a respeito de certas tecnologias, e desdenhosa e cética a respeito de outras. Como objetivos, nem coroar nem desmerecer a tecnologia, mas sim entendê-la e aplicá-la de um modo mais consistente com os valores humanos básicos.

Princípios do Tecnorrealismo

1. A tecnologia não é neutra.

Uma concepção errônea e própria de nosso tempo é a de pensarmos que a tecnologia é completamente livre de influências – isto porque é um artefato inanimado, não se sobrepõe a um comportamento ou exige uma conduta. Na verdade, a tecnologia possui tendências – sociais, políticas e econômicas, sejam elas intencionais ou não. Todo recurso proporciona aos seus usuários uma maneira particular de visualizar o mundo, e maneiras específicas de interação com os demais. Isto é importante para que cada um de nós possa entender as tendências de vários tipos de tecnologia e para que possamos seguir as que reflitem os nossos valores e aspirações.

2. A Internet é revolucionária, mas não é utópica.

A Net é uma ferramenta de comunicação extraordinária, que propicia uma gama de novas oportunidades para pessoas, comunidades, negócios e governos. À medida que o ciberespaço vai se tornando cada vez mais populoso, proporcionalmente irá continuar refletindo os comportamentos da sociedade em toda sua complexidade e como um todo. Assim como a vida permite situações esclarecedoras e elucidativas, há também dimensões que permitem experiências perversas, maliciosas ou particularmente ordinárias.

3. O Governo tem uma importante função na fronteira eletrônica.

Contrariamente a algumas reivindicações, o ciberespaço não é um lugar ou jurisdição formalmente separada da Terra. Enquanto os governantes devem respeitar as regras e os costumes utilizados no ciberespaço, e não devem reprimir este novo mundo com regulamentação ineficiente ou censura, é tolice dizer que o povo não possui soberania sobre o quê aquele cidadão errante ou corporação fraudulenta pratica online. Como representante do povo e guardião dos valores democráticos, o Estado tem o direito e a responsabilidade de auxiliar a integração do ciberespaço com a sociedade convencional. Os padrões de tecnologia e os assuntos envolvendo privacidade, por exemplo, são muito importantes para serem confiados apenas ao mercado. Empresas competitivas de software têm pouquíssimo interesse em preservar os padrões básicos essenciais ao funcionamento de uma rede interativa. O mercado encoraja inovações, mas elas não garantem necessariamente o interesse público.

4. Informação não é conhecimento.

Em toda a nossa volta, a informação está se movendo rapidamente e tornando-se mais barata, e os benefícios são evidentes. Isto significa que a proliferação de dados é também um sério desafio, demandando novos meios de disciplina e cepticismo humano. Não devemos confundir a situação de se obter ou de se transmitir informações rapidamente com a de se converter essa informação em conhecimento e sabedoria. Mesmo com nossos computadores tornando-se cada vez mais avançados, não devemos utilizá-los como substitutos das nossas habilidades cognitivas básicas de consciência, percepção, juízo e razão.

5. Informatizar as escolas não irá salvá-las.

O problema das escolas públicas – destinação duvidosa do capital, falta de promoção social, salas de aulas lotadas, infra-estrutura precária – não tem quase nada a ver com a tecnologia. Conseqüentemente, a tecnologia não irá trazer uma revolução educacional. A arte de lecionar não pode ser replicada pelos computadores, pela Internet ou por ensinamentos à distância. Estas ferramentas podem, claro, aprimorar ainda mais uma experiência educacional que já é de boa qualidade. Mas confiar nelas como sendo algum tipo de panacéia será um ledo engano.

6. A informação quer ser protegida.

É verdade que o ciberespaço e outros desenvolvimentos recentes estão desafiando nossas leis de direitos autorais e estruturas, visando proteger a propriedade intelectual. A resposta, entretanto, não é quebrar estátuas pré-existentes e princípios. Ao invés disso, devemos atualizar leis antigas e interpretações, para que deste modo a informação possa receber rigorosamente a mesma proteção que possuía no contexto das antigas mídias. O objetivo é o mesmo: possibilitar aos autores o controle suficiente sobre seus trabalhos, incentivandos-o a criar, enquanto mantém o direito do público de fazer uso justo dessa informação. Em nenhum dos contextos a informação “quer ser livre”. Ela precisa, sim, ser protegida.

7. O povo possui as transmissões de rádio e tv e deve beneficiar-se de seu uso.

O novo espectro digital possibilita aos emissores e transmissores o uso corrupto e ineficiente de recursos públicos na área de tecnologia. Os cidadãos devem se beneficiar obtendo proveito das freqüências públicas, e devem reservar uma porção do espectro para uso educacional, cultural e público. Devemos exigir mais pelo uso particular da propriedade pública.

8. Entender a tecnologia deve ser um componente vital para a cidadania global.

Num mundo dirigido e direcionado pelo fluxo de informações, as interfaces – e o código por sobre elas – é que possibilitam às informações serem visíveis, e estão se tornando uma força social muito poderosa. Compreender o seu poder e suas limitações e até mesmo participar da criação de melhores ferramentas deve ser uma porção importante do exercício de uma cidadania consciente. Estas ferramentas afetam nossas vidas tanto quanto as leis, e devemos submetê-las a uma crítica democrática semelhante.

Os preceitos basilares das altas tecnologias são muito importantes para serem abandonados à mercê do mercado. Não importa o quão revolucionárias serão, as comunidades geográficas e os estados-nação são significativos e a Internet não deve ser o arauto de uma sociedade sem cidadania.

Copyrights ©1998 David Shenk/Andrew L. Shapiro/Steven Johnson.

Autores

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    é advogado, diretor de Internet do Instituto Brasileiro de Política e Direito da Informática (IBDI) e membro suplente do Comitê Gestor da Internet no Brasil (CGI.br).

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