Regras do jogo

O novo regime jurídico e a sociedade limitada

Autor

  • Ellen Carolina da Silva

    é mestranda no curso de mestrado profissional strictu sensu em Direito Justiça e Desenvolvimento no IDP LLM em Direito Empresarial internacional pela Universidade da California — Davis e sócia do escritório Luchesi Advogados em São Paulo.

22 de julho de 2002, 18h01

O novo Código Civil – Lei 10.406/02, sancionado em janeiro de 2002, contém uma parte dedicada às empresas, na qual se encontra a regulamentação de todos os tipos societários, inclusive da sociedade limitada, anteriormente denominada sociedade por quotas de responsabilidade limitada. As alterações trazidas com a edição desse novo corpo de leis são de extrema relevância, em virtude da importância desse tipo societário para a sociedade brasileira e para a dinâmica da vida empresarial.

1- Da impropriedade da expressão “Sociedade Limitada”

O novo Código Civil atribui ao tipo societário substitutivo da atual “sociedade por quotas de responsabilidade limitada” a expressão “sociedade limitada”, como é usualmente conhecida no meio empresarial.

Todavia, referida expressão não se coaduna com a extensão desse tipo societário. A princípio, para a correta identificação dos diversos tipos societários, basta que o intérprete examine a questão da responsabilidade dos sócios e a forma em que se divide o capital social. Verifique-se, por exemplo, a sociedade anônima. O artigo 1º da Lei 6.404/76 determina expressamente que neste tipo societário o capital é dividido em ações e a responsabilidade dos sócios é limitada ao preço de emissão das ações subscritas ou adquiridas. O mesmo acontece na sociedade em comandita por ações, a qual possui o capital dividido em ações e apresenta as duas características de sócios: o gerente, com responsabilidade ilimitada e subsidiária e os demais sócios, que têm a responsabilidade limitada ao preço de emissão das ações por ele adquiridas ou subscritas.

Dessa forma, a expressão “sociedade limitada” não é a mais apropriada, uma vez que não é só nela que se encontra a responsabilidade dos sócios limitada ao valor de suas participações.

Seguindo essa linha de raciocínio, o nome “sociedade por quotas de responsabilidade limitada” é o mais apropriado à identificação de seu regime jurídico, pois verificam-se todos os elementos necessários à sua constituição, quais sejam, o capital dividido em quotas e a responsabilidade dos sócios limitada ao valor de seu capital social.

2- Regime Jurídico aplicável no caso de omissão da lei

O Decreto 3.708/19, o qual ainda regulamenta a “sociedade por quotas de responsabilidade limitada”, determina o seguinte:

“Art. 18 – Serão observadas quanto às sociedades por quotas de responsabilidade limitada, no que não for regulada no estatuto social, e na parte aplicável, as disposições da lei das sociedades anônimas”

Dessa forma, o regime jurídico das sociedades por quotas de responsabilidade limitada atrai a disciplina das sociedades anônimas como regime subsidiário, tanto em relação às lacunas do Decreto 3708/19, quanto às omissões constantes dos contratos sociais.

No entanto, alterando substancialmente tal disposição, o novo Código Civil, em seu artigo 1.053, remete o regime subsidiário à disciplina das sociedades simples, ao prever o seguinte:

“Art. 1053. A sociedade limitada rege-se, nas omissões deste capítulo, pelas normas das sociedades simples.

Parágrafo único. O contrato social poderá prever a regência supletiva da sociedade limitada pelas normas da sociedade anônima”

Referida redação pode parecer confusa ao intérprete. Com efeito, cabe a pergunta: aplicam-se, na omissão, as normas da sociedade simples ou as da sociedade anônima?

Primeiramente, devemos salientar que, ao contrário do que possa parecer, não é obrigatória a regra constante do “caput” do artigo, qual seja a de que, nas omissões do capítulo, se aplicam as normas da sociedade simples. Na verdade, o parágrafo único admite a possibilidade de estipulação diversa no contrato social, com escolha da regência supletiva por parte da legislação que disciplina a sociedade anônima.

Conclui-se, portanto, que o “caput” do artigo 1053 trata das omissões no capítulo das limitadas, enquanto que o parágrafo único menciona diretamente a regência supletiva pelas normas da sociedade anônima, desde que previsto no contrato social.

Parece bem mais adequado que as omissões da limitada sejam supridas pela lei das sociedades anônimas do que pelo capítulo das sociedades simples, tendo em vista os inúmeros pontos de afinidade que as duas primeiras possuem entre si, como por exemplo, a assembléia de sócios e o conselho fiscal. Somente o fato de a responsabilidade dos sócios, nas sociedades simples, ser ilimitada e nas sociedades limitadas e nas sociedades anônimas, tal responsabilidade é limitada, já torna nítida a diversidade dos referidos regimes.

Ademais, o regime subsidiário oferecido pela lei das sociedades anônimas não poderá sucumbir perante o das sociedades simples. Com todo o respeito, não se apresenta sensata a opção feita no caput do referido artigo, porque a sociedade simples tem nítido caráter de sociedade de pessoas, o que pode restringir as limitadas que então, passarão a se orientar, estritamente, por normas desse tipo de sociedade.

Dessa forma, entendemos que a escolha das normas da sociedade anônima para suprir as lacunas do capítulo das limitadas afasta a aplicação das normas da sociedade simples.

3- Das quotas e possibilidade de sua cessão

As quotas representam o contingente patrimonial com que o sócio concorre para o capital da sociedade.

O artigo 1.055 do Novo Código Civil determina o seguinte:

“Art. 1055. O capital social divide-se me quotas, iguais ou desiguais, cabendo uma ou diversas a cada sócio.

parágrafo 1º. Pela exata estimação dos bens conferidos ao capital respondem solidariamente todos os sócios, até o prazo de cinco anos da data do registro da sociedade.

parágrafo 2º. É vedada a contribuição que consista em prestação de serviços.”

A quota é, portanto, parte do capital social. É indivisível em relação à sociedade, salvo para efeito de cessão.

Cabe ressaltar, sob tal aspecto, que o Decreto nº 3.718/19 é silente quanto à possibilidade de cessão de quotas, tendo prevalecido entendimento doutrinário e jurisprudencial no sentido de que, sendo a cessão para terceiro, deverá ela ser precedida da anuência dos demais sócios.

O novo Código Civil estabelece, em seu artigo 1.057, que se o contrato for omisso quanto à cessão, o sócio poderá ceder sua quota, total ou parcialmente, a quem seja sócio, independentemente da anuência dos outros sócios, ou a terceiros, se não houver oposição de titulares de mais de um quarto do capital social. Ou seja, se não houver oposição e nem previsão no contrato, o sócio poderá ceder a sua quota a terceiros, independentemente da anuência dos demais titulares.

A despeito da referida disposição, o parágrafo único do artigo 1.057 prescreve que a cessão somente terá eficácia em relação à sociedade e a terceiros a partir da averbação do respectivo instrumento subscrito pelos sócios anuentes. A partir dessa disposição, o novo Código Civil ratifica o entendimento, antes já amplamente defendido pela doutrina e pela jurisprudência, de que a cessão somente produzirá efeitos em relação a terceiros a partir do registro e se precedida da anuência dos demais sócios.

Caso a quota do sócio remisso não seja integralizada, os outros sócios poderão tomá-la para si ou transferi-las a terceiros, excluindo o titular anterior e devolvendo-lhe o que foi pago.

4- Da administração da sociedade

O artigo 1060 do novo Código Civil determina que a administração da sociedade limitada compete a uma ou mais pessoas designadas no contrato social ou em ato em separado. Não há qualquer disposição no sentido de que o administrador deva ser necessariamente pessoa física.

Ao designar que os administradores poderão ser investidos em ato em separado, o artigo 1062 exige a qualificação de seu estado civil, residência, etc, todos elementos que indicam tratar-se de pessoa física. Isso, contudo, não impede que uma pessoa jurídica seja nomeada para administrar a sociedade e delegue seus poderes de administração a uma pessoa física, tal qual ocorria no sistema anterior.

5- Das assembléias e das deliberações dos sócios

Ao tratar da realização das assembléias e das deliberações dos sócios na sociedade limitada, o novo Código Civil trouxe as seguintes modificações:

a) obrigatoriedade de realização de assembléia geral anual de quotistas, que deverá ocorrer obrigatoriamente quatro meses depois do fim do exercício social, para a aprovação das contas, do balanço, e do resultado do exercício findo;

b) obrigatoriedade de assembléia geral prévia para realizar operações de reorganização societária, como fusões, incorporações, cisões, bem como pedido de concordata, modificação do contrato social e designação de administradores.

c) exigência de aprovação de ¾ do capital social para toda e qualquer deliberação sobre modificação de contrato, incorporação, fusão ou dissolução da sociedade, ou cessação do estado de liquidação.

d) concessão de prazo de trinta dias para os cotistas decidirem se irão subscrever as novas quotas, quando a sociedade decidir aumentar o capital social;

e) necessidade de os controladores informar os minoritários, com antecedência de trinta dias, de que têm prioridade na aquisição de novas quotas;

f) obrigatoriedade de publicação da operação em jornais de grande circulação, no caso de redução do capital das sociedades.

É de se ressaltar, ainda, que deverá haver previsão expressa no contrato social das sociedades limitadas de que os bens dos sócios podem ser penhorados para o pagamento de compromissos da empresa, nos casos de fraude e atos irregulares de administração.

6- Da Resolução da sociedade em relação a sócios minoritários

O artigo 1085 do novo Código Civil dispõe sobre a exclusão dos sócios pela maioria representativa de mais da metade do capital social, quando aqueles estiverem colocando em risco a continuidade da empresa, em virtude de atos de inegável gravidade.

A exclusão será feita mediante alteração do contrato social. Efetuado o registro da alteração contratual, aplicar-se-á o disposto nos artigos 1031 e 1032 do novo Código Civil, os quais contemplam a responsabilidade pessoal do sócio excluído pelas obrigações sociais anteriores, que subsistirá até 2 (dois) anos após a exclusão ou, ainda, pelas obrigações sociais posteriores, caso não seja averbada a resolução parcial da sociedade, decorrente da exclusão do sócio.

Ora, tal dispositivo não se coaduna com a essência das sociedades limitadas. Os sócios de uma limitada são responsáveis somente pela integralização do capital da sociedade, tal como previsto no artigo 1.052. Exceto em situações especiais, em que é cabível a desconsideração da personalidade jurídica, os sócios não respondem pelas obrigações da sociedade.

É de se ressaltar, neste passo, que a aplicação da norma do artigo 1.032 somente faz sentido nas sociedades simples – capítulo onde está inserido – porque nelas a responsabilidade dos sócios é ilimitada.

Mostra-se, portanto, absurda a disposição no sentido de que o sócio de uma limitada passe a responder pelas obrigações sociais quando excluído da sociedade. Tal dispositivo não se concilia com o artigo 1.052, o qual dispõe sobre a responsabilidade limitada dos sócios.

7- Conclusão

Verifica-se, portanto, que o novo Código Civil contempla algumas situações que podem comprometer a vida das sociedades limitadas no Brasil e que, a princípio, não se aplicam adequadamente à sua essência. Por essa razão, as alterações impostas para as sociedades por quotas de responsabilidade limitada devem ser muito bem estudadas, tanto no caso de empresas existentes, as quais terão que se adaptar às novas regras, como para a abertura de novas, nas quais a estratégia definida pelos sócios poderá não refletir o intuito ou objetivo previsto, em função das mudanças impostas pelo novo Código Civil.

Ressalte-se, ainda, que as empresas terão prazo de um ano, contado da data de entrada do novo Código, ou seja, a partir de janeiro de 2003, para adequar seu contrato social às novas regras.

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