Danos morais

Judiciário pune adequadamente quem ofende honra alheia

Autor

20 de julho de 2002, 18h37

Os brasileiros definitivamente acordaram para a existência de um direito constitucionalmente reconhecido e que significa, na prática, o direito a indenização por danos morais. A par disso, tornou-se corrente nos meios jurídicos apregoar a suposta existência do que chamam de “indústria do dano moral”, e partindo assim da rotulação fácil de um fenômeno saudável oriundo da conscientização das pessoas quanto aos seus direitos, tentar desqualificar e tolher a legitimidade das indenizações obtidas por meio de ações legalmente propostas e julgadas pelo Poder estatal respectivo.

Voltam-se alguns contra a suposta indústria que, segundo querem fazer crer, estaria formando um verdadeiro exército de novos milionários no Brasil, ao mesmo tempo em que, dentre outras teorias, e para desde logo inibir a consciência jurídica de uns e outros apregoam ser mesmo imoral, inclusive com fundamentos bíblicos, o direito à indenização por dano moral e sob outro ângulo, não ser cabível no Brasil a adoção da “teoria do valor do desestímulo”, por entenderem não ser compatível com o ordenamento jurídico brasileiro a outorga de caráter punitivo às indenizações desta espécie.

Entretanto, há alguns equívocos substanciais nesses entendimentos que merecem ser apontados e corrigidos segundo os devidos termos jurídicos da matéria.

A questão é sabidamente tormentosa – não a ponto de desnaturar o instituto das indenizações por dano moral – e tem provocado acirradas discussões no meio jurídico, por conta da falta de critérios pré-estabelecidos em lei para a quantificação das indenizações, aspecto que pode vir a ser parcialmente superado pelo advento de lei específica, cujo projeto tramita no legislativo.

Neste contexto, as decisões judiciais têm trilhado pelas mais variadas alternativas e soluções, sempre com supedâneo nas formulações teórico-doutrinárias e nos precedentes jurisprudenciais. A moderna noção de indenização por danos morais, quanto aos seus objetivos mediatos e imediatos, funda-se no binômio “valor de desestímulo” e “valor compensatório”.

O primeiro termo, e de mais aguda discussão por seu peso nas finanças do agressor, visa dissuadir o lesionador a não perseverar na prática lesiva, de modo que outros indivíduos não mais venham a sujeitar-se a lesões da mesma espécie. Com esse norte, parte-se para a adoção dos critérios de fixação do valor da condenação.

Esta fase de verificação, embora muitas vezes confundida com aquela acima exposta quanto ao sentido da condenação, dela é nitidamente distinta.

Nesta, buscam-se critérios para a valoração da indenização. Naquela, estabelecem-se fins a serem atingidos com a condenação e seu valor monetário.

Valho-me do ensinamento de Carlos Alberto Bitar:

“Levam-se em conta, basicamente, as circunstâncias do caso, a gravidade do dano, a situação do lesante, a condição do lesado, preponderando, em nível de orientação central, a idéia de sancionamento ao lesante ( ou punitive damages, como no direito norte-americano).” ( in “Reparação Civil por Danos Morais”, RT, 3ª ed., pg. 279)

Assim, em termos práticos, deve-se considerar para a aferição do valor indenizatório a condição econômica das partes – evitando-se o enriquecimento indevido de um e o empobrecimento do outro – a extensão do dano e o grau de culpa do ofensor ( e até mesmo do ofendido).

A propósito cabem algumas breves considerações sobre o temor que se tem apregoado de por meio de indenização por danos morais, levar-se ao enriquecimento indevido e/ou sem causa do recebedor da indenização e/ou ao empobrecimento do devedor da indenização.

O que é salutar que se evite no âmbito das indenizações por danos morais, mormente diante da sua saudável proliferação, é o enriquecimento desmedido e desproporcional em relação às características e à dimensão da lesão em si mesma, é à condição do lesado, mas não qualquer enriquecimento.

Neste sentido, desmedido e indevido seria o acréscimo de um valor indenizatório que levasse a vítima a saltar de um patamar sócio-econômico para outro mais elevado, tornando remediado quem era pobre, rico quem era apenas remediado, e milionário quem era tão somente rico.

Assim, mesmo para quem recebe um salário mínimo mensal ou milhares deles como paga de seu trabalho, o recebimento de um real que seja, e apenas um real, importa em substancial e efetivo enriquecimento, porque o valor acresceu ao que normal e ordinariamente é percebido pelo beneficiado de modo que o que enriquece é o acréscimo em si, e não o seu montante, isoladamente.

Sob outro ângulo, não se tem caracterizado o propalado enriquecimento indevido ou ilícito, ou até mesmo o locupletamento ilícito por vezes aventado.


Ocorre que até chegar ao valor final da indenização o lesado – credor da obrigação – teria necessariamente percorrido todo o longo caminho imposto pelo devido processo legal, não se podendo admitir desta forma que, forjado o valor indenizatório sob o crivo e com a chancela do Poder Judiciário, e qualquer que seja o quantun da condenação transitada em julgado – frise-se, transitada em julgado – a título de danos morais, tenha ocorrido enriquecimento indevido ou ilícito, e muito menos locupletamento deste ou daquele.

Neste passo, jamais seria indevido ou ilícito o enriquecimento advindo de indenização recebida e fixada em dado patamar ao longo de fundamentada e motivada decisão judicial, prolatada ao cabo de ação judicial regulamente proposta e processada.

Sob o prisma do empobrecimento de quem paga a indenização, aplica-se inversamente o que acima foi exposto, ressaltando-se apenas que a indenização, se for irrisória diante do poder econômico do ofensor, poderá redundar em estímulo a novas práticas lesivas pelo lesante, e novo dano imaterial e psíquico ao lesado, que sentir-se-á desmerecido da ampla e devida proteção estatal, ainda que provado o fato da lesão imaterial e sua extensão danosa.

Fala-se também em enriquecimento sem causa quando oriundo das indenizações por danos morais. Outra incorreção.

Veja-se: faltará causa somente quando o valor da indenização escapar ao que alguns convencionam como razoável ou assim ocorrerá quando não houver fato provado a justificar a indenização?

Na primeira hipótese, parte-se de premissas falsas para chegar à conclusão desejada, mas não menos falsa, e que é assim resumida: uma indenização por danos morais só seria legítima quando baixo o seu montante e fosse, no máximo, equivalente ao valor do dano material sofrido. Além disso, seria mesmo imoral pleitear e obter indenização por danos morais.

Ora, o dano moral pode ocorrer sem que tenha corrido qualquer dano material. Ademais, o termo “moral”, nesse campo do direito, antes de designar propriamente um dado comportamental afeito aos bons costumes, quer significar um dano não-material, por contraposição ao dano material.

Conjugando-se a dita falta de causa com as alegadas cifras milionárias das condenações, concluir-se-ia haver se instaurado um verdadeiro mecanismo de distribuição de renda no Brasil, a despeito das variadas e sucessivas tentativas promovidas pelo governo a longo tempo, todas sem sucesso.

Entretanto, para justificar a teoria do “dano moral imoral”, recorre-se sempre a casos pontuais e extravagantes, e que correspondem a uma pequena parte restrita às exceções diante de uma avassaladora maioria, sem considerar os inúmeros pedidos que são julgados improcedentes, justamente porque os fatos da causa não ensejaram qualquer dano moral significativo a ponto de permitir a condenação.

Embora se fale em indenizações milionárias, não se apresenta para conhecimento amplo e prova cabal da dita “indústria milionária” sequer o exemplo de um brasileiro que, aquinhoado com tão vultosa indenização por danos morais, tenha largado o seu barraco na favela e mudado de mala e cuia para os bairros chiques, deixando aquela vidinha dura de antes para tornar-se um marajá de pijama.

Não nos esqueçamos de que entre os maiores pagadores de indenizações por danos morais estão as instituições financeiras, que ainda assim reiteram as práticas lesivas, porque as indenizações pagas a despeito de serem consideradas por alguns altíssimas e até mesmo milionárias, não teriam atingido o seu objetivo desestimulador.

Há quem defenda a teoria do não cabimento da condenação à indenização por danos morais que imponha uma punição ao lesante além da compensação ao lesado porque teria ela – a punição – feições penais e não meramente civis, falando mesmo em aberração jurídica quando isto se permite ocorrer no direito brasileiro. Afirma-se, também, que o sentido punitivo estaria compreendido na condenação compensatória, dando-se assim tão só pelo fato da propositura da ação indenizatória que venha a ter o seu pedido julgado procedente, ou mesmo pela mera previsão legal que a permita em abstrato.

Ora, é de todo incongruente repelir o caráter punitivo nas indenizações por danos morais, aceitando-se apenas o sentido compensatório da indenização, para depois admitir que no próprio bojo da condenação compensatória está incluída uma punição. Ou bem se entende que o caráter punitivo é incompatível com as leis brasileiras, e portanto nunca seria cabível, ou bem se admite que é cabível e compatível, tanto que compreendido nas condenações compensatórias. Não há convivência pacífica entre as duas posições.

Por outro lado, soa ingênua a afirmação de que a tão só previsão legal da possibilidade de uma condenação já seria suficiente para inibir o lesionador potencial, notadamente quando se sabe da ampla e variada reiteração das práticas lesivas que ocasionam danos morais.


Afirma-se, ainda, a incompatibilidade da aplicação da teoria do valor de desestímulo com o disposto no artigo 5°, X, da Constituição Federal.

Confunde-se, desta forma valoração do fato lesivo em si mesmo com a quantificação da indenização decorrente, que são instâncias e momentos distintos na análise de uma causa indenizatória.

O artigo 5° X, da CF garante o direito à indenização por decorrência da violação dos direitos ali mencionados, mas não prevê ou impõe correspondência com a extensão do dano. Trata o texto constitucional apenas da valoração abstrata dos fatos hábeis a ensejar um dano moral, mas nunca se referindo à extensão do dano e muito menos dispondo sobre a quantificação da indenização ou sobre critérios para a sua aferição. A CF, portanto, não restringe a indenização à mera compensação pelos danos morais sofridos, e menos ainda cuida ou sob qualquer ângulo delimita a quantificação das indenizações, mas apenas da qualificação de certos fatos que, como tais, são aptos a ensejar a obrigação de indenizar.

Observemos, mais, que a CF garante o direito à indenização, mas em momento algum dispensa o seu titular e pretendente de provar, pelos meios processuais ordinários, a efetiva ocorrência dos fatos que ensejam a indenização por danos morais. E aqui dá-se novo equívoco largamente difundido.

A reboque da folclórica e imaginativa “indústria dos danos morais”, chega-se a imaginar a transformação do Poder Judiciário em “…verdadeiro cassino, onde pessoas mal-intencionadas recorreriam às Cortes em busca das nefastas indenizações milionárias…”.

A afirmação é grave, e revela a real intenção dos tantos quantos se opõem às indenizações por danos morais em quantias que lhes incomodem eficazmente, mas que ainda não os têm dissuadido da prática de novas e reiteradas práticas lesivas.

O que tem incomodado mesmo alguns setores – justamente aqueles que mais têm sido condenados ao pagamento de indenizações por danos morais – é a eficácia incontestável do valor das indenizações concedidas, e assim ocorrendo porque representam um peso considerável nos cofres do lesionador obrigado à indenização.

Segundo pensam, dar-se-ia algo como “pediu, ganhou”, embora seja evidente que não ocorre desta forma. Como antes mencionado, ao lado dos pedidos acolhidos, há inúmeros pedidos repelidos pelo Poder Judiciário.

A estapafúrdia tese embutida nessa teoria é no mínimo sintomática do quanto se sentem incomodados os grandes pagadores de indenizações. E não nos esqueçamos: se pagam, em última instância, é porque causaram lesões.

Considere-se também, como dito, que todas as indenizações são concedidas no âmbito de uma ação judicial e do seu correspondente processo, mediante apresentação de petição inicial elaborada por advogado legalmente habilitado e portador de capacidade postulatória, sendo impositiva a obediência aos deveres previsto no artigo 14 do Código de Processo Civil.

Provados os fatos descritos na causa de pedir, e sendo eles aptos a ensejar os danos morais pleiteados, julga-se procedente o pedido, sujeitando-se a sentença ao recurso próprio. Tudo mediante o devido processo legal, com oportunidade de ampla defesa e estrita obediência ao contraditório.

Nos casos em que há exagero nas condenações, tem o Superior Tribunal de Justiça exercido com presteza a revisão dos valores, de modo a adequá-los a parâmetros razoáveis segundo aqueles critérios referidos no início.

É preciso considerar que os juizes têm antes de mais nada, o bom senso suficiente e o necessário equilíbrio necessários para o arbitramento das indenizações, embora ainda assim, queiram alguns desenhar o ato do arbitramento dos valores pecuniários como um momento perigoso e nefasto. Mas só quando se trata de arbitramento de indenizações por danos morais.

Quando o juiz, por exemplo, arbitra os honorários do advogado, nos termos dos artigos 22, parágrafo 2°, da lei 8.906/94 ou 20, do Código de Processo Civil, nada há de errado e nem se visualiza perigo.

Note-se que o caráter punitivo das sanções pecuniárias aliás, é largamente difundido no Código de Processo Civil, que permite ao juiz da causa impor multas claramente punitivas com caráter de pena civil sem que nestes casos, se tenha visualizado um extravasamento de competência ou invasão da esfera penal, tudo ao lado de outras penalidades estritamente processuais e procedimentais. Mas bastou ao juiz cível adotar o valor de desestímulo como critério de arbitramento e fixação do valor das indenizações por danos morais para logo enxergar-se um atentado aos direitos e garantias individuais, e até mesmo uma negação ao Estado Democrático de Direito.

Esta teoria do não cabimento do valor de desestímulo, ademais, assenta-se em premissas falsas.

Com efeito, diz-se que o valor da indenização por danos morais não pode ser superior ao valor correspondente ao efetivo dano, dado o caráter unicamente compensatório que se deve emprestar-lhe.

Por esta peculiar formulação, somente poderia ocorrer condenação à indenização por danos morais quando ocorresse um dano material oriundo do mesmo fato ou fatos, não podendo o montante pecuniário daquela suplantar o valor deste.

À parte o estudo da lógica pura e a análise da correção do raciocínio empregado, que são tarefas dos lógicos, é trabalho do jurista averiguar a veracidade das premissas quando postas em termos jurídicos. E nesse passo se constata desde logo a fragilidade dos argumentos acima referidos, porque a indenização por danos morais independe da ocorrência de danos materiais, assim ocorrendo nas hipóteses do chamado dano moral puro.

Ora, se podem ocorrer danos morais ainda que não tenham ocorrido danos materiais, não se pode cunhar a regra geral de que o valor daquele somente pode corresponder, no máximo, ao valor deste.

Considere-se ainda que a despeito da maior ou menor extensão do dano material, não é difícil ocorrerem situações em que o dano moral, em sua quantificação, venha a suplantar em muito o dano material.

Não se pode generalizar fatos específicos para transformar em regra os casos excepcionais de distorção do instituto indenizatório que compensa e pune o dano moral ou imaterial com eficácia. Afinal, é exercendo seus direitos que as pessoas atingem a cidadania plena.

Autores

Tags:

Encontrou um erro? Avise nossa equipe!