Era digital

Exageros da Lei de Direitos Autorais prejudicam o interesse público

Autor

  • Guilherme C. Carboni

    é advogado responsável pela área de Propriedade Intelectual do escritório Tozzini Freire Teixeira e Silva Advogados e mestre em Direito Civil pela Faculdade de Direito da USP.

20 de julho de 2002, 19h02

O desenvolvimento da Internet e da tecnologia digital possibilitou um importante avanço no processo de criação de obras intelectuais. Com base em um modelo em que o usuário se comunica diretamente com outro usuário sem um controle central, a Internet permite um maior aproveitamento de obras previamente criadas, que podem ou não estar em domínio público.

Considerando as particularidades da tecnologia digital, não podemos pensar na aplicação dos tradicionais conceitos do direito de autor sem uma adaptação à nova realidade. Também seria inadmissível ao jurista discutir qualquer forma de proteção autoral na tecnologia digital sem levar em conta as discussões sociológicas e econômicas sobre redes de informação e novos conceitos de criação em arte digital.

O direito de autor surgiu como um privilégio inicialmente concedido aos editores para garantir um monopólio na comercialização de obras literárias. O aparecimento da imprensa foi fundamental para a construção do conceito de direito às criações literárias e artísticas. Com a Revolução Francesa, o privilégio anteriormente concedido ao editor passa a ser de titularidade do criador da obra. Em outras palavras, o autor é erigido à condição de cidadão e, em virtude disso, tem os seus direitos reconhecidos por lei. Tais direitos têm como pressuposto a necessidade de identificação do autor em sua obra intelectual, que passa a ser considerada uma extensão de sua personalidade. A preocupação com a proteção internacional desses direitos resultou na assinatura da Convenção de Berna de 1886 e em diversos tratados internacionais sobre a matéria no transcorrer do século XX.

Para Michel Foucault, o conceito de autoria não é algo imutável na história. Houve um tempo em que a determinação da autoria era irrelevante ao processo de circulação do saber. Na Idade Média, por exemplo, o autor era reconhecido às avessas, isto é: sofria uma punição por ter manifestado livremente o seu pensamento. Muito se evoluiu com relação a essa época e, hoje, tanto o direito à liberdade de manifestação do pensamento como o direito a ser identificado como autor são assegurados constitucionalmente.

O reconhecimento da autoria é, sem dúvida, um direito inerente ao criador da obra intelectual. Na obra digital, porém, a autoria pode se apresentar de forma diluída, pelo fato de ser aberta à interatividade e se transformar nas mãos de diversas pessoas. Por essa razão, muitas vezes fica difícil identificar o verdadeiro autor da obra digital. Isso resta evidente se considerarmos as diversas “recombinações” feitas por artistas multimídia sobre obras de terceiros protegidas por direitos autorais, criando sempre uma obra nova, completamente diferente das obras utilizadas na sua composição.

A grande questão que se coloca ao direito de autor diz respeito aos novos valores relativos ao processo de criação da obra digital. A sociedade deverá decidir entre permitir determinadas formas de utilização e transformação de obras criadas por terceiros com base nos princípios estabelecidos pela própria tecnologia digital ou proibir todas essas novas formas de criação sem a autorização dos respectivos autores.

Os tratados internacionais e a legislação interna sobre direito de autor dos diversos países não oferecem resposta às principais questões envolvendo a tecnologia digital. Apesar de a nossa Lei nº 9.610 de 19 de fevereiro de 1998 (“Lei de Direitos Autorais”) ser recente, ela não trata a obra digital e a sua utilização na Internet de maneira adequada. Na verdade, a Lei de Direitos Autorais procurou apenas transportar para as obras digitais os mesmos conceitos de direito de autor tradicionalmente aplicados às obras analógicas, quando, na verdade, o funcionamento do direito autoral analógico se contrapõe à ética criada pela própria tecnologia digital.

No âmbito da Internet, o direito ainda não encontrou o justo balanceamento entre o interesse do indivíduo criador da obra e o do público que deseja dela fruir ou utilizá-la na composição de outras obras. É preciso, pois, trazer a questão da função social do direito de autor ao debate. Uma maior proteção significa um menor grau de acesso a obras intelectuais que, dependendo do caso, deveriam ser de uso livre.

A Lei de Direitos Autorais não deve criar obstáculos à interatividade propiciada pela Internet, sob o risco de contribuir ainda mais para o aumento da exclusão digital, que não diz respeito apenas à limitação de acesso às redes de informação, mas também ao exercício da inteligência coletiva propiciada pela tecnologia digital. De fato, a interatividade permite uma maior democratização do uso de obras intelectuais, além de incentivar a criação de formas mais dinâmicas de produção intelectual.

De acordo com Lawrence Lessig, o grande perigo de uma ampliação do campo de proteção do direito de autor na Internet está no fato de que, no meio digital, esse controle aparece de modo muito mais forte do que no meio analógico. Ao mesmo tempo em que a Internet facilita o uso indevido e a reprodução não autorizada de uma obra, os mecanismos de controle digital e rastreamento de informações são muito mais eficientes do que nos meios analógicos. Assim, uma legislação de direito de autor muito rígida poderia desestimular as diversas possibilidades criativas proporcionadas pela Internet.

Alguns exageros na proteção do autor em detrimento do interesse público podem ser observados na Lei de Direitos Autorais. Um bom exemplo está na proibição da cópia integral de uma obra, ainda que para uso privado sem finalidade lucrativa. Nesse caso, o ato é inclusive tipificado como crime, sem que haja o estabelecimento de qualquer limite quanto ao uso justificado da reprodução, o que poderia ser alegado, por exemplo, por um estudante que efetua a cópia integral de um livro pelo fato de sua edição estar esgotada.

É importante lembrar que nem sempre o aumento da proteção autoral à obra intelectual e da restrição ao seu uso livre representam um benefício ao indivíduo criador da obra. Muitas vezes, a defesa de uma maior proteção e restrição ao uso livre de obras intelectuais é uma bandeira da própria indústria cultural em defesa de seus interesses. É certo que o Brasil é um dos países com maiores índices de pirataria e que a mesma deve ser coibida. Mas também é certo que as políticas públicas deveriam aumentar as limitações ao direito de autor em determinadas circunstâncias, principalmente no âmbito da Internet, visando o interesse social à livre utilização de obras intelectuais protegidas e a inclusão digital como uma das formas de defesa da cidadania.

A sociedade tem interesse na manutenção de um mecanismo de estímulo ao autor para que continue criando e para que lhe seja reconhecido o direito a uma remuneração pelas suas criações. Porém, não se pode admitir que, sob o argumento de uma alegada defesa do direito moral do criador, o direito de autor passe a funcionar não mais como um mecanismo de estímulo, mas como um entrave às novas formas de criação possibilitadas pela tecnologia digital.

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    é advogado responsável pela área de Propriedade Intelectual do escritório Tozzini, Freire, Teixeira e Silva Advogados e mestre em Direito Civil pela Faculdade de Direito da USP.

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