Crime e castigo

Ministério Público deve afastar procuradores que favoreceram IOS

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19 de julho de 2002, 13h11

A crise que resultou na saída do ministro Miguel Reale Júnior do Ministério da Justiça, na semana passada, foi a ressaca de um período de inferno astral em que mergulhou o procurador-geral da República, Geraldo Brindeiro.

Em meados de junho, sem os chamados holofotes da imprensa e numa sessão por demais discreta para os padrões de Brasília, o Conselho Superior daquele órgão decidiu, em votações separadas, abrir processo administrativo para expulsar, de seus quadros, os procuradores Miguel Guskow e Antonio Carlos Fonseca.

Motivo: envolvimento em transações irregulares de títulos públicos e prática de advocacia administrativa para beneficiar a IOS Informática na disputa pelas vendas dos produtos Microsoft. De quebra, no caso de Fonseca, há ainda uma denúncia de assédio sexual. Os processos correm em sigilo.

Muito grave para um órgão que tem em seus quadros figuras que se destacam como baluartes na defesa dos bens públicos. Talvez isso explique, como revelou uma fonte, a votação em peso a favor do duplo expurgo. A mesma fonte justifica a discrição no fato de os processos terem sido desdobrados e ainda depender do Superior Tribunal de Justiça (STJ) a decisão mais delicada, por tratar de matéria criminal.

No caso do procurador Miguel Guskow, conforme apurou a revista Consultor Jurídico, o Conselho decidiu pelo placar de nove votos a zero (Brindeiro, o décimo voto, absteve-se) pela abertura de processo para a cassação da função. Já no caso de Fonseca, a decisão foi por oito votos a dois.

Se pode servir de consolo ao procurador-geral da República, apontado como pivô da crise que resultou na queda de Miguel Reale Júnior, a Comissão de Inquérito que ele designou não hesitou em cortar a própria carne após mais de um ano de investigações. Além da tomada de inúmeros depoimentos, a Comissão baseou-se também nas apreensões de documentos feitas pelo Departamento de Polícia Federal. Disso resultou uma novela de capítulos bastante emocionantes e reveladores dos bastidores da Capital Federal. Alguns deles, aqui revelados:

Capítulo um: Na esteira do boom dos produtos Microsoft no mundo inteiro, a empresa brasiliense TBA Informática recebe o certificado para representação exclusiva dessa marca no Distrito Federal mas, internamente, deixa a concorrência ouriçada. A IOS Informática, também da Capital Federal, declara guerra oficial e leva o caso à Secretaria de Direito Econômico (SDE), do Ministério da Justiça. Como advogado, e valendo-se da experiência de integrante do Conselho de Defesa Econômica (Cade), Antonio Carlos Fonseca da Silva oferece um parecer ao escritório Iracema Cana Brava sobre a legalidade dos contratos celebrados pela TBA Informática com a administração pública. A idéia era desenvolver um serviço de auditoria conhecido como Relatório de Compatibilidade Concorrencial (Competition Compliance Report). Não deu em nada. Mais adiante, Fonseca deixaria de ser advogado da TBA e passou-se a suspeitar de que teria passado informações vitais à IOS.

Capítulo dois: Fonseca aparece no relatório da Comissão de Inquérito como autor confesso de um fax que motivou, em novembro de 1999, um ofício (nº 338), da Terceira Câmara do Ministério Público, encaminhado ao Secretário de Direito Econômico do Ministério da Justiça, determinando que nenhum acordo fosse assinado com a Microsoft no processo administrativo instaurado por representação da IOS, sem a prévia manifestação do representante do Parquet federal, porque o assunto era do interesse específico da Terceira Câmara. O presidente da Terceira Câmara e representante do MPF era o mesmo Miguel Guskow que, a partir do ofício nº 338, passou a peticionar no processo como se fosse advogado, até mesmo requerendo diligências, tentando impedir que a TBA continuasse a comercializar seus produtos junto aos órgãos governamentais.

O processo é todo um emaranhado de suspeitas, principalmente no que diz respeito à participação da IOS até mesmo nos textos oficiais. Havia impressões digitais demais nos documentos trocados. Detalhe: à época, estava à frente da SDE o atual ministro da Justiça, Paulo de Tarso Ribeiro.

Capítulo três: As quebras de sigilo telefônico permitiram à Polícia Federal identificar uma quantidade incomum de ligações entre Antonio Carlos Fonseca e Guskow, e, mais estranhamente, entre este e a proprietária da IOS Informática, Lisane Bufquin. As coincidências são gritantes. Exemplo: no dia 28 de fevereiro de 2000, Lisane Bufquin vai pessoalmente ao gabinete de Guskow que, no dia seguinte, expede outro ofício favorável à IOS, com cópia para o Tribunal de Contas da União. A empresa, nesse meio tempo, ganha um contrato para vendas de produtos da Microsoft à Infraero. No TCU, a IOS despeja toda a carga contra a TBA, mas não toma o cuidado de modificar os termos de sua defesa que, como comprovaram os investigadores, é idêntico ao teor da Terceira Câmara.

Capítulo quatro: A Polícia Federal apreende vários documentos pessoais de Miguel Guskow. Num deles, está escrito, de próprio punho: IOS + MPF X MICROSOFT + TBA.

Capítulo cinco: A Comissão de Inquérito não tem dúvidas: o uso dos cargos para defesa de interesses da empresa IOS Informática feriu os princípios de legalidade, impessoalidade e moralidade, necessários à prática administrativa. Em outras palavras, concluiu-se que houve desvio de poder. Para a Comissão, a punição a ser aplicada aos dois procuradores independe das investigações policiais. Os indícios de improbidade administrativa são claros, conclui.

Para consubstanciar o voto do Conselho Superior do Ministério Público, bastaria apenas a aplicação do art. 11º da Lei n.º 8.429, de 02 de junho de 1992, que diz: “Constitui ato de improbidade administrativa que atenta contra os princípios da administração pública qualquer ação ou omissão que viole os deveres de honestidade, imparcialidade, legalidade e lealdade às instituições…”

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