Caso Olivetto

Juíza autoriza entrevistas com seqüestradores de Olivetto

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16 de julho de 2002, 13h40

Réus podem perder a liberdade mas não o direito de se expressarem. O entendimento é da juíza da 19ª Vara Criminal de São Paulo, Kenarik Boujikian Felippe. Ela decidiu que os réus no processo sobre o seqüestro do publicitário Washington Olivetto podem dar entrevistas.

O Ministério Público havia pedido para a Justiça impedir que os réus fossem entrevistados pela imprensa. Empresas e jornalistas pleitearam autorização para entrevistarem os acusados.

“O que se quer no caso vertente é proibir os réus de darem entrevistas, ou seja, proibir que eles exerçam o direito de liberdade de expressão e desta forma atingir o direito de informação e de liberdade de imprensa, que são direitos sociais. Não há como admitir esta proibição. O direito que eles possuem são na verdade de todos e protegidos pela Constituição, que acolheu valores éticos e políticos de uma sociedade democrática”, afirmou a juíza.

De acordo com a juíza, “a incomunicabilidade não pode ser aceita sob qualquer circunstância em uma decisão administrativa, já que há expressa proibição na Constituição”.

Leia a decisão

19ª Vara Criminal

Processo: 050.02.004398-8

Controle: 176/02

Vistos, etc.

O Ministério Público ofereceu denúncia e com a inicial requereu que fossem os réus proibidos de dar entrevistas, o que foi indeferido. Posteriormente jornalistas e empresas pleitearam autorização para entrevistarem os réus. Foi colhida a manifestação de vontade dos acusados e deferido o pedido em relação aos que aquiesceram. Washington Olivetto, como Assistente do Ministério Público, requereu a reconsideração desta decisão, o que foi reiterado pelo Ministério Público que, em caso de não acolhimento do pedido, requereu que a manifestação fosse recebida como correição parcial.

As partes foram intimadas para se manifestarem na correição parcial.

Decido.

Entendo que os fundamentos da decisão não foram abalados pelas razões apontadas pelo recorrente.

Passados mais de duzentos e vinte anos da Declaração de Direitos de Virgínia, lamentavelmente, ainda se questiona a liberdade de expressão.

A primeira decisão referente ao tema, neste processo, foi prolatada nos seguintes termos:

“Indefiro o pedido para que os acusados sejam proibidos de dar entrevistas.

O sigilo decretado diz respeito ao processo. A limitação de direitos tem como fonte os direitos e garantias fundamentais previstos na Constituição Federal, que são aplicados a todas as pessoas. Dessa forma, os presos podem se manifestar, segundo o seu juízo de conveniência e não terão limitada a sua liberdade de expressão” (fls. 98)

Após, foi mantida a decisão quando apreciado o pedido de reconsideração:

“Mantenho a decisão proferida e não imponho proibição aos réus de precederem entrevistas, que farão, segundo o seu juízo de conveniência e oportunidade, como decidido às fls. 97/98. O sigilo diz respeito ao processo, mas tal circunstância não pode impor limitação à liberdade de expressão.

A questão não tem caráter administrativo, como aponta o Ministério Público. O fato de haver uma Resolução da SAP em nada altera este enfoque. Trata-se de questão jurisdicional, pois se trata de permitir a realização dos direitos e garantias fundamentais. De nada vale um rol de direitos e garantias fundamentais, aplicável a qualquer pessoa, independentemente de nacionalidade, gênero ou raça, se tais direitos não puderem ser concretizados, ou seja, não puderem ser exercidos.

A função primeira do juiz é garantir os direitos, é permitir que eles saiam do papel e se tornem realidade. Não é uma resolução que pode alterar a Constituição”.

Há uma história dos direitos de expressão, informação e imprensa, direitos que são interligados, e que deve ser relembrada, ainda que sucintamente.

Foi uma declaração de Direitos do Estado de Virginia, datada de 1776, que reconheceu explicitamente a liberdade de expressão através da imprensa. Em 1791 a Emenda número 1 da Constituição dos Estados Unidos da América garantiu este direito e em 1789 a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão contemplou estes direitos estabelecendo:

“A livre comunicação das idéias e das opiniões é um dos mais preciosos direitos do homem; todo o cidadão pode, portanto, falar, escrever, imprimir livremente, respondendo todavia pelos abusos desta liberdade nos termos previstos em lei”.

A declaração Universal dos Direitos Humanos, em 1948, em seu artigo 19, acolheu estes direitos e também expressamente o direito de informação. Podemos destacar, ainda o artigo 19 do Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos, de 1966; o Convênio Europeu para a Proteção dos Direitos Humanos e das Liberdades Fundamentais; e o artigo 13 do Pacto de San José da Costa Rica, ratificado pelo Brasil.


A Constituição Brasileira em vigor consagrou a proteção destes direitos em vários artigos:

O artigo 5º, que trata dos direitos e garantias fundamentais , estabeleceu em vários incisos a proteção da liberdade:

“inciso IV – é livre a manifestação de pensamento, sendo vedado o anonimato;

inciso XI – é livre a expressão da atividade intelectual, artística, cientifica e de comunicação, independentemente de censura ou licença;

inciso XXXIII – todos têm o direito de receber dos órgãos públicos informações de seu interesse particular, ou de interesse coletivo ou geral, que serão prestadas no prazo da lei, sob pena de responsabilidade, ressalvadas aquelas cujo sigilo seja imprescindível à segurança da sociedade e do Estado”.

O tema é retomado pelo constituinte ao tratar da comunicação social no artigo 220, que reza: “a manifestação do pensamento, a criação, a expressão e a informação, sob qualquer forma, processo ou veiculo não sofrerão qualquer restrição, observado o disposto nesta Constituição. Parágrafo 1º. Nenhuma lei conterá dispositivo que possa constituir embaraço à plena liberdade de informação jornalística em qualquer veiculo de comunicação social, observado o disposto no art. 50, IV, V, X, XIII w XIV. Parágrafo 2º. É vedada toda e qualquer censura de natureza política, ideológica e artística”.

Em certa medida, e por inúmeras vezes, a liberdade de imprensa condensa os demais direitos: o de pensamento, informação e expressão.

Colho a lição de Tadeu Antonio Dix da Silva, “in” Liberdade de Expressão e Direito Penal, publicação do IBCCRIM, número 15, 2000:

“A comunicação jornalística supõe o exercício não apenas de informação – no qual os aspectos institucionais e a tutela do receptor da informação resultam mais relevante – mas também do direito mais genérico de expressão, pelo que a liberdade de imprensa exige o reconhecimento de um espaço de imunidade constitucionalmente protegido não só para a livre circulação de noticias, mas também’m para a livre circulação de idéias e opiniões”.

O Tribunal Europeu de Direitos Humanos entende que a “limitação do direito à informação ao relato puro, objetivo e asséptico de fatos não resulta constitucionalmente aceitável nem compatível com o pluralismo, a tolerância e a mentalidade ampla, sem os quais não existe uma ‘sociedade aberta’. O direito de informação “não pode restringir-se a uma comunicação asséptica de fatos, mas inclui também a investigação da calção de fatos, a formulação de hipóteses possíveis com relação com essa causação, a valoração probalística dessas hipóteses e a formulação de conjeturas sobre essa possível causação”.

Não se olvida que o preso tem limitação de sua liberdade com fundamento constitucional, em razão da natureza desta sua condição, porém, as restrições aos direitos devem, obrigatoriamente, ter a limitação na própria Constituição, permanecendo intocado o conteúdo essencial dos direitos fundamentais e respeitado o princípio da proporcionalidade que confere um critério de adequação e necessidade.

É acurado o magistério de Anabela Miranda Rodrigues sobre esta questão (A posição jurídica do Recluso na Execução Privativa de Liberdade, publicação IBCCRIM, número 11, 1999):

“Ao estatuto especial do recluso é inerente uma legalidade própria em si mesma com um sentido necessariamente restritivo, indispensável existência da própria relação especial como tal. De fato, o recluso não se pode eximir a uma intervenção, a mais ou menos profunda, na esfera dos seus direitos, enquanto essa intervenção exprime a própria essencialidade da execução ou é indispensável para assegurar a sua própria existência. Entretanto, as restrições de direitos fundamentais a que o estatuto especial dê motivo mas que não encontrem o seu pressuposto na Constituição serão, por isso, inconstitucionais”.

O que foi deferido anteriormente por este juízo diz respeito à liberdade de expressão e não com a incomunicabilidade, como afirma o Ministério Público.

A incomunicabilidade não pode ser aceita sob qualquer circunstância em uma decisão administrativa, já que há expressa proibição na Constituição.

A incomunicabilidade foi banida pelo constituinte de 1988, que estabeleceu no artigo 136 da Carta Magna a possibilidade de ser decretado o estado de defesa. Entretanto, mesmo neste estado de exceção, a incomunicabilidade do preso é proibida. Dita o artigo 3º do artigo 136: “Na vigência do estado de defesa: IV – é vedada a incomunicabilidade do preso”.

Ora, se a incomunicabilidade não é permitida nem no regime extraordinário, à toda evidência não será possível impor tal condição em período de normalidade.

O que se quer no caso vertente é proibir os réus de darem entrevistas, ou seja, proibir que eles exerçam o direito de liberdade de expressão e desta forma atingir o direito de informação e de liberdade de imprensa, que são direitos sociais. Não há como admitir esta proibição. O direito que eles possuem são na verdade de todos e protegidos pela Constituição, que acolheu valores éticos e políticos de uma sociedade democrática.


Em seu arrazoado, o Ministério Público sustenta que o direito de expressão encontra limites no interesse da sociedade, que deve haver um “balanceamento entre o interesse pessoal e a sociedade” (fls. 43). Menciona ainda a absorção da “individualidade diante do interesse social” (fls. 53).

O argumento, de cunho utilitarista, é bem conhecido, mas deve ser vigorosamente rejeitado. O interesse social reside, pelo contrário, na preservação da idéia de direitos, e não na limitação deles com base em juízos opinativos.

Colho aqui a lição do jusrilósofo Ronaldo Dworkin. A expressão “direitos” tem um sentido fraco e um sentido forte. Em sentido fraco, é justificativa suficiente e limitação da liberdade individual com base em raciocínios que conduzam à conclusão de que há um benefício para os demais membros da sociedade. Assim, reconhece-se que os cidadãos estão sujeitos a restrições administrativas, como a de não poder transitar com seus veículos em certa mão de direção. No entanto, quando se fala em direito de expressão a palavra direito é tomada em sentido forte. Ou seja – sempre segundo Dworkin – “quando se diz que os cidadãos têm direito à liberdade de expressão, isso deve querer dizer que este tipo de justificação não é suficiente. De outro modo não se afirmaria que as pessoas têm especial proteção contra a lei quando estão em jogo seus direitos, e este é, justamente, o sentido da afirmação.”

Explicita ainda Dworkin que pode haver, em certos casos, limitações de direitos para proteger o direito de outros, ou para impedir uma catástrofe, mas não se pode dizer que o Estado está justificado para invalidar um direito com base apenas em um “juízo segundo o qual é provável que, em termos gerais, sua ação produza um benefício à comunidade. Esta admissão despojaria de sentido as reclamações de direitos, e demonstraria que se está usando a palavra direito em algum sentido que não é o sentido necessário para dar à sua afirmação à importância política que normalmente se supõe exista nela” (Los Derechos em Serio, pgs. 284/286, Editorial Anel, Barcelona).

Concluo, assim, que direitos individuais podem ser limitados para garantir outros direitos individuais, mas não podem ser limitados com base em juízos de provável ou suposto interesse social, como quis demonstrar o Ministério Público. Em outros “direito de sociedade” contra direitos individuais. Somente pode haver conflito de direitos individuais contra direitos individuais, o que no caso não se vislumbra nem longinquamente. Ou entendemos o direito de expressão neste sentido, que Dworkin denomina de “sentido forte”, ou não podemos sustentar que esta seja uma sociedade democrática.

O Padre Antonio Vieira, quando questionou o modo de proceder do Tribunal e suas intervenções públicas tocaram em temas proibidos, já que defendia a abolição de discriminações contra os cristãos-novos, foi punido com o silêncio e perdeu o direito à palavra.

A sanção imposta a Padre Vieira não será aplicada agora, em 2002. este juízo não se prestará a exercer o papel de censor, pois lhe cabe pela Constituição Federal exercer o papel do garantidor de direitos, atentando que uma violação de direitos não atinge apenas aquele que está diretamente envolvido, mas toda sociedade.

Isto posto, mantenho a decisão por seus próprios fundamentos, acrescidos destes e determino a remessa dos autos, que devem ser desapensados, ao Egrégio Tribunal de Justiça, observadas as formalidades legais.

Junte-se cópia da denúncia e da decisão de fls. 95/99.

Autorizo xerox.

Int.

São Paulo, 16 de julho de 2002.

Kenarik Boujikian Felippe

Juíza de Direito.

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