Crise no Espírito Santo

A crise no Espírito Santo e a face da omissão na mídia

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16 de julho de 2002, 17h14

Na época da votação das Disposições Transitórias da Constituição, em 1988, o então presidente José Sarney gostava de usar o velho adágio segundo o qual certos políticos “enxergam a floresta mas não vêem as árvores”. A frase, malgrado o uso que o próprio Sarney viria a fazer dela, serve para a mídia no episódio desencadeador da crise no Espírito Santo – coroado com o pedido de demissão do ministro da Justiça Miguel Reale Jr.

Os jornais, como referia o velho e bom Joseph Conrad, enveredaram por um “bruhaha babélico”: o foco da notícia recaiu sobre as maquinações políticas que levaram à saída de Reale. Vejamos manchetes de O Globo e do Jornal do Brasil, no dia 11 de junho.

O Globo, chamada de primeira página: “FH diz que Reale o traiu”

O presidente Fernando Henrique enviou dura carta ao ex-ministro da Justiça Miguel Reale Júnior, em que se diz traído. “Não podia compreender como Vossa Excelência colocava suas suscetibilidades acima do interesse público”, diz.

A OAB e a ABI vão boicotar o Conselho dos Direitos da Pessoa Humana Nas páginas 11 e 14, o Globo mancheteia assim as reportagens: “Em carta, FH repudia críticas de ex-ministro”; “Novo ministro não descarta ação no ES”; “OAB e ABI anunciam boicote a conselho”; “Força-Tarefa não desvendou crime”; “‘Gratz não perde por esperar’”

E no chamado “pirulito”, a coluna à direita, na página 11, uma breve menção às vítimas dos desmandos no Espírito Santo: “Conselheiros da OAB são ameaçados”.

Agora, vejamos o Jornal do Brasil, também do dia 11 de junho. A chamada de primeira página: “FH responde a discurso de Reale em nota oficial”. E as manchetes das notícias à pg A3: “FH e Reale Júnior não se entendem”; “PT repudia recuo”; “Novo ministro quer reforçar polícia”; “OAB anuncia boicote a conselho”.

Escolhemos para a análise dois jornais cariocas porque, como se sabe, quem manda no crime no Espírito Santo é a agremiação parapolicial Scuderie Le Cocq. Nos anos 70 e 80, no Rio de Janeiro, era moda que se usasse no carro o símbolo da Scuderie. Perguntei ao finado crítico de música Gabriel Bastos Junior, um jornalista talentoso morto por infecção hospitalar, sobre o porquê de usar em seu carro o símbolo da Scuderie. Isso se deu em 1995. Bastos respondeu: “A gente usa no Rio para não ser multado pela polícia”. Portanto, é moeda sonante, há anos, que as franjas do poder da Scuderie estavam em solo carioca – onde, até mais do que no Espírito Santo, fazia o papel de cobrança de “pedágios” da população, roubo de carros e “justiçamento” de bandidos procurados – uma herdeira presuntiva do Esquadrão da Morte, de São Paulo.

Portanto, ainda, era de se esperar que os dois maiores jornais do Rio de Janeiro dessem mais foco à, digamos, questão humana da coisa. A imprensa em geral, que faz um dos imperativos de sua agenda setting a exploração de personagens, não os explorou justamente quando o processo era autenticamente de cidadania.

O programa Hora da Verdade, de Márcia Goldsmith, na TV Bandeirantes, comemora seu primeiro ano de existência espalhando outdoors, nos centros das grandes capitais, referindo que solucionou “mil casos em um ano de programa”. Tamanhos e que tais dramas específicos são explorados diariamente, também, no programa Canal Aberto, de João Kleber, na Rede TV!. Contra eles, dirão: podem ser criticados por aquele cânon que Roland Barthes, nos anos 60, chamava de fait divers e, nos anos 80, Pierre Bourdieu alcunhou de espetacularização da notícia.

Enfim: um apelo degenerativo ao emocional, e segundo os freudianos, uma chamada regressiva ao estágio infantil de se viver pura emoção à flor da pele, ainda que à custa de dramas de outrem. Mas o que é a televisão senão isso?

ONG no papel de repórter

Bem na hora em que o apelo aos dramas humanos ganha o estatuto de cidadania, a imprensa se omitiu no caso da crise do Espírito Santo. A pergunta que cabe: onde estão as vítimas da Scuderie Le Cocq? Cadê os rostos e as histórias de vida dos ameaçados de morte e dos assassinados em Vitória pelas mãos do crime organizado? Não apareceram. A mídia, sobretudo a carioca, preferiu ficar nas maquinações políticas, nas suas disquisições de poder, no rendez-vous dos bastidores de Brasília. Enfim: ninguém mostrou os dramas humanos face o crime organizado.

Sabemos que mostrar o rosto humaniza as questões. A partir de 1900, quando Max Planck enveredou pelos seus postulados quânticos, e desde 1905, quando Albert Einstein lançou sua Teoria Restrita da Relatividade, a fatia de 99,9% da humanidade, que não entendia (e não entende) patavina da coisa, contentou-se em consumir a figura de um Einstein mostrando a língua. A física, incompreensível, estava humanizada. É assim, diria Mircea Elíade, que também funcionam religiões e dogmas: sejam os santos do catolicismo ou os deuses do panteão hindu, o deus antropomórfico torna o sobrenatural, o místico e inexplicado mais palpáveis.

É óbvio que a todo-poderosa rede CNN, sempre que apóia o Departamento de Estado dos EUA, isto é, sempre, sabe desse processo. Foi assim que, na Guerra do Golfo, há 13 anos, recebemos imagens vindas de câmeras instaladas em mísseis Maverick. Mostravam os “bandidos” de Saddam Hussein sendo dizimados ao lado de seus carros. Só 11 anos depois soubemos que, no ataque a Bagdá, na operação que George Bush père chamava de “bombardeio cirúrgico”, morreram quase 150 mil velhos, mulheres e crianças. A operação da CNN era bem essa: desumanizar a guerra, sem mostrar rostos.

Foi por isso que a mídia da Bósnia, na metade dos anos 90, passou a distribuir en masse, a todo o mundo, imagens de vítimas, de preferência as crianças loiras e de olhos azuis: para mostrar ao mundo que as Nações Unidas e os EUA também matavam gente “igual” ao americano ou inglês medianos. Portanto, os decision makers da mídia detêm, a torto e a direito, esse processo de humanizar ou desumanizar os dramas de situações-limite. É uma das novas facetas da manipulação: operar a forma, muito antes do que o conteúdo.

Sobre o Espírito Santo, deve-se dizer: em 1997 este observador, com o jornalista José Arbex Jr., lançou o livro O século do crime (Boitempo, ganhador do Prêmio Jabuti 1997). Ali já havia todo um capítulo sobre o crime organizado no Espírito Santo e sobretudo a Scuderie Le Cocq. No lançamento do livro, em Vitória, em 1997, este observador foi ameaçado de morte pela Scuderie Le Cocq – e, com o delegado Francisco Vicente Badenes, que investigava a Scuderie, teve de cancelar palestra na Universidade Federal, em Vitória. Só quem passou por isso certamente pode avaliar a omissão da imprensa em não noticiar os “dramas humanos” ou a “cara da violência” no Espírito Santo.

Enquanto a imprensa se detém nos desdobramentos políticos da crise que derrubou um ministro, coube aos investigadores de direitos humanos Sandra Carvalho e James Cavallaro, da ONG Justiça Global, mostrar o rosto da violência que a imprensa teria o dever de exibir. Mais uma vez, não-jornalistas acabaram fazendo o papel que caberia aos jornalistas.

* Artigo publicado no site Observatório da Imprensa.

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