Caso Olivetto

Leia decisão que condena seqüestradores de publicitário

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16 de julho de 2002, 12h09

A testemunha Eduardo, que trabalha em uma academia de ginástica, disse que quatro pessoas de um mesmo grupo, que falavam com sotaque castelhano, freqüentavam a academia. Reconheceu três deles em juízo: Mauricio, Alfredo, Martha. Disse que a quarta pessoa tinha o nome de Villabela e não teve certeza quanto ao acusado Willian, que seria parecido com Villabela, mas um pouco mais novo. Teve dúvida em dizer se a pessoa fotografada a fls. 743 (Willian) seria tal pessoa e afirmou que a pessoa fotografada as fls 65 do apenso de flagrante (Willian) lhe parece Villabela. Na delegacia reconheceu os mesmos três e também a foto de Miguel Armando Villabela (fls. 864/866).

O porteiro do edifício localizado na Rua Luis Góes disse que os acusados Alfredo Augusto, Martha e Mauricio moraram naquele imóvel até dezembro de 2001, quando saíram e soube que eles tinham ido para a Argentina (fls. 867/869).

O delegado de polícia Dr. Wagner Giudice asseverou que não recebia os bilhetes encaminhados pelos seqüestradores, mas tomava conhecimento do conteúdo e da forma de entrega, só não era comunicado acerca do valor do resgate. Disse que entraram em contato com a pessoa que vendeu o veículo utilizado pelos seqüestradores e souberam que o carro tinha sido adquirido por uma pessoa que falava em castelhano. Entraram em contato com o vendedor da loja de tintas, uma das que foram usadas para realização da entrega de mensagem e souberam que a compra teria sido realizada por uma mulher que se apresentava como surda e muda. Recebeu a informação da prisão dos réus e do encontro das cartas. Através do conteúdo das mesmas chegaram a conclusão que eram escritas pela vítima. Manteve contato com os réus e pode perceber que apenas os acusados Mauricio e Alfredo Augusto falavam indicando a liderança que eles tinham em relação aos demais.

O delegado Wagner asseverou que soube através dos outros dois delegados, Dr. Emygdio e Bittencourt, que houve uma proposta de libertação de Washington, pois Mauricio e Alfredo poderiam soltar a vítima com vida, caso fosse autorizado um telefonema, mas ele teria que ligar no dia seguinte às onze horas, um horário que era pré-estabelecido. Mauricio disse que temia que algo acontecesse, que a polícia chegasse ao cativeiro. Deu a entender que um impasse poderia ocorrer no local e queria resguardar a vida dos demais seqüestradores e da própria vítima. Foi autorizado o telefonema e no mesmo dia a vítima foi abandonada no cativeiro. Acrescentou que “em nenhum momento Mauricio indicou o local do cativeiro. Ele não mencionou o nome das pessoas que teriam, de alguma forma participado do crime, seja na vigilância do cativeiro, seja na organização, seja no contato telefônico que ele possuía“. Soube que Mauricio tem condenação em razão de tentativa de homicídio contra Pinochet, pela morte de um senador e um seqüestro (fls.780/ 795).

O delegado de Serra Negra asseverou que policiais militares comunicaram que algumas pessoas da cidade estavam estranhando a conduta de alguns turistas que tinham alugado uma chácara, pois permaneciam grande tempo dentro da mesma. Achou que pudessem ser traficantes e munido de um mandado de busca e apreensão, esteve no local e prendeu os réus. Um sargento encontrou dentro do fundo falso de uma pasta as cartas de uma pessoa seqüestrada. Repassou os dados para a delegacia especializada e foi confirmado, através do teor dos manuscritos, que se tratava de Washington Olivetto. Apreendeu armas e diversos objetos no local (fls. 798/801).

A ação policial que culminou com a prisão dos réus, foi realizada mediante mandado exarado pelo juízo de Serra Negra, cumprido por policiais desta cidade e a diligência não tinha nenhuma relação com o seqüestro da vítima. Tratava-se de envolvimento de estrangeiros com armamentos e drogas. O encontro das cartas da vítima foi casual, sem qualquer vínculo com a investigação que estava em curso.

A representação do delegado de Serra Negra consta a fls. 18 do apenso da prisão em flagrante e aponta a necessidade da busca e apreensão em razão de denúncia de existência de tráfico de entorpecente e de armas de fogo no local , razão pela qual a diligência foi cumprida. Entretanto, acabaram por encontrar as cartas manuscritas pela vítima.

O imóvel onde estava instalado o cativeiro foi periciado e através do laudo pode-se ter uma visão bem real do local onde a vítima permaneceu por cinqüenta e três dias. As fotografias que constam dos autos e que ilustram o laudo pericial, notadamente as fotografias de fls. 446/447, 449, 452/456, nos permite visualizar a descrição do cativeiro, fornecida pela vítima e pelo policial inquirido.

Lamentavelmente, o local do cativeiro não foi devidamente preservado desde o primeiro momento. Somente depois da chegada dos peritos é que foram tomadas as providências primárias de qualquer investigação. Consta da prova pericial referente ao local do cativeiro:


“Ao adentrar literalmente ao interior do imóvel, notei o mesmo estar ‘invadido’ por Policiais Militares e Policiais Civis, todos em cômodos diferentes, portanto, sem preservação alguma do local, denotando com isso provavelmente perdas importantes para o trabalho pericial, pois as pessoas andavam de um lado para o outro, subiam e desciam as escadas, bolinavam os objetos, abriam e fechavam portas de armários, abriam janelas, enfim, em nenhum momento notei por parte destas pessoas, qualquer tipo de preservação, destruindo, assim, campos importantes para pesquisas periciais vindouras.

Cumpre salientar que a preservação de locais de crime é, sobremaneira necessária, uma vez que a importância das perícias sobrepõe qualquer atitude descabida por pessoas não pertinentes ao ramo da criminalística, sem os cuidados necessários, sem qualquer instrução do campo pericial, daí produzindo prejuízo à própria Justiça…

Do exposto o relator informa que o local em pauta achou-se descaracterizado ao procedimento pericial “ (fls. 255).

É inacreditável que um ato simples como o do isolamento do local não tenha sido efetuado, o que garantiria a possibilidade de colheita de material para a realização de diversos exames. Diante da constatação dos peritos, certamente os que lá estavam não contribuíram para a elucidação do crime. É indispensável uma orientação (que inclua questões primárias como a do isolamento do local do crime) para todos os policiais, para que o trabalho de investigação científica possa ser realizado de forma produtiva e útil para o processo.

Outrossim, as cautelas de registro de investigação não podem ser menosprezadas. O inquérito é procedimento através do qual são ofertados elementos que servem à formação da opinio delicti, razão pela qual o legislador determinou as obrigações da autoridade policial no artigo 6o. do Código de Processo Penal e dentre elas tem o dever de colher todas as provas que servirem para o esclarecimento do fato e suas circunstâncias. O inquérito deve revelar todas, sem exceção, diligências realizadas pela autoridade policial. Não se pode olvidar o estabelecido no artigo 9o. do mesmo código: “todas as peças do inquérito policial serão, num só processado reduzidas a escrito ou datilografadas…”

Ao que consta, a testemunha Alberto, vendedor da farmácia, foi procurado e inquirido no mesmo dia pela polícia, mas as suas declarações somente foram tomadas por termo no dia 8.3.2002, pela delegada que assumiu posteriormente a presidência do processo. O termo deveria ser tomado no dia da oitiva e não após um mês, quando o processo já estava instaurado, o que permitiria inclusive, que o Ministério Público arrolasse a testemunha ao oferecer a denúncia.

O conjunto probatório não deixa margem para a dúvida . Todos os acusados praticaram o crime de extorsão mediante seqüestro e a condenação se impõe.

b) Quadrilha ou Bando

Mas há que se acolher o pedido da Defesa e afastar o delito previsto no artigo 288, parágrafo único do Código Penal, que exige para sua configuração um mínimo de quatro agentes, atuando em reunião estável, o que não se confunde com o concurso de pessoas. A conjunção transitória não é crime autônomo. Neste sentidos confira-se decisões colacionados da obra acima referida, vol I, tomo II:

“Não basta para configurar o delito de quadrilha ou bando a reunião de mais de três pessoas para a execução de um ou mais crimes. É necessário que, além dessa reunião, haja um vínculo associativo permanente para fins criminosos, uma predisposição comum de meios para a prática de uma série indeterminada de delitos e uma contínua vinculação entre os associados para a concretização de um programa delinqüencial (TACRIM-SP-AC- Rel. Silva Franco- RT 493/322).

“O simples ‘acordo’ para a prática de um crime não é punível. O que transforma o acordo em associação, quadrilha ou bando e o torna punível é a organização com caráter de estabilidade. É, assim, uma certa permanência ou estabilidade, o que distingue o crime do art.288 do CP da simples participação criminosa, societas sceleris ou societas in crimine (TJSP-HC 23.329-3- Rel. Diwaldo Sampaio- RT 588/323)”.

No mesmo sentido: RT 705/353, 567/348, 538/383, 521/425, 514/354, 511/400, 463/410, 457/418, 443/506, 398/109, 296/114; RJTJSP 139/282, 135/428, 83/406, 26/411, 21/508, 8/536, 7/503; RF 236/250, 229/283, 210/355; RTFR 27/86; JUTACRIM 54/372, 61/400, 42/276, 39/200, 37/235.

No caso vertente, não há prova de estabilidade ou permanência entre os acusados. A prova produzida indica que para o seqüestro de Washington Olivetto, houve um período longo de planejamento e observação. Os réus se reuniram para praticar este crime, mas não foi produzida prova no sentido de que eles tenham formado uma associação. Nem sequer há indícios neste sentido. Nada há nos autos que conduza a afirmação da existência do crime capitulado no artigo 288 do Código Penal. O que restou provado é a reunião para a pratica de um único delito.


c) Crime de Tortura

O delito de tortura imputado aos réus não está caracterizado, mas não porque se exige que o autor deste crime seja funcionário público ou outra pessoa no exercício de funções públicas, ou por sua instigação, ou com o seu consentimento ou aquiescência, como alegado pela Defesa, que tem razão ao afirmar que o legislador não poderia construir um tipo de tortura que não levasse em conta o conceito aprovado em convenções internacionais. Entretanto, a Convenção Contra a Tortura e Outros Tratamentos ou Penas Cruéis, Desumanos ou Degradantes, adotado pela Resolução 39/46 da Assembléia Geral das Nações Unidas, em 10 de dezembro de 1984 e ratificada pelo Brasil em setembro de 1989, dispõe ao término do artigo primeiro, que estabelece o conceito de tortura :

“O presente artigo não será interpretado de maneira a restringir qualquer instrumento internacional ou legislação nacional que contenha ou possa conter dispositivos de alcance mais amplo” .

É o que ocorreu na legislação brasileira, que somente após treze anos definiu o crime de tortura, no artigo primeiro da lei 9455/97 e não impôs a qualidade acima referida no tocante ao agente do delito. Portanto, a legislação nacional deu alcance maior ao crime em tela, o que não afronta de maneira alguma a Convenção.

Mas ainda assim, não esta caracterizado o delito, pois o constrangimento causador do sofrimento físico ou mental, conforme regramento da Lei 9455/97, deve estar circunscrito a uma das três hipóteses apresentadas pelo legislador, quais sejam: com o fim de obter informação, declaração ou confissão da vítima ou de terceira pessoa; em razão de discriminação racial ou religiosa , ou para provocar ação ou omissão de natureza criminosa .

A denúncia destaca que a finalidade específica consistia em provocar ação de natureza criminosa, embora não indique em que consistiria a mesma. Contudo esta elementar não está concretizada, pois não há qualquer indicativo nos autos que o constrangimento causador do sofrimento para Washington Olivetto tenha provocado alguma ação de natureza criminosa. A lei exige uma vinculação entre o constrangimento sofrido pela vítima e a provocação de uma ação criminosa. O constrangimento praticado seria para uma finalidade especial, qual seja, a obtenção de uma ação criminosa, o que não se verifica, pois não consta nenhuma ação criminosa por parte da vítima ou mesmo de terceiros. O único crime que se vê é o praticado pelos acusados.

Houve emprego de violência e grave ameaça e foi causado sofrimento físico e mental para a vítima, porém, estes elementos não são suficientes para a caracterização do crime de tortura, que deve ser afastado.

d) Pena

Na aplicação da pena, considerando as circunstâncias judiciais previstas no artigo 59 do Código Penal, fixo a pena base além do mínimo legal, ou seja, em dezesseis anos de reclusão.

É preciso registrar que em nenhum momento foi requerido o reconhecimento de crime político próprio, para tanto seria indispensável que o delito atentasse contra a soberania, a integridade, a estrutura e o regime político do Brasil, o que não ocorreu.

O pedido restringe-se ao reconhecimento da motivação política para a pratica do seqüestro, o que por certo não pode ser afastado por se afirmar que os tempos são outros. De fato, há uma nove ordem política no Chile. Há alguns anos atrás seria impensável sequer imaginar o julgamento de Pinochet, mas também é forçoso reconhecer que as distâncias existentes entre o povo da mesma nação estão cada vez maiores.

Os acusados Mauricio e Alfredo disseram que fazem parte de duas organizações chilenas, Frente Patriótico Manuel Rodrigues e MIR, respectivamente, e que o dinheiro do resgate seria dividido entre os dois grupos. Os acusados têm histórico de participação política, inegavelmente. Mauricio tem condenação em seu país por homicídio de um “senador de direita” e de um seqüestro. À toda evidência, a vítima destes crimes não foram alvos casuais. O pai da acusada Karina é desaparecido político da Argentina, conforme prova documental, e sua mãe foi acolhida na Suécia como exilada; a mãe de Marco Rodolfo foi fundadora do MIR e foi exilada; Martha e William são perseguidos pelas lutas que travaram em seu país de origem, Colômbia.

A forma como o crime foi praticado, revela a estrutura de grupo, própria de organizações políticas clandestinas, que atuaram no Chile e em outros países da América Latina na época das ditaduras.

Os documentos juntados pela Defesa dão prova mais do que suficiente para reconhecer a ligação umbilical dos réus com o que se costuma chamar de movimento social. Não há que se questionar, neste tanto, a correção da via escolhida pelos réus. Cabe apenas constatar que ao praticar o delito estavam eles agindo com a finalidade política.


Vale destacar trecho do voto do Ministro Sepúlveda Pertence, acórdão RE 160.841-2, do Supremo Tribunal Federal, referente ao seqüestro de Abílio Diniz:

“Certo, os motivos e as finalidades políticas- e, portanto altruístas, da ação delituosa- embora irrelevante, nas circunstâncias para configurar crimes políticos, segundo a lei brasileira- em tese, poderiam e deveriam ter sido considerados na medida da culpabilidade e na individualização das penas correspondentes aos delitos aqui cometidos”.

No conjunto das circunstâncias judiciais, há que se levar em conta as circunstâncias do crime para sopesar a pena base. E aqui cabe registrar que o seqüestro foi longo, durou cinqüenta e três dias, e terminou por acaso. Neste período a vítima teve sofrimento físico e mental intenso. Permaneceu sem trocar uma palavra sequer, ouviu música de forma ininterrupta, foi mantido com luz artificial em tempo integral, sem ver a luz do dia e o escuro da noite; constantemente vigiada, com os movimentos limitados ao minúsculo espaço que lhe foi destinado como cativeiro. Outrossim, revelaram perversidade, pois deram livros como “1984” e “Papillon” para que a vítima lesse. Agiram da mesma forma, ao encaminhar uma das mensagens através de um açougue, com evidente sentido simbólico neste gesto.

Também há que se avaliar as conseqüências do crime. A prolongada ausência e a incerteza do que estava por acontecer desestabilizou todas as pessoas que cercam a vítima. A mãe dele foi hospitalizada e todos que vivem à sua volta foram também foram atingidos e ainda estão abalados psicologicamente, como comprova a prova oral produzida em juízo. As conseqüências também são de ordem econômica, pois algumas pessoas tiveram que se afastar do trabalho rotineiro.

Diante deste conjunto de circunstâncias, ainda que levando-se em conta a motivação política, a pena deve ficar além do mínimo legal.

Presente a circunstância atenuante estabelecida no artigo 65, inciso III, “d”, do Código Penal, pois os acusados Mauricio e Alfredo Augusto confessaram o delito.

Em relação aos dois também está caracterizada a circunstância agravante do artigo 62, inciso I do Código Penal. A prova produzida indica que os dois realizavam a direção das atividades daquele núcleo. É possível fazer tal afirmativa tendo em vista as informações do Delegado Wagner Giudice, que disse que os demais acusados nem sequer respondiam as perguntas e diziam para que ele perguntasse para Mauricio e Alfredo. Outrossim, eram os dois que estavam na posse do dinheiro utilizado pelo grupo. Marco Rodolfo disse que prestava as contas para Alfredo Augusto. Foi Mauricio que saiu com os delegados para realizar o telefonema.

A circunstância atenuante apontada tem índole subjetiva e a agravante possui a mesma natureza , razão pela qual será realizada a compensação e mantida a pena como definitiva, por inexistirem causas de aumento ou diminuição a serem consideradas.

A causa de diminuição pleiteada pela Defesa não pode ser reconhecida, sob o fundamento que o ato foi político e houve confissão judicial. A delação premiada prevista no artigo 159, parágrafo 4o. do Código Penal permite a redução da pena se o crime é cometido em concurso e se o concorrente o denunciar à autoridade, facilitando a libertação do seqüestrado.

É duplo o propósito do instituto em tela: facilitar a libertação do seqüestrado e a identificação dos demais agentes do crime, sendo estes seus requisitos.

No caso em tela, nenhum dos propósitos foram atingidos pela conduta dos acusados Mauricio e Alfredo Augusto. Esta suficiente provado que o acusado Mauricio saiu da delegacia e realizou um telefonema no dia posterior à sua prisão informando ao seu interlocutor que estavam detidos pela polícia brasileira, que deveriam interromper a operação e soltar a vítima. Por outro lado, avisou a polícia que a libertação não seria imediata, pois teriam que realizar uma limpeza no local, ou seja, iriam apagar os rastros identificadores no local do cativeiro. Também é certo que a vítima foi localizada sem qualquer informação prestada pelos réus, pois quando percebeu que estava sozinho, com o cessar da música e sem ruídos do cativeiro, começou a gritar, até que a moradora vizinha ouviu e avisou a polícia. A ocorrência foi atendida por policiais militares que não tinham conhecimento algum sobre os fatos, portanto, realizaram a libertação em razão de fatores externos, já que até aquele momento nenhuma informação tinha sido prestada por Mauricio e Alfredo.

Nenhum meio foi fornecido pelos réus para a identificação do local do cativeiro e das demais pessoas que praticaram o crime. Tudo indica, notadamente o silêncio dos acusados em relação aos demais agentes do seqüestro, que Mauricio tinha o intuito de salvaguardar a vida dos demais autores e também evitar uma eventual prisão e identificação, ainda que concomitantemente pretendesse salvaguardar a vida da vítima. O fato de dizer que seria necessário um certo tempo para a libertação de Washington, após o telefonema realizado, é por certo um mecanismo de “ganhar tempo” para possibilitar a fuga dos demais seqüestradores. Havia a possibilidade do restante do grupo saber da prisão, já que a notícia acerca deste fato foi amplamente transmitida no mesmo dia pela televisão, mas o telefonema seria uma garantia de comunicação com os demais agentes sobre estas circunstâncias. O próprio acusado Mauricio disse ao delegado que “poderia fazer gestões para libertação de Washington Olivetto, mas queria que fosse presenciado e avalizado por uma outra pessoa, como um juiz… queria a presença desta autoridade para que ficasse assegurado que estaria fazendo a tentativa de libertação da vítima por vontade própria, pois não queria que as pessoas do grupo que estivessem no cativeiro corressem riscos, como não queria riscos para a vítima” (fls. 609).


O fato concreto é que o cativeiro foi abandonado e a libertação da vítima não tem qualquer nexo com a ação dos réus Mauricio e Alfredo, que não forneceram a identificação dos seqüestradores e ainda tentam afastar a responsabilidade dos demais acusados. Logo, não podem ser considerados delatores nos termos do artigo 159, parágrafo 4o., do Código Penal e serem beneficiados com a redução da pena.

Neste tanto, vale destacar acórdão referente à revisão criminal 265.434/9, TACRIM-SP, Rel. Figueiredo Gonçalves: “ Não há cogitar, no entanto, da causa redutora de pena quando, não obstante os fatos concretos apresentados pelo delator, ocorra a intervenção de fatores externos, como por exemplo, a auto liberação do seqüestrado ou a sua libertação por policiais que desconheciam os informes prestados. Da mesma forma, não caberia a causa de diminuição da pena se a liberação do seqüestrado não foi devida às informações fornecidas pelo delator mas, sim, ao pagamento do resgate” .

Fixo o regime fechado para o início do cumprimento da pena privativa de liberdade, nos termos do artigo 33, parágrafo 2º, “a”, do Código Penal, tendo em vista a quantidade da pena aplicada.

A norma do artigo segundo, parágrafo primeiro, da Lei 8072/90 é inconstitucional, porque fere o direito fundamental da individualização da pena, o da igualdade e da dignidade da pessoa humana, estabelecido no artigo 5o da Carta Magna.

Colho na lição de Marco Aurélio de Mello, ministro do Supremo Tribunal Federal :

“Assentar-se, a esta altura, que a definição do regime e modificações posteriores não estão compreendidas na individualização da pena é passo demasiado largo, implicando restringir garantia constitucional em detrimento de todo um sistema e, o que é pior, a transgressão a princípios tão caros em um Estado Democrático como são o da igualdade de todos perante a lei, o da dignidade da pessoa humana e o da atuação do Estado sempre voltado ao bem comum. A permanência do condenado em regime fechado durante todo o cumprimento da pena não interessa a quem quer que seja, muito menos à sociedade que um dia, mediante o livramento condicional ou, o mais provável, o esgotamento dos anos de clausura, terá necessariamente que recebê-lo de volta, não para que este torne a delinqüir, mas para atuar como um partícipe do contrato social, observado-se os valores mais elevados que o respaldam.

Por último, há de se considerar que a própria Constituição Federal contempla as restrições a serem impostas àqueles que se mostrem incursos em dispositivos da Lei 8072/90 e dentre elas não é dado encontrar a relativa à não progressividade do regime de cumprimento da pena” (Revista Brasileira de Ciências Criminais, volume 8).

Ainda sobre o mesmo tema temos o magistério de Alberto Silva Franco “in” Leis Penais Especiais e a Interpretação Jurisprudencial, Editora Revista dos Tribunais, 1995:

“O parágrafo primeiro da Lei 8072/90 proíbe, em relação aos crimes hediondos e aos a ele equiparados, o regime progressivo de cumprimento da pena privativa de liberdade, lesando deste modo, ao mesmo tempo, tanto o princípio constitucional da individualização penal, como também o princípio igualmente constitucional, da humanidade da pena. A individualização da pena, mercê do regime prisional progressivo, insere-se no tronco comum do processo individualizador que se inicia com a atuação do legislador, passa pela ação do juiz e se finda, ao atingir o nível máximo de concreção, na execução penal. Destarte, excluir, legalmente, o sistema progressivo, é impedir que se faça valer, na fase final, o princípio constitucional da individualização. Lei ordinária que estabeleça, portanto, regime prisional único, sem possibilidade de nenhum tipo de progressão atenta contra tal princípio e revela expressa ofensa a preceito constitucional. Mas não é só. A exclusão legal do sistema progressivo conflita também com o princípio constitucional da humanidade da pena… À exclusão integral da pena, em regime fechado, de acordo com o parágrafo primeiro do artigo segundo da Lei 8072/90, contraria de imediato, ao modelo tendente à ressocialização do delinqüente e empresta à pena um caráter exclusivamente expiatório ou retributivo, a que não se afeiçoam nem o princípio constitucional da humanidade da pena, nem as finalidades a ela atribuídas pelo Código Penal (art. 59) e pela Lei de Execução Penal (art. 1o.)” .

Deixo de condicionar eventual recurso dos réus a prisão deles.

O artigo 594 do Código de Processo Penal é inconstitucional, posto que vincula a “prisão cautelar” com o direito de apelar e a Constituição Federal e as Conveções Internacionais ratificadas pelo Brasil garantem o duplo grau de jurisdição sem qualquer condicionamento ou vinculação. Este é o magistério de Luiz Flavio Gomes “in” Direito de Apelar em Liberdade, Editora Revista dos Tribunais:

“O direito de apelação integra o contraditório e a ampla defesa, nos termos do art. 5º, inciso LV, da CF. Cabe observar que a ampla defesa e os recursos a ela inerentes foram previstos irrestritamente na Constituição…Logo, não podia o legislador infra-constitucional condicionar a apelação à prisão. Um fenômeno processual não se confunde com o outro; um não pode “condicionar” o outro. Ainda que fosse possível superar o argumento expendido, ainda assim, seria tal dispositivo inconstitucional por violar o “devido processo legal” (CF, art, 5º, inc. LIV). Vejamos: o direito de duplo grau de jurisdição legal, seja pelo próprio sistema processual adotado entre nós, seja agora por força do dispositivo do art. 8º, 2, ”h”, da Convenção Americana sobre Direitos Humanos; restringir, por lei, o duplo grau de jurisdição, significa, destarte, restringir o devido processo legal ou, dito de outra maneira, retirar por lei o que é garantido pela Constituição e pelo Direito Internacional”.

Tal entendimento não implica na impossibilidade da decretação ou manutenção da prisão cautelar. No caso vertente, nesta fase processual, presente a circunstância autorizadora da prisão preventiva consubstanciada na garantia da aplicação da lei penal, razão pela qual mantenho a prisão cautelar dos acusados.

Isto posto, Julgo Parcialmente Procedente a ação penal promovida pela Justiça Pública contra Willian Gaona Becerra (ou Frederico Antônio Aribas), Karina Dana Germano Lopez (ou Rosa Amália Ramos Quiroz) , Marco Rodolfo Rodrigues Ortega (ou Carlos Renato Quiroz), Martha Lígia Urrego Mejia (ou Maité Anália Bellon) , Alfredo Augusto Canales Moreno (ou Ruben Oscar Sanches) e Mauricio Hernandes Norambuena para:

a) condená-los ao cumprimento de dezesseis anos de reclusão, tendo-os como incursos no artigo 159, parágrafo 2º, do Código Penal, fixando o regime fechado para o início do cumprimento da pena privativa de liberdade.

b) absolvê-los da acusação que lhes foi feita como incursos no 288, parágrafo único, do Código Penal, o que faço com fundamento no artigo 386, inciso VI, do Código de Processo Penal.

c) absolvê-los da acusação que lhes foi feita como incursos no artigo 1o., inciso I, letra “b” e parágrafo 4o., inciso III, da Lei 9455/97, o que faço com fundamento no artigo 386, inciso III, do Código de Processo Penal.

Recomende-se os réus na prisão em que eles se encontram.

P.R.I.C.

São Paulo, 15 de julho de 2002.

Kenarik Boujikian Felippe

Juíza de Direito

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