Substituição tributária

STF permite que Estado fique com dinheiro que não lhe pertence

Autor

9 de julho de 2002, 14h25

A legislação nacional sempre ofereceu uma série de leis curiosas e dispositivos legais chocantes. Talvez em decorrência daquela célebre idéia, advinda da era Montesquiana, que atrela o preenchimento das casas legislativas à figura do cidadão oriundo das mais diversas camadas sociais.

Hoje, ante as notícias vinculadas amplamente na mídia, verificamos que algumas pessoas, senão muitas, são daquela parcela do povo que vive de meios escusos e estariam ali não para representar a nação, mas para suprir seus próprios interesses e os de seus colaboradores praticantes de atividades não menos suspeitas.

Porém, relevando esse aspecto e deixando de lado também o fato de que os documentos legislativos produzidos hoje no país, na maioria das vezes, são fruto do trabalho apresentado pelo “Poder” Executivo ou por escritórios especializados na elaboração de textos normativos, o fato interessante é a manutenção de certos dispositivos que chamam a atenção e podem comprometer alguns princípios informadores de todo o sistema legal.

Um exemplo dessas incorreções vigora hoje em nosso regulamento do Imposto de Renda, denominado RIR.

O imposto de renda(1) é tributo que incide sobre o acréscimo patrimonial auferido por qualquer indivíduo. Isso significa dizer que, ao perceber um acréscimo de patrimônio em determinado período, o contribuinte deve recolher uma parcela desse acréscimo aos cofres do Estado.

Como se vê, a origem dos bens ou rendimentos não importa para o conceito de acréscimo patrimonial, razão pela qual o dever de pagar o imposto de renda surge pelo simples fato de se auferir renda em determinado período, não importando qual a origem desses bens.

Feitas essas considerações preliminares e guardadas certas as mais profundas referentes ao conceito de renda acima exposto, é importante notar a existência em nosso ordenamento jurídico de dispositivo normativo determinando a exigência do imposto de renda sobre o produto advindo de operações ilícitas.

A inusitada norma vem expressa no RIR, conforme consta em seu artigo 55, inciso X, assim disposto:

“Art. 55. São também tributáveis:

X – os rendimentos derivados de atividades ou transações ilícitas ou percebidos com infração à lei, independentemente das sanções que couberem;”

O texto do Regulamento foi muito infeliz ao prever a hipótese normativa acima transcrita, isto porque, para a tributação a título de imposto sobre a renda a origem do rendimento não é importante, ou seja, para haver a tributação sobre a renda, como antes mencionado, basta o surgimento de acréscimo patrimonial em determinado período.

Dispositivos como o acima transcrito, podem fazer surgir a interpretação na qual o criminoso no Brasil deve preencher seu carnê leão informando e recolhendo ao poder público o imposto em decorrência da renda advinda do contrabando de drogas, venda de carros roubados, roubo à bancos, incentivo à prostituição ou cobrança de propinas, pois assim determina a lei.

Essa é uma interpretação possível e levaria ao entendimento de que o marginal, após declarar a renda auferida em função do ilícito, teria o produto do crime regulamente legalizado perante a fiscalização e, caso fossem tomadas as medidas confiscatórias possíveis, o “cidadão” que recolheu o imposto sobre o tráfico, roubo, lavagem de dinheiro etc, poderia comprovar sua situação de legalidade perante o Fisco, valendo-se para tanto do seu carne leão onde constaria as parcelas pagas mês a mês rigorosamente na data devida.

Os leitores poderiam alegar a inconsistência jurídica da interpretação por nós apresentada. Entretanto, vale lembrar que, no Brasil, quem determina a correta interpretação de um dispositivo normativo não é o simples mortal que vos escreve, tampouco o indignado leitor que passa seus olhos por este artigo, mas onze cidadãos “de notável saber jurídico e reputação ilibada” (2) integrantes do Supremo Tribunal Federal.

E é exatamente essa a razão de nossa inquietação, pois são essas mesmas onze cabeças pensantes responsáveis em última instância pela interpretação de todos os documentos normativos no Brasil, que julgaram pela legalidade de uma prática adotada pelos Estados da Federação no assunto referente à substituição tributária. Passemos a explicar.

O artigo 150, parágrafo 7º da Constituição Federal permitiu a cobrança antecipada de tributos que só seriam devidos futuramente quando da ocorrência de uma determinada operação, esta cobrança antecipada, entretanto, deveria ser imediatamente restituída ao contribuinte caso a operação futura não ocorresse.

Para possibilitar a cobrança antecipada, o Estado atribui um valor provável à operação futura e, em seguida, cobra o valor do tributo. Em certos casos, porém, a operação futura ocorre com valor inferior àquele estipulado pelo Governo, fazendo surgir à necessidade, no mínimo lógica, do Estado devolver a parcela do imposto cobrada a maior.

Pois bem, o Supremo Tribunal Federal interpretou que a necessidade de devolução prevista na Constituição só ocorre quando a operação futura deixa de existir – mas e se a operação futura se concretiza, todavia com valor inferior ao estipulado pelo Estado? – bem, neste caso, o Supremo interpretou que nenhuma diferença é devida ao contribuinte, porquanto a operação ocorreu e mesmo que o valor desta operação tenha sido menor do que aquele estipulado pelo Fisco, não haveria o dever dos Estados devolverem o valor cobrado a maior de tributo.

Não, o fato acima descrito não é nenhuma pegadinha televisiva, é uma situação real e consta do acórdão proferido em 08/05/2002, pelo Supremo Tribunal Federal ao julgar a Ação Direita de Inconstitucionalidade nº 1.851.

Ora senhores leitores, a interpretação apresentada pelo Supremo permite a uma das partes, no caso o Estado, ficar com dinheiro que não lhe pertence.

Talvez o Supremo tenha se esquecido daquela regra básica de interpretação onde fica vedado ao intérprete extrair da norma a interpretação que leva ao absurdo, como no caso da interpretação adotada na análise do artigo 150, parágrafo 7º da Constituição Federal.

Assim, se interpretações como a constante das recentes decisões de nossa Corte Constitucional tornarem-se rotineiras, a legalização das práticas ilícitas decorrentes da declaração e recolhimento do imposto sobre os rendimentos advindos de atividades criminosas, pode não parecer tão absurda aos olhos de nosso Supremo Tribunal Federal.

Concluindo, do até aqui exposto só nos resta uma certeza – se o artigo 150, parágrafo7º da Carta Constitucional, aos olhos do Supremo, não obriga a devolução de quantias cobradas a maior pelos Estados, por favor retirem urgentemente o dispositivo constante do artigo 50, X do RIR, do cenário jurídico de nosso país – pois do contrário, caso esta matéria seja levada à mais alta Corte de Justiça, tudo poderá acontecer, inclusive ser reconhecido pelo Supremo a existência no Brasil de uma tributação sobre a bandidagem, resultando na conseqüente legalização de práticas criminosas, não as do Fisco, pois estas já foram julgadas constitucionais, mas daquelas praticadas pelo criminoso comum.

Notas de rodapé

1- A denominação mais correta seria “Imposto Sobre a Renda”, nos termos do artigo 153, III da Constituição Republicana.

2- Constituição Federal, artigo 101.

Autores

Tags:

Encontrou um erro? Avise nossa equipe!